sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Delírio do poder. Psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação. Márcia Tiburi.

"O encolhimento das consciências, junto às mistificações, constitui uma catástrofe social que precisamos conter com educação e cultura, e por isso, apesar do momento difícil, cabe escrever mais um livro e, por meio dele, manter viva a linguagem, o pensamento, a busca da verdade". É o que lemos na página 72 do livro da Márcia Tiburi. E isso, em tempos de desinformação. É esse o desafio do livro.
A experiência política de Márcia Tiburi feita texto.

Em primeiro lugar devo afirmar a minha admiração pela Márcia Tiburi. Gosto de suas falas, de seus livros e acompanho os seus lançamentos. Assim já estou aguardando o seu próximo livro sobre "religião, capitalismo e machismo", livro já em preparo e interrompido em função da campanha eleitoral em que Márcia se envolveu como candidata a governadora do Estado do Rio de Janeiro, pelo Partido dos Trabalhadores, em 2018. O relato e as análises dessa sua experiência são o teor do livro Delírio do poder. Psicopoder e loucura coletiva  na era da desinformação. Gosto muito dos subtítulos dos livros. Loucura coletiva - era da desinformação - psicopoder.

O livro tem duas dedicatórias. "Para Lula, presidente e preso político" e "Em memória de Marielle Franco, vereadora, companheira de lutas, brutalmente assassinada em 14 de março de 2018, aos 38 anos". E uma frase em epígrafe: "A pequena burguesia ainda se arrepiava, imaginando os perigos de que se livraria em noite de bombardeios e sangueira, e os vencedores lhe surgiam como heróis a monopolizar a gratidão nacional". O livro tem apresentação de Luiz Inácio Lula da Silva.

Embora o livro tenha um formato voltado para uma leitura fácil, 77 pequenos capítulos, de duas a quatro páginas, a sua leitura exige pré requisitos, especialmente, conhecimentos de psicanálise, como o próprio título e subtítulo indicam. Delírio - loucura coletiva. Seria, aliás, o delírio a própria loucura coletiva? A era da desinformação e as fake news, o fenômeno novo das eleições de 2018, foram os agentes causadores desse delírio. E as consequências? O pesadelo que estamos vivendo.

Passando um rápido olhar pelos capítulos deparamos com categorias como poder, delírio, robôs, escravização digital, linguagem, alienistas e alienados, milícias midiáticas, política espectral, bullying, Totem e tabu, hipnose coletiva, entre outros tantos. A elucidação dessas categorias é feita à luz da experiência do cotidiano da campanha, reduzida a 45 dias. As experiências de uma mulher, filósofa, professora, intelectual e escritora como candidata ao executivo do estado do Rio de Janeiro. Estas análises constituem um belo material didático para a disciplina da teoria ou ciência política.

As páginas que mais me chamaram atenção são as dos relatos de campanha e a sua impotência na solução, ao menos imediata, dos problemas. São chocantes os relatos dos capítulos 49, a menina que vai à escola três vezes por semana; 50, aprisionada; 51, o menino e o carrinho sem pilhas e, de modo todo especial o 51, as mães meninas. Difícil não verter lágrimas. O livro traz também dados da realidade do Rio de Janeiro. 800 mil pessoas passaram a viver abaixo da linha da pobreza depois do golpe de 2016. E o que o capitalismo faz com essas pessoas?  "A desigualdade é uma arma que sangra o corpo dos que são por ela violentados. Quem a maneja são os donos do capital, que atacam como criminosos as suas próprias vítimas". É impressionante também o capítulo de número 58, o sonho com os morcegos.

Anotei ainda outras passagens, como esta sobre o capitalismo pós industrial: "...Vivem no capitalismo pós-industrial rentista, na era do capital improdutivo, aplicando dinheiro em empresas, o que permite aos ricos situarem-se em bolhas assépticas. Desconhecem a ideia de sociedade, de direitos, de regras democráticas que seriam boas para todos, na mesma medida em que se locupletam na bolha que é o ambiente virtual". E ainda sobre este mesmo capitalismo: "Porque não se trata mais de um capitalismo de produção e consumo, trata-se agora de uma busca por algo mais do que lucro. O neoliberalismo é um extremismo do capital que exclui de si a ideia de sociedade, de alteridade e, por isso mesmo, faz da destruição dos direitos básicos a sua metodologia. É uma regra econômica que não prevê espaço para considerações éticas".

Também anotei algumas observações sobre a corrupção, tema dominante na campanha e atribuída quase que exclusivamente ao Partido dos Trabalhadores e a Lula: "O discurso da corrupção foi disponibilizado publicamente sem que as pessoas, desacostumadas à análise crítica, pudessem desconfiar dele". E ainda, o mantra do moralismo, sempre falso: "É que o moralismo é justamente a degeneração da ética".

Recorro ainda a duas outras afirmações: "Agora sinto pena do Brasil, sabendo que seu futuro está comprometido" e a última, retirada do último capítulo, como uma espécie de síntese de tudo "A verdade já não importa e a justiça desmoronou". Me permitam, desMOROnou.

Ainda, a contracapa do livro: "Em Delírio do poder, Márcia Tiburi analisa como a intensificação da lógica neoliberal afeta as instâncias políticas - subjetivas e institucionais - que deveriam assegurar uma vida digna a todas, todes e todos, sem que importem a cor da pele e a classe social. A partir de fatos públicos e vivências pessoais, a filósofa reflete sobre questões políticas em variados matizes - incluindo sua experiência como candidata ao governo do estado do Rio de Janeiro em 2018. A apresentação foi escrita por Luiz Inácio Lula da Silva, quase um ano depois de sua prisão, resultado de um processo jurídico seletivo, marcado por ações questionáveis cometidas por quem deveria julgá-lo de modo imparcial".

Segundo constatei, Márcia obteve 5,85% dos votos, que totalizaram 447.376 sufrágios.



quinta-feira, 19 de setembro de 2019

A Escola Pública do Paraná. Uma tragédia anunciada. Sebastião Donizete Santarosa


Ontem (18 de setembro de 2019) eu tinha agenda marcada com o professor Sebastião Donizeti Santarosa para escrevermos um texto em que analisaríamos as políticas educacionais do Paraná sob o governo do Rato e de seu secretário Feder. Pela manhã o professor Sebastião publicou o diálogo realizado entre um professor e o diretor do colégio em que ele trabalha. Quando o li, falei para o Sebastião, que não precisaríamos escrever mais nada. Não poderia existir texto melhor do que esse diálogo. Em razão disso solicitei permissão para a sua publicação. Com profunda tristeza eu o publico e, mais triste ainda, por ele não ser uma peça de ficção.
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Conversa entre um professor com afastamento médico das atividades de uma escola e o diretor dessa mesma escola. O professor foi afastado por crise nervosa:


- Puxa vida, diretor, tô mal. Nunca fui tão humilhado em minha vida. Dá vontade de abandonar tudo. Tenho ânsias de vômito e tremor de perna só de pensar em voltar pra escola... Você sabe que de dar aulas eu gosto, cara. Sempre gostei, você sabe, diretor. Curto a meninada. Sempre dei meu sangue, nunca falto, nunca atraso, tô sempre ai. Mas agora, desse jeito, desse jeito que tão me tratando, não dá mais...
- Sim, eu sei, cara. Você sempre foi parceiro. Mas tá difícil mesmo. Tá ruim pra todo mundo. Eu também tô tomando uns remédios. Isso tá acontecendo em todo estado do Paraná. Você tem que entender que nós diretores e as pedagogas estamos sofrendo muita pressão também... Ela fez a ata de você sim, mas fez só porque teve que fazer, se não, você sabe, sobra no dela ...
- Mas das três pedagogas que a gente tem, é só ela que pega no pé. Ela faz da vida da gente um inferno. Não aguento mais. Dou aula em todas as séries, em todas as turmas. Dá uns quinhentos alunos. Toda hora ela fica questionando plano de aula, vistoriando avaliação, cobrando resultado, fazendo ata, registrando tudo, quer que eu dê conta de aluno por aluno, como se eu pudesse conhecer cada um deles, fica indo na sala de aula toda hora pra ver o que a gente tá fazendo, fica espiando pelos corredores... Essa praga encarnou em mim. O que ela fez comigo ontem não se faz com ninguém. Me humilhou na frente de todo mundo, o que ela escreveu nessa ata, porra, quem ler vai me achar um canalha...
- Cara, calma, eu sou só o diretor da escola. Ela é pedagoga, precisa cumprir o papel dela. Você tem que entender. Descansa esses dias e depois você volta mais calmo. Comprou o remédio...
- Que mané remédio. Olha, eu não queria é voltar nunca mais. Não queria mais por os pés ai. Isso virou um inferno. Isso não é vida. Essa mulher é uma bruxa...
- Não é ela. Todos os pedagogos vão ter que acabar fazendo isso também. Os núcleos, os tutores, todo mundo tá em cima, estão pressionando. O Renato Feder quer levantar as notas do IDEB. O Ratinho quer que o Paraná tenha a melhor escola do Brasil. A gente vai ter que aprender a lidar com a pressão se a gente quiser continuar sendo professor... Ou a gente sai mesmo...
- Porra! É fácil falar a gente aguenta ou sai mesmo. Quer dizer que a gente tem que virar bundão pra ser professor! Vai ter que aguentar tudo isso quieto! Que merda de professor a gente é, meu?! O que a gente ensina pra meninada? Ser capacho?
- Calma, cara...
- Calma o cacete!!! Calma, calma, calma... Tem um monte de professor adoecendo e morrendo, você sabe, veja as notícias, as escolas viraram lugar de fazer doidos... E esse governo nojento piora tudo, a única coisa que faz é cobrar, cobrar, cobrar... Pensa que a gente é o quê? Você vem me pedir calma?! Pro inferno. Calma o cacete! Que merda de escola esses caras acham que tão fazendo? Como que alguém consegue ensinar alguma coisa desse jeito, doente, chicoteado a toda hora, puta que pariu!!!!
- Você tá nervoso. Precisa entender...
- Vá pra puta que te pariu!!!
De longe e de muito perto, como observador atento e indignado, vou vendo como o sonho da escola pública, democrática e de qualidade vem se transformando em um pesadelo, em uma tragédia que se anuncia a cada ação da atual gestão da escola pública do Paraná.

XXXXX

E eu, cá a lamentar, que a escola não mais seja local de exercício da prática da LIBERDADE e a refletir que a indignação é o começo para qualquer mudança.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

13 de maio de 1958. A abolição vista por uma favelada. Carolina Maria de Jesus.

É impossível conhecer a realidade brasileira sem estudar profundamente o tema da escravidão. Estes estudos passam necessariamente por Joaquim Nabuco e o seu O abolicionismo. Dele tomo uma frase, que costumo citar à exaustão: "Não basta acabar com a escravidão; é preciso destruir com a obra da escravidão". Joaquim Nabuco tinha todo um projeto de integração do negro à nação brasileira, através da garantia de acesso à educação e à terra. E isso não ocorreu. Este acesso sempre lhes foi negado.

Passam também por Florestan Fernandes, de quem pinço a seguinte frase: "O negro prolonga, assim, o destino do escravo". Florestan nega as versões da cordialidade e da integração harmoniosa das raças na formação da sociedade brasileira e lamenta que esta integração em uma sociedade capitalista, competitiva, tenha se dado sem lhe proporcionar os devidos meios. Lembrando que esta integração, mesmo com os meios, já é difícil.

Atualmente ganham grande evidência os livros de Jessé Souza. Dou o título de dois de seus livros, para efeito de ilustração. A elite do atraso - da escravidão à Lava jato e A elite do atraso - Da escravidão a Bolsonaro. Percebam a ideia da permanência ou persistência. A escravidão, mais do que nunca, está presente na abolição dos direitos trabalhistas após o golpe de 2016. A flexibilização destes direitos é uma volta a um regime de escravidão sob o disfarce do trabalho livre.

Faço ainda uma referência ao belo e recente livro da Lília Schwarcz Sobre o autoritarismo brasileiro. O primeiro capítulo, o primeiro como símbolo de raiz de tudo, versa sobre escravidão e racismo. No livro também encontramos uma frase do Millôr Fernandes, profundamente enigmática e significativa: "O Brasil tem um enorme passado pela frente". Em outras palavras, não vislumbramos na construção do nosso futuro a abolição do passado, vislumbramos apenas a sua perpetuação.
O dia 13 de maio visto sob o olhar arguto de uma favela.

Mas o que me leva a este post é um testemunho. O dia da abolição visto pelos olhos de uma herdeira, uma mulher negra, mãe de três filhos, leitora e escritora, embora tivesse apenas o segundo ano primário, ainda que de forma incompleta. Carolina Maria de Jesus é uma trabalhadora livre. Livre para ganhar a sua vida e a de seus três filhos, catando papeis, ferros, estopas e outros lixos pela ruas da mais ricas das cidades brasileiras. A fome é a sua companheira mais constante. 

Por ser leitora, incentivada pela palavra de uma professora sua, tornou-se também escritora, relatando em diário a sua vida de sofrimentos. Do seu Quarto de despejo - diário de uma favelada tomo o depoimento relativo ao dia 13 de maio de 1958, dia 13 de maio, dia da abolição. Não farei qualquer interpretação, deixando para a sua análise a aguda percepção da ilustrada favelada. Mantenho a escrita original.

13 de maio. Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da abolição. Dia em que comemoramos a libertação dos escravos.

... Nas prisões os negros eram os bodes espiatórios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz.

Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair.

... Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer elas brada: - Viva a mamãe!

A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu mandei o João pedir um pouquinho de gordura a Dona Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim:

- "Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu e eu não pude ir catar papel. Agradeço. Carolina."

... Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.

E assim no dia 13 de de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual - a fome.

domingo, 15 de setembro de 2019

Quarto de despejo. Diário de uma favelada. Carolina Maria de Jesus.

Quarto de despejo - diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, apareceu no ano de 1962. Naquele tempo, tempo de minha formação escolar, eu não podia nem pensar em comprar livros e, muito menos ainda, ter esta prática como um hábito. Me lembro perfeitamente da fama que o livro adquiriu. Só não sei precisar se isto ocorreu ainda nos anos 1960 ou já na década seguinte. Recentemente, verificando listas dos livros mais vendidos, lá estava o livro. Não tive dúvidas. Comprei e li.
Um dos maiores best-sellers da literatura brasileira.

Carolina Maria de Jesus adquiriu o hábito de escrever desde cedo. Assim fugia de seus problemas. "Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar eu escrevia. Tem pessoas que, quando estão nervosas, xingam ou pensam na morte como solução. Eu escrevia o meu diário". Coisas da psicanálise? Dois momentos são retratados: a segunda metade do ano de 1955 e, depois, ela salta para  o mês de maio de 1958, chegando até o primeiro de janeiro de 1960. A favela descrita é a favela do Canindé, hoje área nobre, depois da abertura das marginais do rio Tietê. Devia ser por ali onde hoje se encontra o estádio da Portuguesa e, naquele tempo, do São Paulo Futebol Clube.

O livro tem a sua história. Ela está ligada ao grande jornalista Audálio Dantas, sempre precursor do jornalismo ético brasileiro. Audálio tem o seu nome ligado às denúncias do bárbaro assassinato de Vladimir Herzog. Na ocasião era o presidente do Sindicato dos Jornalistas. Foi ele que, ao fazer uma reportagem sobre a vida dos favelados, fez a descoberta da escritora e encaminhou os seus escritos para se transformarem em livro e documentários. Antes eles foram reportagem em jornal e revista. Audálio prefacia o livro. O livro não passou despercebido por Manuel Bandeira. Lhe chamou atenção a sua peculiar linguagem: "Ninguém poderia inventar aquela linguagem, aquele dizer as coisas com extraordinária força criativa mas típico de quem ficou a meio caminho da instrução primária". 

No período relatado Carolina ganhava ou sofria a vida catando papel, ferros, estopas e outros lixos recicláveis. Era mãe, sozinha, e três filhos para sustentar. João, Vera e José Carlos. A palavra mais constante no livro é a palavra fome e os sofrimentos dela decorrentes. Já os problemas mais constantes são os das brigas, da ausência de solidariedade, dos desajustes familiares, da presença do álcool, da falta de saneamento, problemas com a água (a fila para uma única torneira) e a cobrança da energia elétrica, cobrada por cada bico de luz. Assim ela define a sua situação de favelada: "Devo incluir-me porque também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo". Outro tema constante é o suicídio e a falta de coragem para cometê-lo.

O diferencial de Carolina era a sua relação com o ler e o escrever. Vejam que bela referência: "Fui catar papel, mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais. Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem". Os políticos e a sua falta de sensibilidade também estão sempre presentes. Vejamos: "O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças".

O que ela escreve no dia 13 de maio de 1958, dia da abolição da escravidão, mas não da fome, eu deixo para um post especial. Também anotei temas que me marcaram: o medo do juizado de menores e dos abrigos em que estes poderiam ser recolhidos; a presença de padres e pastores e a pretensão de manter os favelados dentro dos princípios da moralidade, isto é, manterem-se submissos e conformados; a questão da moralidade sexual, a partir da aguda percepção de Carolina e a sua fala sobre o casamento, que dizia existir apenas para a mulher apanhar. Fala ainda que a voz do pobre não tinha poesia. Mas tinha.

Como símbolo do livro, do menosprezo pela favela, deixo um paralelo que ela traça entre os corvos e o ser humano. Dura realidade de tristeza e de vergonha profunda: "Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos". O diário escrito por Carolina está inserido na chamada literatura-verdade.

Na contracapa do livro lemos: "Ao ler este relato - verdadeiro best-seller no Brasil e no exterior -, você vai acompanhar o duro dia a dia de quem não tem amanhã. E vai perceber com tristeza que, mesmo tendo sido escrito na década de 1950, este livro jamais perdeu sua atualidade". É que, como dizia Millôr Fernandes; "O Brasil tem um enorme passado pela frente". 

E, finalmente, uma declaração da autora que deixo como mensagem para educadoras e educadores. É sobre o despertar de seu interesse pela literatura e de quem o despertou: "Seria uma deslealdade de minha parte não revelar que o meu amor pala literatura foi-me incutido por minha professora, dona Lanita Salvina, que aconselhava-me para eu ler e escrever tudo que surgisse em minha mente. E consultasse o dicionário quando ignorasse a origem de uma palavra. Que as pessoas instruídas vivem com mais facilidade".

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Paulo Freire. O andarilho da utopia.

Curitiba seis de setembro de 2019, sexta feira., à noite. Vésperas do Independence Day. Esta escrita já obedece aos ditames do nacionalismo dos bozos. Ali, no campus Rebouças da UFPR, estávamos reunidos para praticar um ato de rebeldia dos bem grandes. Ler Paulo Freire e, pior, lê-lo e debatê-lo coletivamente. E, pior ainda, confrontá-lo com as políticas educacionais dos governos estadual e federal. O livro escolhido é Pedagogia da autonomia - saberes necessários à prática educativa, o livro testamento de Paulo.
Richard, ou Paulo Freire, em cena.

O momento era festivo e havia motivos para isso. Iniciávamos o II Ciclo de Leitura e Debate da Obra de Paulo Freire. O primeiro ocorrera ao longo de 2018, em comemoração aos 50 anos da primeira edição do Pedagogia do oprimido. Cerca de 40 grupos e mais de 500 pessoas estiveram envolvidas no projeto. O II Ciclo é uma iniciativa coletiva dos núcleos sindicais da APP-Sindicato Curitiba Norte e Londrina, do DEPLAE e do NESEF, ambos do setor de educação da UFPR e também do IFP, campus Curitiba. Segundo levantamentos preliminares, em torno de 1300 pessoas estão inscritas para a participação, extrapolando, inclusive, o território paranaense.

Na abertura se fez presente um grupo musical, com um nome bem sugestivo - Balbúrdia sonora. Logo depois vieram as saudações e as apresentações formais. Mas a noite estava reservada para um grupo de teatro, que veio do Rio de Janeiro, para encenar a peça Paulo Freire, o andarilho da utopia. Eu posso dizer que conheço relativamente bem a obra de Paulo Freire e tive a feliz oportunidade de com ele conviver em alguns momentos. Richard, este é o nome do ator que o representou, conseguiu nos trazer, tanto a pessoa de Paulo quanto uma síntese extraordinária de sua obra.

A peça começa com um pensamento do Paulo, que eu costumo apresentar como - voa livre pelo mundo que tem raízes plantadas em algum lugar. Assim Paulo partiu do regional, de sua Recife, de seu Pernambuco, de seu nordeste e de seu Brasil, para o universal atingindo a América Latina e o mundo. Um globo terrestre esteve presente ao longo de toda a peça. A peça passou por Angicos e pela prisão, 70 dias em Olinda. Na prisão, perguntado se podia alfabetizar os prisioneiros comuns, ele respondeu que, exatamente pelo seu trabalho de alfabetização é que ele estava preso.

A peça discorreu sobre toda a obra, terminando com os seus últimos livros, Pedagogia da autonomia - saberes necessários à prática educativa e Pedagogia da indignação - cartas pedagógicas e outros escritos. Deste livro, sabiamente tomaram o mote do seu entusiasmo com as marchas do MST, em particular uma delas, a sua marcha em Brasília. Isso foi em 1996.Tomo a liberdade de transcrever os quatro últimos parágrafos, com duas ideias básicas, tão bem incorporadas à peça, o entusiasmo com as marchas e o rechaçar das ideias de fatalismos apregoadas com a ideologia do fim da história. Depois disso, Paulo ainda conseguiu manifestar a sua indignação com o botar fogo em Galdino, o índio pataxó, num banco em praça de Brasília. Mas vamos aos quatro parágrafos:
Um cartaz chamando para a participação do II Ciclo de Leituras.

"O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, tão ético e pedagógico quanto cheio de boniteza, não começou agora, nem há dez ou quinze, ou vinte anos. Suas raízes mais remotas se acham na rebeldia dos quilombos e, mais recentemente, na bravura de seus companheiros das Ligas Camponesas que há quarenta anos foram esmagados pelas mesmas forças retrógradas do imobilismo reacionário, colonial e perverso.

O importante porém é reconhecer que os quilombos tanto quanto os camponeses das Ligas e os Sem Terra de hoje todos em seu tempo, anteontem, ontem e agora sonharam e sonham o mesmo sonho, acreditaram e acreditam na imperiosa necessidade da luta na feitura da história como 'façanha da liberdade'. No fundo, jamais se entregariam à falsidade ideológica da frase: 'a realidade é assim mesmo, não adianta lutar'. pelo contrário, apostaram na intervenção para retificá-lo e não apenas para mantê-lo mais ou menos como está.

Se os Sem Terra tivessem acreditado na 'morte da história', da utopia, do sonho; no desaparecimento das classes sociais, na ineficácia dos testemunhos de amor à liberdade; se tivessem acreditado que a crítica ao fatalismo neoliberal é a expressão de um 'neobobismo' que nada constrói; se tivessem acreditado na despolitização da política, embutida nos discursos que falam de que o que vale hoje é 'pouca conversa, menos política e só resultados', se, acreditando nos discursos oficiais tivessem desistido das ocupações e voltado não para suas casas, mas para a negação de si mesmos, mais uma vez a reforma agrária seria arquivada.

A eles e elas, Sem Terra, a seu inconformismo, à sua determinação de ajudar a democratização deste país devemos mais do que às vezes podemos pensar. E que bom seria para a ampliação e a consolidação de nossa democracia, sobretudo para sua autenticidade, se outras marchas se seguissem à sua. A marcha dos desempregados, dos injustiçados, dos que protestam contra a impunidade, dos que clamam contra a violência, contra a mentira e o desrespeito à coisa pública. A marcha dos sem-teto, dos sem-escola, dos sem-hospital, dos renegados. A marcha esperançosa dos que sabem que mudar é possível".

Enfim, Paulo, por inteiro, esteve presente na peça. E o importante, sob outra forma de linguagem. Paulo fala muito de que também devemos atentar para a estética em nosso trabalho, revesti-lo de amorosidade e de belezura. Foi o que o grupo fez com maestria. A resposta dos participantes também se fez por inteiro: palmas, gargalhadas, olhares e lágrimas cheias de emoção e o coração leve e cheio de sonhos, utopias e uma fé inabalável, bem ao estilo de Paulo, de que a transformação do mundo é possível. O que não é possível é desistir do humano.

A ideia de escrever e de representar Paulo Freire. O andarilho da utopia está assim descrito no Projeto Oficial do grupo: "Encontrar com Nita Freire foi o nosso primeiro passo para iniciarmos a nossa andarilhagem. Ela nos encharcou de amorosidade e plantou em nós uma semente chamada Paulo Freire. O andarilho da utopia. O grupo é formado por Richard Riguetti, Junio Santos e Luiz Antônio Rocha.

Richard é ator, diretor, professor, fundador do grupo off-sina, companhia de Circo Teatro de Rua, itinerante e de repertório, com 10 anos de atividades, fundador da Escola Livre de Palhaço - ESLIPA, primeira escola do gênero da América Latina e a única gratuita. Tem formação em Teatro, Gestão Cultural e Música e já se apresentou em becos, ruas e vielas, nas praças e palcos de 3.232 cidades brasileiras.

Júnio é um dos principais nomes da cena cultural do nordeste. É ator, dramaturgo, diretor, poeta e palhaço. Como palhaço atende pelo nome de Cuz-cuz e atua junto a diversos grupos.

Luiz Antônio Rocha é produtor, autor, cenógrafo, figurinista e diretor teatral. É apontado como um dos mais conceituados diretores do teatro brasileiro e as suas peças tem forte marca autoral, valorizando o ator e a palavra. Entre as suas últimas peças estão Frida Kahlo, a deusa Tehuna e Zilda Arns, a Dona dos Lírios. e, por óbvio, o Andarilho da Utopia.
No sete de setembro O andarilho da Utopia esteve na Vigília do Lula Livre.

Mas as emoções não se limitaram à noite na universidade e estendida ao Gilda bar e restaurante.  No dia seguinte, pela tarde, a apresentação seria levada à Vigília do Lula Livre. As emoções, os aplausos, as gargalhadas e as lágrimas novamente tomaram conta de todos, especialmente, creio eu, dos grandiosos seres humanos revestidos de atores para levar com toda a força a bela e humana mensagem do grande e imortal Paulo Freire. No dia seguinte andarilharam por Ponta Grossa, em evento da Secretaria Municipal de Educação e assim vão seguindo o seu destino, pois o caminho se faz de novas andanças, lembrando que a utopia nos presta este serviço de sempre continuar a andar.

Para trazer o grupo passamos o chapéu por vários sindicatos ligados à educação, da educação fundamental e básica até a superior. Digo isso para deixar a dica de como levar o espetáculo para as escolas e para as cidades. Eles são um grupo altamente profissional e vivem de sua arte. Deixo os contatos: Luiz Antônio Rocha. 21 96917-8180 ou luizsntoniorocha2015@gmail. com e Richard Rihuetti. 21 99535-3983 ou instituto eslipa.gestor@gemail.com

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

O que os donos do poder não querem que você saiba. Eduardo Moreira.

Vamos direto para a resposta. Ela está no terceiro capítulo, que versa sobre o capitalismo. Parte da resposta está escrita em negrito. Reproduzo: "O capitalismo é um modelo que depende intrinsecamente da desinformação em massa. Não haveria qualquer outra forma de um sistema tão cruel e injusto como ele permanecer de pé que não fosse essa". Página 43. Estou falando do livro de Eduardo Moreira, O que os donos do poder não querem que você saiba. É óbvio que o livro veio para trazer muita polêmica.
Livro que desvenda, desvela. Provocativo.

Conheci Eduardo Moreira ao longo dos debates sobre a Reforma da Previdência, na Câmara dos Deputados. Me chamou atenção o fato de um banqueiro se posicionar contra esta reforma, ao menos da maneira como estava sendo proposta, quando esta, ao menos em meio ao mundo financeiro, era praticamente uma unanimidade. Eduardo é mesmo um banqueiro? Vejamos um pouco da sua apresentação na orelha do livro. "É um dos sócios fundadores e membro do comitê executivo do Banco Brasil Plural - grupo com mais de 500 colaboradores, 6 escritórios no Brasil e exterior e mais de 40 bilhões de ativos sob gestão - e foi responsável global pela mesa de Repo (Repurchase Agreements) do banco suíço UBS, quando teve sob sua gestão um volume de ativos que superavam U$ 20 bilhões". É, portanto, um homem que sabe lidar com o dinheiro.

Desinformação em massa... Para ilustrar, ele apresenta um exemplo significativo. A propaganda de um sabonete que mata 99% dos germes. Depois de apresentar exemplos da execrável concentração de rendas ele recorre à propaganda do sabonete. "E a comparação com o sabonete é ótima para mostrar a primeira grande artimanha publicitária desse sistema. O capitalismo usa o 1% das bactérias que sobrevivem como seus garotos-propaganda! Pronto, se elas sobrevivem é porque o sistema dá chances. Assim, ele tira a responsabilidade da desigualdade e concentração de renda do sistema... e a joga para as pessoas". Página 45. É a ideologia da meritocracia, que, em contrapartida, inventa a vagabundagem dos não vencedores. 

O pequeno livro (apenas 136 páginas) tem introdução e conclusão e seis capítulos, a saber: 1. O valor da informação; 2. O maravilhoso e lucrativo mundo das finanças; 3. O capitalismo; 4. Esse estranho bicho homem; 5. O modelo ideal de governo; 6. Os impostos no capitalismo. Creio que o título do livro é o próprio mote para o primeiro capítulo, assim como para todo o livro. É a informação combatendo a desinformação. O segundo capítulo, tema de sua atividade cotidiana, desvenda este mundo da acumulação, da qual cito apenas uma ideia, que é norteadora. O que é bom para o banco não é bom para você. Desvenda também o mundo das tarifas, pagas por quem tem pouco dinheiro. No terceiro capítulo estão as informações com que abrimos a resenha, mostrando ainda, ser o capitalismo o sistema da "mão invisível". O quarto capítulo se dedica a psicologia? Creio que sim. Um ser humano sempre cheio de insatisfações e, em busca. Tem também uma boa análise do termo empatia. O quinto capítulo é dedicado às sugestões e no sexto ele mostra que assim como os rios correm para o imenso mar, também os impostos dos pequenos são direcionados para a voracidade imensa e infinita do capital, especialmente, para seu setor financeiro.

É certo que o livro receberá muitas críticas. Mas o autor já reservou esta tarefa para si, nas conclusões. A principal seria a contradição de ele trabalhar no sistema financeiro. Ele já contava com as críticas, não ao livro, mas para o autor, mas assumiu o risco, crente de que deveria escrevê-lo. "Temos todos uma breve passagem por esta vida. Depois de partir, deixamos somente memórias e ideias. As primeiras costumam durar pouco. As segundas podem durar mais.

Os últimos reveses de saúde que sofri me fizeram pensar muito sobre a vida de uma forma mais ampla. Sobre o que tanto buscamos ao longo de nossos dias. Por que levamos uma vida que, assim que deixamos a infância para trás, passa a ser sofrida até o fim. Trabalhar, sofrer e ansiar, todos os dias, com pequenas pausas de alívio e prazer". Eduardo ainda nos conta que escreveu o livro de um fôlego só.

Ainda, a apresentação do livro em sua contracapa. "Nesta obra, Eduardo Moreira revela como funciona o complexo sistema financeiro, econômico e político do capitalismo. O autor desvenda as estruturas que regem o poder e denuncia as maneiras pelas quais alguns poucos privilegiados influenciam opiniões para manter a ordem vigente.

O que os donos do poder não querem que você saiba apresenta, como o próprio autor provoca, 'as coisas como elas são' e oferece ferramentas para se fazer as perguntas corretas com autonomia, para que o leitor possa tomar as rédeas do seu dinheiro e da própria vida". Se não fossem os vigilantes do "Escola sem Partido" eu recomendaria o uso deste livro para os alunos do nosso ensino médio. Faço esta observação lembrando de uma frase de Heirich Heine: "Onde se lançam livros às chamas, acaba-se por queimar também os homens". Eu acrescentaria, também os leitores e os propagadores de leituras.