sexta-feira, 27 de julho de 2018

Estética de si. Sílvio Gallo. Um texto Nietzschiano

Existem excelentes manuais de filosofia para o ensino médio. Um deles é Ética e cidadania - Caminhos da filosofia. A autoria é de Sílvio Gallo, junto com um grupo de professores que discutem sobre o ensino de filosofia. O livro é da Papirus Editora. Como bem mostra o título do livro, todo o foco se volta para a formação de um comportamento ético e para a construção da cidadania.
Um belo manual. Veja a edição. 20ª. Eu usei a 4ª.

Vou apresentar aqui a unidade 10, mas chamo a atenção também para a unidade 9, que versa sobre a estética como arte e (a) vida cotidiana, ou simplesmente, a arte de viver. Mas a unidade 10, sob o nome de estética de si, tem um dos subtítulos que é extraordinário: A ética como uma estética da existência, isto é, creio que dá para afirmar, tratar da vida como beleza, como uma obra de arte, a bildung grega. Mas vamos ao texto.

"Na Antiguidade Clássica, os gregos usavam uma bela imagem para dizer o ser humano: cada um de nós é semelhante a um pequeno barco que deve atravessar um oceano. Devemos realizar nossa travessia no tempo. Somos seres temporais: nascemos e vamos morrer. A consciência da morte nos remete a nossa condição temporal. A vida se constitui nesse movimento incessante que nos atravessa desde o nascimento e continuará após nossa morte. Assim, a morte deve ser vista como um acontecimento a mais nesse movimento que é a vida.

Como vimos no capítulo sobre ética, é o desejo que nos coloca nesse movimento da vida, pois nos leva a mirar as possibilidades de ação. Agimos no mundo movidos pelos desejos. Nossas atividades, racionais e físicas, estão sustentadas pelo desejo de nos tornarmos seres humanos. Apropriar-nos do leme de nossas vidas e realizar a travessia é realizar uma ética fundada na estética: fazer da própria vida uma obra de arte.

A nós compete a tarefa artística de instaurar na vida a beleza. Para fazer da vida uma obra de arte, é necessário assumir a mesma posição do artista: ser criador. Mas as condições existentes em nossa sociedade se impõem como adversas à criatividade.

Vivemos como se tudo estivesse pronto e a nós competisse apenas consumir. As condições de trabalho na sociedade capitalista são de exploração de nossas capacidades físicas e intelectuais. A transformação do trabalho em mercadoria obrigou-nos a vender nossas forças físicas por um preço chamado salário. Nossa sobrevivência está condicionada a um emprego no mercado produtivo.

As condições temporais são adversas para a travessia do barco. No oceano da vida, tempestades são constantes. A natureza nos ameaça com forças de destruição. Nosso frágil corpo é ameaçado por forças incontroláveis. Vez ou outra, as catástrofes ocupam as manchetes dos jornais e da televisão, informando-nos os números de mortos. A miséria cresce assustadoramente em nossas cidades e em nossos campos. Esta vida é trágica. Como realizar a travessia? A consciência da morte nos impõe a tarefa de criar as condições possíveis de vida. Nosso desejo de viver é guiado pela possibilidade de alcançar a felicidade. Não queremos apenas sobreviver como os demais animais. Queremos ser felizes. Mas o que fazer para conquistar a felicidade?

A ética como uma estética da existência:

Uma ação ética fundada na produção da beleza não pode simplesmente deixar de lado essas condições adversas. Mas também não pode e não deve sucumbir a elas.  Trata-se de encarar a vida como uma matéria prima na qual vamos imprimindo formas, esculpindo os contornos, tal como o escultor Michelangelo em sua pedra de mármore. A vida é nosso mármore, devemos esculpi-lo, criar um estilo, uma forma de viver, um jeito de ser feliz e, assim, afirmar a beleza. Dar forma à vida é a tarefa ética que nos compete como seres humanos. Nisso exercemos nossa condição de liberdade. Somos livres para fazer de nossas vidas uma obra de arte. Instaurar a beleza com todas as suas múltiplas formas.

Nietzsche, como vimos, apresentou a possibilidade de vivermos como artistas. Foi ele quem aproximou a ética da estética e, assim, criou uma reflexão radical sobre a moral dominante. A moral é o sistema de valores que sustentam a vida humana, e normalmente esses valore são apresentados como universais, isto é, sempre existiram e sempre existirão, sendo válidos em qualquer época e lugar.

Nietzsche suspeitou que os conceitos de bem e mal possuíam uma raiz histórica e dedicou-se a escavar os solos de onde emergiam tais conceitos. Argumentou que a moral é imposta por aqueles que possuem o poder de afirmação do bem e do mal. Aquele que diz o que é o bem exerce seu poder sobre os que são incapazes de tal afirmação. Desse argumento, o filósofo estabeleceu a distinção entre a moral dos fortes (os senhores) e a moral dos fracos (os escravos). Os fortes determinam o bem, excluindo tudo o que representa o mal. Separar o bem do mal é a tarefa dos senhores sobre os escravos. Ao fazer tal separação, os senhores determinam sua vontade como o bem. Os escravos são obrigados a aceitar a vontade dos senhores acreditando estar fazendo o bem. O escravo acredita agir bem quanto mais cumpre a vontade de seu amo e senhor.

Poder-se-ia argumentar que não vivemos numa sociedade escravocrata e que, portanto, tais argumentos não se aplicam. Mas será que a relação de escravidão se constitui apenas nas relações econômicas? Não haveria nessa relação apontada por Nietzsche uma crítica radical da civilização moderna? Parece-nos que o filósofo faz um diagnóstico preciso de seu tempo (final do século XIX) e com base em seus argumentos podemos pensar o tempo que é nosso (final do século XX).
Ensaios sobre as origens da moral cristã. Na verdade três ensaios.


A moral dos fracos é identificada na sua capacidade de formar a consciência de rebanho. Como rebanho obediente, os escravos são destituídos do poder de criar. A vida se apresenta para os fracos, os não criativos, como um fardo pesado, um sacrifício, uma pena. Condenados pelo bem do senhor, os escravos vivem ressentidos com a vida. Arrastam-se pela vida como condenados à pena final: a morte. Esta por sua vez é aceita como libertação, como redenção, como promessa de vida eterna.

Os fracos esperam uma felicidade que virá do além-túmulo. Esperam um reino eterno, onde não mais sofrerão, não terão de comer o pão com o suor de seus rostos. A promessa de uma vida eterna sem sofrimentos leva os fracos a aceitar seus sofrimentos como purificação. O rebanho obedece porque acredita que será feliz depois da morte, no paraíso eterno.

Para retomar a metáfora grega do barco, é necessário acompanharmos o pensamento de Nietzsche. Como os escravos podem sair dessa condição de submissão à vontade do senhor e exercer a liberdade? Ora, afastando-se do bem do senhor, buscando seu próprio bem. Esse processo de ruptura com a consciência de rebanho só é possível pela apropriação da vida como matéria-prima. Ou seja, somente os fortes são capazes de criar seu próprio bem. Não se afastando do sofrimento, mas, sim, assumindo-o como condição para o atravessamento. Contra a dor do viver não há remédio. Trata-se de assumir essa condição e criar. É no exercício da liberdade, no ato criativo, que os humanos poderão transformar a vida numa obra de arte.

Não se trata de um afastamento da vida, como faz o rebanho, mas de uma apropriação. Ser proprietário de seu corpo, cultivá-lo pelos exercícios da liberdade. Instaurar a beleza pela pulsação do desejo. O que quer o corpo? Prazer. mas esse prazer desejado não poderá ser obtido pela negação da dor e, sim, pelo seu enfrentamento. O corpo está submisso às condições temporais, como tudo na natureza. As contingências o atravessam de ponta a ponta. Comer, beber, acasalar, são as pulsões primárias do corpo. Amar, sonhar, desejar ser feliz são possíveis desde que essas condições elementares estejam satisfeitas.

O estilo e a singularidade de cada um.

Dar forma à vida é criar um estilo. A origem etimológica da palavra estilo atesta essa dimensão artística que estamos querendo imprimir à ética. No latim, o termo stilu designa um instrumento com ponteira de osso, de chifre, de madeira ou de metal, usado para escrever sobre a camada de cera das tábuas, e com uma extremidade em forma de espátula para anular os erros gráficos.Daqui podemos inferir a relação entre estilo e estilete, instrumento cortante que possibilita a inscrição da força.

O estilo é, então, um compromisso entre as duas práticas possíveis: o uso da ponta para escrever e o uso da espátula para apagar. Um instrumento que nos possibilita escrever nossos desejos sobre a tábua áspera do mundo e também esquecer os erros e seguir adiante nessa travessia temporal. Nietzsche dizia que só o esquecimento pode nos aproximar da felicidade.  Esquecer é aqui entendido como a capacidade de abandonar os ressentimentos e projetar-se em direção ao desconhecido, criando o futuro com as próprias mãos.

Para transformar a vida em obra de arte é necessário agir como o artista: apoderar-se do estilo e inscrever seu desejo na matéria do mundo. Neste ponto, podemos identificar o sentido da palavra estilo, tal como é utilizada nas artes plásticas: o conjunto de elementos capazes de imprimir graus de valor às criações artísticas pelo emprego de meios apropriados de expressão, tendo em vista uma produção estética.

Dois aspectos, para que possamos concluir. Trata-se de reconhecer, primeiro, o estilo como forma de impressão de valores e, segundo, a capacidade de utilização dos meios apropriados para instaurar a beleza. Conceber a ética no plano da estética significa romper com os modelos padronizados de ação e criar valores que sejam capazes de sustentar a vida com graça e leveza. Esculpir formas de beleza na vida. Revestir a vida de beleza, enfeitá-la sem ofuscar sua dramaticidade.

Nietzsche defendia uma época trágica, em que a arte ocuparia o lugar da ciência e da religião: um tempo em que a humanidade teria atrás de si a consciência da mais dura, da mais necessária das guerras, sem sofrer com isso. Para conduzir o barco da vida, é preciso coragem e determinação. Aventurar-se por este imenso mundo exige um gesto de heroísmo, pois viver não é uma tarefa fácil.

Fernando Pessoa, o grande poeta da língua portuguesa, escreveu: "Navegar é preciso, viver não é preciso". Não há precisão nesta vida. Nada é certo, tudo é incerto. Então, navegar é preciso. Se as contingências desta vida se impõem como limite de nossas vontades, então, é preciso navegar. Se a vida deveria ser bem melhor do que é, então, é preciso navegar. fazer da vida uma obra de arte é nossa direção. Alçar âncoras e navegar é a exigência ética fundamental. GALLO, Sílvio. (coord.) Ética e cidadania. Caminhos da filosofia. Campinas. Papirus. 1999. 4ª edição.

Categorias básicas para entender Nietzsche:

Nihilismo: A partir da morte de Deus sobrou um grande vazio na cultura ocidental. Existem dois tipos de nihilismo: um passivo representado pelo homem indiferente e alheio a tudo e o ativo, aquele que emerge deste estado de letargia pela Vontade de poder.
Vontade de poder: O homem que tendo emergido do nihilismo fez a transmutação de todos os valores, invertendo-os. Que vive o Sin der Erde, o sentido da terra, o dionisíaco, fora dos padrões da moral cristã, uma moral de ressentimento com a vida e contra a vida. Este homem será um super-homem, der übermensch.
Super-homem: O homem que emergiu da Vontade de poder, que está além da cultura ocidental e do vazio nihilista.
O Eterno Retorno: Este homem, ou super-homem deseja o Eterno Retorno, isto é viver sempre





segunda-feira, 23 de julho de 2018

Brasil: uma biografia não autorizada. Francisco de Oliveira.

Sempre gostei muito do Francisco de Oliveira. Por isso quando vi - sobre o lançamento de seu novo livro, não hesitei em comprá-lo. Na verdade, não se trata de um novo livro. Trata-se de uma edição de textos já publicados anteriormente, mas que são de premente atualidade. O livro é composto de dois textos maiores, sendo que o primeiro deles serve de mote para o título do livro. Ele tem por título - O adeus do futuro ao país do futuro: uma biografia breve do Brasil. O segundo é - Quem canta de novo a L'Internationale, uma retrospectiva histórica do movimento operário brasileiro.
O livro é uma reedição de textos.

Os textos menores são - hegemonia às avessas; o avesso do avesso; a clonagem e jeitinho e jeitão. Seguem compilações de entrevistas suas sobre diversos temas como as suas origens, sobre Miguel Arraes, sobre o golpe de 1964, sobre as suas prisões, sobre a USP, sobre a social democracia, sobre o totalitarismo neoliberal, sobre o lulismo, sobre a hegemonia às avessas, sobre o PSOL, sobre o MST, sobre o golpe institucional, sobre o governo Temer, sobre a herança socialista, sobre os intelectuais e a crítica social no Brasil e sobre crítica e utopia.

O primeiro texto é primoroso e profundamente impregnado de pessimismo. Não há futuro para o Brasil, o apregoado país do futuro. Dou os subtítulos: síntese da formação histórica brasileira; o lugar do Brasil na América Latina; a vertigem da aceleração: quinhentos anos em cinquenta e um epílogo provisório. O texto, como síntese, é uma preciosidade e vale o livro. Ocupa as páginas 27 a 78. O total é de 174. Destaco um parágrafo, que também é destacado na contracapa:

"Desde logo, eis os elementos do truncamento que alimentou a autoironia dos brasileiros, às vezes cáustica, mas baseada em fatos: uma independência urdida pelos liberais, que se fez mantendo a família real no poder e se transformou imediatamente numa regressão quase tiranicida; um segundo imperador que passou à história como sábio e não deixou palavra escrita, salvo cartas de amor um tanto pífias; uma abolição pacífica, que rói as entranhas da monarquia; uma república feita por militares conservadores, mais autocratas que o próprio imperador". Dou também a frase final do texto: "Obrigado, Cacá Diegues: Bye-bye, Brasil".

O título tem a sua origem em Stefan Zweig, o suíço que, refugiado do nazismo e maravilhado com o país, profetizou que o Brasil seria o país do futuro. Futuro que, no entanto, não se concretizou. Em todos os momentos de nossa história, que poderiam ser marcados pela ruptura, um forte conservadorismo sempre prevaleceu. E a decepção maior veio com os governos do PT, que praticaram a hegemonia às avessas, quando os trabalhadores foram os condutores morais do capitalismo, mas não assumiram o seu direcionamento econômico. Este ficou em poder da burguesia, e pior, da burguesia financeira. É óbvio que esta crítica aos governos do PT foi a maior motivação da escrita do livro. A questão financeira marca hoje a centralidade da política brasileira.

Francisco de Oliveira foi um dos fundadores do PT mas o abandonou assim que ele chegou ao poder, quando Lula empreendeu a Reforma da Previdência do setor público, seguindo as pegadas de FHC, de sua reforma que atingiu o setor privado. Neste bojo surgiu o PSOL, partido ao qual aderiu, e que, conforme diz, não veio com perspectivas de poder, de corrigir os erros do PT, mas de manter viva a crítica. A maior das críticas se dirige ao Bolsa família, medida que diminuiu a fome, mas não combateu a desigualdade.
A esdrúxula figura do ornitorrinco também está presente no livro.

Para aguçar a curiosidade, transcrevo ainda dois parágrafos da orelha: "Sem papas na língua, Francisco de Oliveira analisa a "hegemonia às avessas" dos governos Lula e Dilma, em que governos eleitos com base popular - promovendo "políticas assistencialistas de funcionalização da pobreza" - dariam garantia de continuidade à dominação burguesa neoliberal, a exemplo do que ocorreu sob a liderança de Mandela na África do Sul.

Escritas no auge do Lulismo e lidas hoje, as reflexões aqui reunidas ganham um sentido profético. Mas nem por isso o autor se deixou levar pela direita: confessa que, apesar das críticas, votou em Lula e em Dilma nas três últimas eleições (ainda que apenas no segundo turno). Isso mostra o tamanho da encrenca em que a esquerda brasileira está metida, para não falar como já dizia outro velho barbudo, ter consciência do problema já é um primeiro passo para encontrar a solução".

A crítica ao Lula vai do culto da personalidade, fenômeno que deveria estar ausente no moderno conceito de democracia, ao lulismo, "uma perversão do petismo". O lulismo se tornou possível graças ao assistencialismo praticado pelo Bolsa Família. Como Francisco de Oliveira confessou ter votado em Lula e Dilma no segundo turno, pressupõe-se que ele tenha visto alguma coisa boa neles, mas isto não aparece ao longo do livro. Dilma é vista apenas como o clone do Lula. O texto sobre o sindicalismo é muito bom e foca especialmente os sindicatos de metalúrgicos e São Paulo e de São Bernardo do Campo.


sexta-feira, 20 de julho de 2018

O Infante de Parma. A educação de um príncipe iluminista. Elisabeth Badinter.

Este livro me traz recordações dos debates que fazíamos na Universidade Positivo, entre os professores do curso de Publicidade e Propaganda. Nestes debates se destacavam o professor Leonardo Ferrari e o André Tezza, então coordenador do curso. Bons tempos. Como vou fazer uma fala, retomei o livro. Nele tenho registrada a data de 2010. O livro? Sim. O Infante de Parma - a educação de um príncipe iluminista. A autora é Elisabeth Badinter. Se quiséssemos fazer deste livro uma interrogação, ela, certamente, poderia ser esta: A educação sempre produz os resultados que dela se esperam?
Um livro para educadores. Reflexões muito apropriadas.

Vamos situar devidamente o tempo do infante, cuja educação/formação é o tema. Ele nasceu em 1751 e morreu em 1802 e o seu reinado ocorreu entre os anos de 1765 até o ano de sua morte, em 1702. São os tempos do auge do absolutismo na política, mas são também os tempos em que o iluminismo começa a despontar com força, produzindo, inicialmente, os chamados despotismos esclarecidos. No horizonte já se vislumbra a Revolução Francesa, fruto maior do ideário iluminista. Lembro de uma frase de Kant (1724-1804) que bem pode sintetizar este período:

"Nossa época é propriamente a época da crítica, à qual tudo tem de submeter-se. A religião, por sua santidade, e a legislação por sua majestade, querem comumente esquivar-se dela. Mas desse modo suscitam justa suspeita contra si e não podem ter pretensões àquele respeito sem disfarce que a razão somente outorga àquilo que foi capaz de sustentar seu exame livre e público. São os tempos, que ainda segundo Kant, do Sapere aude, tempos em que, pela razão, nos libertaríamos de um mundo de superstições e de crendices.

O reino ou ducado de Parma em questão, dentro da geopolítica da época, era controlado pelo reino da França. Pelas interligações de família sofria influências também da Espanha e da Áustria, mas geograficamente se situava dentro da Itália, com toda a força do papado de Roma. Dois educadores franceses, expoentes do iluminismo, Auguste de Keralio e Etienne de Condillac seriam responsáveis pela formação do infante Ferdinando. Elisabeth Badinter acompanha os anos de sua formação e o comportamento do infante, à frente do ducado.

Após uma breve introdução o livro se estende por cinco capítulos, devidamente subdivididos: Vejamos: 1. Os primeiros anos. Antes da chegada do tutor (1751-56) e, Sozinho com Keralio (1757-58). 2. A educação de um príncipe iluminista (1758-69). Da infância à adolescência (1758-64), com os subtítulos: Da teoria à prática; os bastidores e - dividido entre exigências contraditórias. Missão cumprida, com dois subtítulos: A reputação de um príncipe esclarecido e a secreta preocupação dos professores. 3. Um mito que se vai pelos ares (1769-71). Casamento e crise de adolescência; uma onda de ódio e uma guerra sem misericórdia. 4. De quem é a culpa? O enigma do príncipe; o processo dos professores e a decepção dos filósofos. 5. O príncipe dos carolas (1772-80). Enfim, livre: livre para governar segundo suas convicções e livre para viver a seu bel prazer. O livro se encerra com a conclusão de que sobrou apenas um homem dilacerado e uma esperança frustrada.

Deixo o primeiro parágrafo da conclusão. "A maioria não quis ver em Ferdinando senão o príncipe das trevas, o arquiteto obscurantista de uma política reacionária, que teria voltado as costas para os ensinamentos de seus mestres. Um devoto epicurista, bem distante das esperanças depositadas nele". Entre os desastres de seu governo estaria a sua submissão ao papa e a restauração do tribunal da inquisição. Uma irônica conclusão também poderia ser a de que a concessão da graça prevaleceu sobre a razão.

A riqueza do livro está nas questões que são suscitadas pela autora, uma especialista em iluminismo. Um dos destaques é a questão da severidade e dos castigos, por todos odiados, mas aos quais, até os príncipes eram submetidos. No quarto capítulo se discute a questão da adolescência, sobre seus arroubos ou sobre a emancipação buscada a partir dessa idade e, ainda, o confronto entre os filósofos franceses e os religiosos italianos. Mas uma questão me chamou particular atenção. São os apontamentos de Isabella, a irmã de Ferdinando. Reflexões nunca publicados mas que são universais e, portanto, atemporais sobre a educação. Vejamos:

"Entretanto, sua irmã Isabella, que assiste as aulas e certamente testemunha a severidade dos professores, tira disso uma lição espantosamente moderna. Redige as Reflexões sobre a educação, que vão exatamente na contramão da que ela mesma e seu irmão receberam. Não apenas atribui aos pais a responsabilidade por todos os fracassos na educação dos filhos, como ataca o autoritarismo e o rigor daqueles a quem eles a delegam. Denuncia os perigos da educação dada pelos primeiros, que torna as crianças violentas, impacientes e manhosas, e da ministrada pelos segundos, que nasce da dureza do coração e da baixeza de sentimentos. Esta não corrige, não inspira respeito..., inspira ódio e desejo de vingança, desconfiança, desejo de enganar, exclui todo sentimento, tornando o indivíduo duro e insensível, capaz de todo mal. Opõe-lhes a delicadeza, desprezada nos dias de hoje, mas que conquista o coração das crianças e cria gratidão, afeto, franqueza, forma seu espírito e seu coração, tornando-as dóceis e fáceis de orientar". Um livro para quem se interessa efetivamente pela educação.


quarta-feira, 18 de julho de 2018

A Festa do Bumba-Boi no Maranhão. José Ribamar S. Reis.

Uma das minhas atividades em São Luís foi a de vasculhar um sebo. Ele tinha um belo nome: Poeme-se. Ele se situa na região, possivelmente, a mais histórica da cidade, a Praia Grande. Pouca coisa encontrei que me interessasse, mas não me passou despercebido um pequeno volume, sob o título de O ABC do Bumba-Boi do Maranhão. A autoria é de José Ribamar Sousa dos Santos.
O ABC do Bumba-Boi, de José Ribamar Sousa dos Reis.

Para quem se interessar passo o sumário do pequeno livro: O que é a brincadeira de Bumba-Boi no Maranhão; o ciclo do Bumba-Boi maranhense; o auto do Bumba-Boi; principais indumentárias do bumba-boi conforme o estilo ou sotaque; principais ritmos (estilos ou sotaques) do bumba-boi; média do tamanho das armações ou capoeiras dos bois conforme o sotaque ou estilo; quadro do formato da capoeira e cabeça do boi de brinquedo com as semelhanças das raças de gado vacum existentes no estado do Maranhão; instrumentos utilizados no bumba-boi de acordo com o ritmo; os maiores eventos do ciclo do bumba-boi; uma lenda de amor; as revoluções culturais, atuais, do bumba-boi; mini glossário boieiro, ABC básico para a caracterização de um grupo de Bumba-boi do Maranhão e referências. Bumba-meu-boi, bumba-boi ou boi são as três designações que o evento pode receber.

O que é ele, o bumba-boi, afinal de contas? José Ribamar nos responde: "É deveras diversificada esta manifestação da Cultura Popular Maranhense nas suas mais inúmeras modalidades de lazer, diversão, religiosidade, misticismo, drama, festa que aglutina um universo de homens e mulheres, denominados de brincantes ou baiantes, que em homenagem ao Gado Vacum por ser aliado e por demais serviu ao homem, se concentram com as finalidades: de cantar, tocar e dançar ao redor de uma armação de um Boi de Brinquedo". Quando ocorre este brinquedo? O mesmo José Ribamar nos responde:

"O ciclo da brincadeira do Bumba-Boi no Maranhão tem seu início no sábado de Aleluia (início dos ensaios) e seu término acontece por volta do final de setembro ou início de outubro com a morte do boi". A apogeu da festa se dá no mês de junho, no dia de São João. José Ribamar também nos conta sobre a vinculação da festa ao sebastianismo: "O batizado do Bumba-Boi maranhense é vinculado, também, à interseção deste folguedo com o sebastianismo ou a MINA. Assim, o Bumba-Boi inicia sua dramaturgia conforme a LENDA DO BOI SEBASTIÃO, na qual se diz que no dia 23 de junho, véspera de São João, Rei Sebastião se transforma em reluzente touro negro encantado, com uma estrela de ouro na testa na Praia dos Lençóis, no município maranhense de Curupuru". Esta vinculação confere identidade ao Bumba-Boi do Maranhão, diferenciando-o dos demais estados".
As vestimentas para festa do Boi.

Mas, afinal de contas, qual é o enredo desta brincadeira, que, por ser uma brincadeira de escravos, nem sempre foi tolerada? vejamos o enredo: "A lenda principal da brincadeira é narrada a partir de fato que teria acontecido a um casal de negros escravos de uma determinada fazenda; o homem chamado Francisco (Chico, Pai Francisco), e a mulher, Catarina (mãe Catarina). Esta grávida e desejosa, exige do seu homem que ele lhe traga língua de boi para comer. Assim Pai Francisco rouba o mais bonito touro do seu patrão - dono da fazenda -, e quando está no início da matança é descoberto. Logo se constitui enorme tristeza, pois o novilho mais querido do fazendeiro (dono) está praticamente morto. Tomando ciência do acontecimento, o patrão manda o capataz apurar o caso. De imediato os vaqueiros apontam Chico como o autor da façanha. Um grupo é formado para prender o acusado que, ao ser localizado, reage, luta e se recusa a ir à presença do patrão, sendo necessária a formação de uma equipe de índios (em virtude de que Pai Francisco se embrenhou nas matas fechadas e os indígenas conhecem melhor os segredos e veredas dessas regiões de difícil acesso), logo mobilizada. Assim, dominam Pai Francisco que, despojado de suas armas - espingarda e facão -, é conduzido até o patrão. Preso o nego Chico, este terá de dar conta do boi, sob pena de pagar com a própria vida.


Pai Francisco passa por violento interrogatório e, de início, nega qualquer envolvimento com o roubo do novilho. Mas, finalmente, resolve confessar o crime. Em virtude disto, toda a fazenda é mobilizada para salvar o boi. Então, são chamados primeiramente, os doutores, os quais não conseguem reanimar o animal. De acordo, com sugestão de um dos índios presentes, na ocasião, o dono da fazenda, manda buscar os pajés da tribo mais próxima, que através de suas feitiçarias, conseguem finalmente ressuscitar o animal, para alegria de todos da fazenda, pois o homem e o boi estavam salvos". Todos estavam salvos e prontos para festejar. O Bumba-Boi é, pois, uma bela lenda de amor.

terça-feira, 17 de julho de 2018

Nietzsche. O Dionisíaco e o socrático.

Este texto tem por finalidade atender ao grupo de leituras "Formação do Pensamento Ocidental". Visa dar referências para facilitar a leitura de O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo, onde está a grande crítica de Nietzsche ao mundo orientado pela racionalidade. O texto é retirado de Nietzsche - Obras incompletas da Nova Cultural, de sua introdução, numa edição de 1999.
Uma bela edição de O Nascimento da Tragédia.

O Dionisíaco e o socrático: Nietzsche enriqueceu a filosofia moderna com meios de expressão: o aforismo e o poema. Isso trouxe como consequência uma nova concepção de filosofia e do filósofo: Não se trata mais de procurar o ideal de um conhecimento verdadeiro, mas sim de interpretar e avaliar. A interpretação procuraria fixar o sentido de um fenômeno, sempre parcial e fragmentário; a avaliação tentaria determinar o valor hierárquico desses sentidos, totalizando os fragmentos, sem, no entanto, atenuar ou suprimir a pluralidade. Assim o aforismo nietzschiano é, simultaneamente, a arte de interpretar e a coisa a ser interpretada, e o poema constitui a arte de avaliar e a própria coisa a ser avaliada. O intérprete seria uma espécie de fisiologista e de médico, aquele que considera os fenômenos como sintomas e fala por aforismos; o avaliador seria o artista que considera e cria perspectivas, falando pelo poema. Reunindo as duas capacidades, o filósofo do futuro deveria ser artista e médico-legislador, ao mesmo tempo.

Para Nietzsche, um tipo de filósofo encontra-se entre os pré-socráticos, nos quais existe unidade entre o pensamento e a vida, esta "estimulando" o pensamento, e o pensamento "afirmando" a vida. Mas o desenvolvimento da filosofia teria trazido consigo a progressiva degeneração dessa característica, e, em lugar de um pensamento afirmativo, a filosofia ter-se-ia proposto como tarefa "julgar a vida", opondo a ela valores pretensamente superiores, medindo-a por eles, impondo-lhes limites, condenando-a. Em lugar de filósofo-legislador, isto é, crítico de todos os valores estabelecidos e criador de novos, surgiu o filósofo metafísico. Essa degeneração, afirma Nietzsche, apareceu claramente com Sócrates, quando se estabeleceu a distinção entre dois mundos, pela oposição entre essencial e aparente, verdadeiro e falso, inteligível e sensível. Sócrates "inventou" a metafísica, diz Nietzsche, fazendo da vida aquilo que deve ser julgado, medido, limitado, em nome de valores "superiores" como o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o bem. Com Sócrates, teria surgido um tipo de filósofo voluntário e sutilmente "submisso", inaugurando a época da razão e do homem teórico, que se opôs ao sentido místico de toda a tradição da época da tragédia.

Para Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o saber místico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma "chave" que abre o caminho essencial do mundo. Mas Sócrates interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem causas e causas sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia na categoria das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a seus discípulos que se abstivessem dessas emoções "indignas de filósofos". Segundo Sócrates, a arte da tragédia desvia o homem do caminho da verdade: "uma obra só é bela se obedecer à razão", fórmula que, segundo Nietzsche corresponde ao aforismo "só o homem que conhece o bem é virtuoso". Esse bem ideal concebido por Sócrates existiria em um mundo supra-sensível, no "verdadeiro-mundo", inacessível ao conhecimento dos sentidos, os quais só revelariam o aparente e irreal. Com tal concepção criou-se, segundo Nietzsche, uma verdadeira oposição dialética entre Sócrates e Dionísio: "enquanto em todos os homens produtivos o instinto é uma força afirmativa e criadora, e a consciência uma força crítica e negativa, em Sócrates o instinto torna-se crítico e a consciência criadora". Assim, Sócrates, o "homem teórico", foi o único verdadeiro contrário do homem trágico e com ele teve início uma verdadeira mutação no entendimento do Ser. Com ele, o homem se afastou cada vez mais desse conhecimento, na medida em que abandonou o fenômeno do trágico, verdadeira natureza da realidade, segundo Nietzsche. Perdendo-se a sabedoria instintiva da arte trágica, restou a Sócrates apenas um aspecto da vida do espírito, o aspecto lógico-racional; faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto irrefreado de tudo transformar em pensamento abstrato, lógico, racional. Penetrar a própria razão das coisas, distinguindo o verdadeiro do aparente e do erro era, para Sócrates, a única atividade digna do homem. Para Nietzsche, porém, esse tipo de conhecimento não tarda a encontrar seus limites: "esta sublime ilusão metafísica de um pensamento puramente racional associa-se ao conhecimento como um instinto e o conduz incessantemente a seus limites onde este se transforma em arte".

Por essa razão, Nietzsche combateu a metafísica, retirando do mundo supra-sensível todo e qualquer valor eficiente, e entendendo as ideias não mais como "verdades" ou "falsidades", mas como "sinais". A única existência, para Nietzsche, é a aparência e seu reverso não é mais o Ser; o homem está destinado à multiplicidade, e a única coisa permitida é a sua interpretação (Página 9-10).

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"As duas decisivas novidades do livro são, primeiro, a compreensão do fenômeno dionisíaco nos gregos - oferece a primeira psicologia dele, enxerga nele a raiz de toda a arte grega. Segundo, a compreensão do socratismo: Sócrates pela primeira vez reconhecido como instrumento da dissolução grega, como típico decadente. 'Racionalidade' contra instinto. A 'racionalidade' a todo preço como força perigosa, solapadora da vida! - Profundo e hostil silêncio sobre o cristianismo em todo o livro. Ele não é apolíneo nem dionisíaco; nega todos os valores estéticos - os únicos valores que o Nascimento da tragédia reconhece". Nietzsche em Ecce Homo.
Textos básicos, uma bela seleção de Danilo Marcondes.


Friedrich Nietzsche (1844 - 1900) foi um dos filósofos mais críticos da tradição filosófica racionalista e iluminista, sendo que sua crítica está na raiz do que podemos chamar de "crise da modernidade", tendo influenciado filósofos contemporâneos como Heidegger, Foucault e outros.  Nascido em Roecken, na Prússia, Nietzsche estudou em Bonn e em Leipzig, tornando-se professor de filologia clássica na Universidade de Basileia, na Suíça, em 1869. Sua primeira obra importante foi O nascimento da tragédia (1871), em que dá início à reinterpretação da filosofia grega em suas origens, considerando-a como ponto de partida do racionalismo que viria a dominar toda a tradição filosófica. Influenciado por Schopenhauer e amigo do compositor Richard Wagner, com quem depois rompeu, Nietzsche formulou uma filosofia que busca ser "afirmativa da vida" e valoriza a vontade. Crítico da moral cristã, em Além do Bem e do Mal (1886) e na Genealogia da Moral (1837) faz uma análise devastadora da moral tradicional que considera  baseada na culpa e no ressentimento.

Nietzsche escreveu frequentemente sob a forma de aforismos e seu estilo poético e fragmentário é parte de sua concepção filosófica antiteórica e assistemática, buscando criar um novo filosofar de caráter libertário e visando superar as formas limitadoras da tradição".  MARCONDES,  Danilo. Textos Básicos de Filosofia. Rio de Janeiro, Zahar, 2000. Página 139.

segunda-feira, 16 de julho de 2018

A Saga da raça negra. Os Tambores de São Luís. Josué Montello.

Uma bem planejada viagem me levou à cidade de São Luís do Maranhão. Faria a chamada "Rota das Emoções", que liga a cidade de São Luís do Maranhão a Fortaleza, no Ceará, pelas belezas de seus litorais. Três verdadeiras maravilhas maiores estão no caminho, fora as atrações menores: os Lençóis Maranhenses, o Delta do rio Parnaíba e o povoado/praia de Jericoacara. Um passeio maravilhoso. Viajei eu, junto com todas as minhas curiosidades.
O romance da escravidão brasileira. Uma saga de sofrimentos.


São Luís me surpreendeu. Cheguei pelo meio da tarde, numa viagem com saída de Curitiba, que me fez passar por Belo Horizonte e Belém para, finalmente, chegar em São Luís. Me hospedei em pleno centro da cidade, ao lado da catedral da Sé, no Grand São Luís Hotel, situado sobre a história da cidade e com vistas para os jardins do Palácio dos Leões. Uma chuva impediu a continuidade de minha primeira incursão pela cidade. De noite, a precaução me fez ficar no hotel.

No dia seguinte eu teria pela frente um city tour.  Fátima, a guia, me recebeu e começamos a andar pela cidade. Rua Grande, o Largo do Carmo, o Liceu Maranhense, O Teatro Arthur Azevedo, a fonte do Imperador, A Sé, O Tribunal de Justiça, O Palácio dos Leões, e pela parte antiga da cidade (Praia Grande), onde se situa o comércio do artesanato e as casas de criatividade das tradições maranhenses. São Luís tem mais de 3.500 casarões que são Patrimônio Cultural da Humanidade (1997). Fátima me falava dos casarões e de suas histórias. Me falava dos horrores da escravidão e de uma senhora, tão famosa quanto perversa. Dona Ana Jansen, ou Donana, como constatei depois, com a leitura dos tambores.  Perguntei sobre literatura e ela me falou de Josué Montello.

Depois de um almoço no restaurante do SENAC, refiz muitos dos locais e me enveredei por um sebo, de péssimo atendimento. Comprei algo referente a São Luís e ao Bumba-Boi, mas nada que me satisfizesse. Deixaria para a volta, confiando na Estante Virtual. Foi aí que localizei Os Tambores de São Luís, do escritor maranhense, Josué Montello. Já sabia que São Luís tinha a nobre marca de ser a Atenas brasileira, isto é, uma cidade de forte presença cultural. Eu conhecia pouco. Chegava em Aluísio de Azevedo e o seu O Mulato, romance ocorrido em terras maranhenses.

Quando Os Tambores de São Luís me chegou, me impressionei. 619 páginas, sem ilustrações, sem separação por capítulos e, letra miudinha. Iniciei a leitura imediatamente. Foi uma volta às ruas de São Luís. O romance é pretensioso. Os seus personagens são fantásticos. Josué Montello demonstra muito conhecimento sobre o ser humano na construção de seus personagens. Damião é o grande nome, secundado por Genoveva Pia, a doceira protetora dos negros, Dona Santinha, sua sucessora e Altino Celestino dos Anjos, que mesmo negro e escravo, chegou a ser barão, coisas da Balaiada. O barão era extremamente bem humorado e conciliador. Era o companheiro de seu senhor.  Do outro lado estão os personagens do mal, especialmente duas Anas. Donana Jansen e Ana Rosa, pior ainda do que Donana, personagens reais da história maranhense.

Como é difícil fazer uma resenha de um livro tão denso, recorro ao próprio livro para dar valiosas dicas para a sua leitura. A primeira é da história da concepção e escrita do livro. Antes lembrando que Josué Montello é maranhense, nascido em 1917 e que morreu no Rio de Janeiro, em 2006. Não foi apenas membro da Academia Brasileira de Letras, tendo sido também seu presidente. Mas deixemos o próprio Josué contar a história do livro:

"Quando pensei em voltar ao romance, retornando aos horizontes visuais de minha terra natal, depois de ter escrito o Cais da Sagração, que anda agora a correr o mundo, o que primeiro me aflorou à consciência, inspirando-lhe a germinação misteriosa, foi o ruído dos tambores da Casa das Minas, que ouvi em São Luís, na minha infância e juventude.
A presença dos tambores numa igreja de Santo Antônio, em Alcântara.


Depois, nas minhas caminhadas matinais em companhia de Jorge Amado, no calçadão da Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, por volta de maio ou junho de 1972, narrei-lhe o esboço do romance, que era o relato de uma dinastia de negros, todos com o nome de Damião, no curso de três séculos de história maranhense". No dia 24, ainda segundo o próprio Josué o romance estava concluído. Guardem bem este detalhe: o relato de uma dinastia de negros. Deixo ainda, na íntegra a orelha do livro:

"Os tambores de São Luís, considerado pela crítica nacional e internacional como um dos grandes romances da literatura e da língua portuguesa, é a grande saga do negro brasileiro, nas suas lutas, nos seus dramas e na sua tragédia.

Antes do romance de Josué Montello, tínhamos o romance da Abolição, ou seja: o romance episódico da campanha pela libertação da raça negra (Seria uma referência a Úrsula, de Maria Firmina dos Reis?). Faltava o romance que, em tom épico, apresentasse toda a saga do negro, desde a sua origem africana, no bojo dos navios negreiros, até à sua assimilação racial, como componente do tipo brasileiro e como elemento básico de sua cultura.

Josué Montello, criado a ouvir o bater dos tambores da Casa das Minas, em São Luís do Maranhão, construiu este romance do negro brasileiro com habilíssimo recurso técnico. Toda a narrativa de Os Tambores de São Luís decorre durante uma noite e algumas horas da manhã seguinte (Seria uma referência ao Ulisses de Joyce?). Mas, dentro desse espaço de tempo, que constitui seu arco narrativo básico, outro arco se abre, para conter, ao longo da epopeia romanesca, três séculos de lutas e insurreições negras.

Saudado pela crítica como um marco no conjunto romanesco de seu autor, também o é na própria literatura brasileira, quer pelo seu tom narrativo, quer pela intensidade dos dramas que aqui se debatem, aliciando o leitor à sua leitura contínua.

Mais de quatrocentos personagens compõem a galeria humana de Os Tambores de São Luís. Superior a O cortiço, de Aluísio de Azevedo, como elenco de personagens, filia-se este romance à linha narrativa de Guerra e paz, de Tolstoi, com seu vigor épico". A seguir informa que o livro foi traduzido para o francês e para o alemão, e conclui: " Os Tambores de São Luís corresponde também ao resgate de uma velha dívida - a dívida contraída para com a raça negra, em nosso país, e que merecia, de nossa literatura, o seu canto em prosa, a sua verdade e a sua denúncia".

Convento do Carmo, sempre presente no romance.


Quero destacar ainda a força das reflexões feitas por Damião, o grande personagem, a respeito do sofrimento dos negros, bem como uma reflexão sua a respeito de sua formação dentro da luta, quase sempre em tom de desespero, sempre complementada pela leitura. Vejam a beleza desta frase: "Vira nascer agora o seu primeiro trineto, e era ainda um homem de cabeça lúcida, passo firme e memória feliz. Vivia rodeado de lembranças, na velha casa onde duas vezes se casara; e ali aprimorara a inclinação para encontrar nos livros a complementação da vida, com o gosto da leitura".

De uma informação recebida de São Luís, a partir do blog, já encomendei Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Úrsula é considerado o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira. E que diferença com o conciliador Casa Grande & Senzala do Gilberto Freyre. Chamaria ainda a atenção para duas reflexões; A comparação entre os sofrimentos de Jesus Cristo e os da raça negra e uma inversão na criação do mundo, cuja origem seria diabólica e com pitadas de bondade, acrescentadas por Deus. Isto, em virtude de toda a maldade existente no mundo. Destaque ainda para, já na parte final, descrever a saga de sofrimentos do dia seguinte ao da abolição.

Um adendo. 02.02.2021.Do livro: Raízes do conservadorismo brasileiro - a abolição na imprensa e no imaginário social, de Juremir Machado. Capítulo 31. O 13 de maio na ficção ou como ficção?. Sobre o livro de Josué Montello; "Talvez o melhor romance sobre a escravidão tenha sido Os tambores de São Luís, escrito por um autor medíocre, Josué Montello, em 1975 (O que é isso, Juremir?). É a história do negro Damião. Cada grande momento da luta pela abolição é repassado na vivência da cidade de São Luís do Maranhão, entre eles os episódios das leis do Ventre Livre e dos Sexagenários. O ápice, claro, seriam os seis dias de maio de 1888. O personagem João Moura diz a Damião: "Venha, venha comigo. O governo acaba de enviar à Câmara o projeto de lei que extingue a escravidão. Vamos ver o telegrama na redação do Pacotilha".  [...] pp. 383-384.

terça-feira, 10 de julho de 2018

A Última Quimera. Ana Miranda.

Um livro enigmático, a partir da própria palavra título do livro. O que seria uma quimera? A autora responde, na apresentação do livro, com um texto de Borges. Quimera está presente ao longo de toda a história da literatura. Significa o impossível, ou "Idea falsa, vana imaginación". A Última quimera é, na realidade, a biografia do poeta paraibano Augusto dos Anjos. Especialmente ele, uma quimera. Um ser humano de uma existência complexa.
Augusto dos Anjos, Olavo Bilac e outros ilustres estão aqui retratados.

O poeta Augusto dos Anjos nasceu no estado da Paraíba, onde não encontrou espaço para a sua afirmação, em virtude das negações do governador em ajudá-lo. Isso o fez procurar a sorte no Rio de Janeiro, onde não teve melhor sorte. As ajudas ficavam nas promessas dos políticos. Queria apenas um emprego que lhe desse a necessária sustentação na vida. Este emprego, ele foi encontrar em Minas Gerais, na cidade de Leopoldina, como professor na escola desta cidade.

Possivelmente a parte mais inusitada e original do livro seja a presença do narrador. O personagem está presente em todos os acontecimentos da vida de Augusto, a começar pela infância, vivida em conjunto na Paraíba, até os desejos por Esther, com quem Augusto se casou e teve filhos. O narrador também é um poeta e tem uma condição financeira bem melhor que a de Augusto. O narrador está envolvido com Camila, a quem acolheu e é tida como desaparecida. Ela é portadora de tuberculose. O narrador também esteve envolvido com Marion, que se tornou freira. Esther, depois de viúva, se casa com outro professor, sem sofrer a condenação do narrador.

Mas não é apenas Augusto dos Anjos o tema do livro. Também aparece Olavo Bilac, Rui Barbosa, a Revolta da Chibata, com os canhões voltados para a cidade do Rio de Janeiro, apontando, na verdade, para a angustiosa existência do narrador. Também a modernização da cidade está presente. Como podem observar, a data da morte de Augusto é o ano de 1914. Esta data é fundamental para localizar os acontecimentos da cidade, com uma pequena volta no tempo, quando Augusto e o narrador chegam à cidade.

O livro é divido em cinco partes, divididas em capítulos e estes em pequenos tópicos, em geral ocupando duas páginas, quando não apenas uma só. As cinco partes são: Parte um: Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1914 (data do falecimento de Augusto dos Anjos, em Leopoldina); parte dois: a viagem; parte três: Leopoldina - MG.; parte quatro: De volta para o Rio de Janeiro e parte cinco: Epílogo.

Na primeira parte, dedicada ao Rio de Janeiro, os capítulos tem os seguintes títulos: A plenitude da existência, onde os principais personagens são situados; Eu, a obra poética de Augusto, que não tem boa acolhida; A luz lasciva do luar, onde entra em cena Olavo Bilac e seus confrontos com Raul Pompeia e, ainda, a morte de Augusto em Leopoldina; a triste dama das camélias, onde são reveladas as aflições e tristezas de Camila e seu envolvimento com o narrador, que a deixa escarrando sangue para ir ao enterro de Augusto e ao encontro de Esther; O morcego tísico, onde entra em cheio na biografia de Augusto e a sua ida para Minas, para dirigir a escola da cidade. Leopoldina era chamada de "Atenas da Mata". Ali o poeta morre em consequência de uma pneumonia.

A parte dois, dedicada à viagem para Minas Gerais, tem por títulos: O terror como leitmotiv, onde o narrador relata seu drama de consciência pelo abandono de Camila, enquanto novos personagens se integram na narrativa, na viagem para o enterro; uma simplicidade campesina, capítulo dedicado às reminiscências da infância vivida na Paraíba. Interessantes revelações sobre a personalidade de Augusto são feitas.
Busto em homenagem a Ciro dos Anjos na Academia Paraibana de Letras.

A parte três é dedicada à cidade mineira de Leopoldina, que passa a ser descrita, segundo as observações do narrador. Tem os seguintes títulos: Lagarta negra. O tema mais uma vez é Augusto, o seu funeral e enterro, a participação da população, até as prostitutas, também presentes na sua poesia, o epitáfio - Poeta paraibano - e outras descrições da cidade; Esther em negro, onde na primeira parte ainda é examinada a poesia de Augusto para depois falar do reencontro do narrador com Esther; A lua provinciana: o tema são as crianças de Augusto, Guilherme e Glória e o luar da cidade interiorana. A sua contemplação propicia novas reflexões; Tristes vidros violeta, apresentando o violeta e roxo como as cores da semana santa, as cores da vida de Augusto, apresentado ao narrador pelo padre da cidade, como um grande humanista; o rosto da morte, o rosto de Esther à janela; um urubu pousou na minha sorte, que marca a passagem de um professor amazonense na vida de Esther e Et perdez-vous encore le temps avec des femmes, que marca o retorno do narrador para Camila.

A parte quatro é marcada pelo retorno ao Rio de Janeiro, com dois capítulos: Marca de fogo, onde são queimados todos os pertences do narrador, inclusive seus poemas, por contato com Camila, acometida pela tuberculose e um mundo infinito, dedicado à velhice e às demências do ocaso de Olavo Bilac.

A quinta parte tem por título: Epílogo. Tem um único capítulo: A roda da vida. Onde é traçado o destino de todos os personagens envolvidos na trama. O narrador é saudado como o "Príncipe dos Poetas", título que pertence a Olavo Bilac, mas este não é paraibano, como o narrador. Depois da morte de Augusto, o seu livro EU, vende mais de 50.000 cópias em muito pouco tempo. O livro é maravilhoso. Profundamente introspectivo. Seguramente Ana Miranda é uma grande romancista.


sexta-feira, 6 de julho de 2018

Confissões. Livro IX. 9. Mônica, Esposa Modelar.

Trabalhando junto a um grupo de leitura sobre a "Formação do Pensamento Ocidental", retomei a leitura das Confissões, o magistral livro de memórias de Santo Agostinho, possivelmente o primeiro do gênero. Santo Agostinho é um pensador fundamental na formação deste pensamento, ao procurar dar um caráter de racionalidade ao pensamento cristão, originário de uma dissidência dentro do judaísmo. Esta racionalidade, no entanto, deveria sempre estar submissa à fé, fé esta, revelada pelo próprio Deus. Transformou o mundo das ideias de Platão no mundo das ideias divinas reveladas.

Bem, a finalidade deste post não é a discutir a filosofia de Santo Agostinho. É sim, a de mostrar uma descrição de sua mãe, santa Mônica, decisiva na conversão do filho ao cristianismo. O foco é o da submissão da mulher, esposa, mostrando que o machismo tem profundas raízes históricas, construídas e difundidas com o auxílio da crença religiosa. "Bela, recatada e do lar, bem poderia ser a síntese do texto. Este se encontra em Confissões, Livro IX, 9.
O livro de Santo Agostinho.


MÔNICA , ESPOSA MODELAR

19. Educada assim na modéstia e temperança, Vós a tornáveis mais submissa aos pais do que eles a tornavam obediente a Vós. Quando chegou à idade núbil plena (12 anos), deram-na em matrimônio a um homem, a quem servia como a senhor. Procurava conquistá-lo para Vós, falando-lhe em Vós pelos seus bons costumes, com os quais a tornáveis bela, respeitosamente amável e encantadora aos olhos do marido. Sofria-lhe também as infidelidades matrimoniais com tanta paciência, que nunca teve discórdia alguma com o marido, por este motivo. Esperava que a vossa misericórdia, descendo sobre ele, o fizesse casto, quando crescesse em Vós.

Se o coração do marido era afetuoso, o temperamento era arrebatado. Mas ela sabia que era melhor não resistir à ira do esposo, nem por ações, nem por palavras. Logo que o via mais calmo e sossegado, oportunamente lhe dava a explicação de sua conduta, se por acaso ele irrefletidamente se irritava. Enfim, muitas senhoras, tendo maridos muito mais benignos, traziam no rosto desfigurado os vestígios das pancadas. Conversando entre amigas, enxovalhavam a vida dos esposos. Minha mãe repreendia-lhes a língua, admoestando-as seriamente como por gracejo. Lembrava-lhes que, desde o momento em que ouviram o contrato de matrimônio, como quem escuta a leitura de um documento pelo qual são feitas escravas, elas se deviam considerar como tais. Por este motivo, tendo presente essa condição, não podiam ser altivas com os seus senhores.

Estas matronas, conhecendo o mau gênio que ela suportava ao marido, admiravam-se de nada lhe ouvirem, nem por indício algum contar que Patrício lhe batesse ou que algum dia se desaviessem por questiúnculas domésticas. Perguntavam-lhe familiarmente a razão, e a minha mãe expunha-lhes seu modo de proceder, de que acima fiz menção. As que o punham em prática, depois de o experimentarem, felicitavam-na. As outras, que não faziam caso, continuavam a ser vexadas e oprimidas.

20. A princípio a sogra irritava-se contra ela, por causa de uns mexericos de escravas malévolas. De tal forma minha mãe a conquistou com afabilidades, com paciência e mansidão inalteráveis, que a própria sogra espontaneamente denunciou ao filho as línguas intrigantes das escravas como perturbadoras da paz doméstica entre a nora e ela, e lhe rogou que fossem castigadas. Com efeito, depois, Patrício dócil à mãe e solícito pelo bom governo da casa e pela concórdia entre os seus, mandou flagelar as culpadas, segundo o desejo de quem as acusara. A sogra declarou que podia esperar igual castigo quem quer que para lhe agradar lhe dissesse mal da nora. Ninguém ousou mais expor-se a tal risco, e viveram as duas em doce harmonia, digna de ser lembrada.

21. Concedestes ainda um grande dom a esta fiel serva em cujo seio me criastes, "ó meu Deus e minha misericórdia". Quando podia mostrava-se conciliadora entre as almas discordes e desavindas, a ponto de nada referir de uma à outra senão o que podia levá-las a reconciliar-se, ouvindo de um lado e de outro as queixas amargas, as quais costuma vomitar a discórdia encolerizada e cheia de ressentimentos, quando em presença de uma amiga, o vômito dos rancores contra a inimiga ausente desabafa em azedas confidências.

De pouca importância me parecia este bem, se uma triste experiência me não mostrasse que um grande número de pessoas - não sei por que horrendo contágio de malícia, já espalhado por muito longe -  não só repete a inimigos encolerizados o que uns, zangados, disseram de outros, mas ainda acrescenta coisas que eles não proferiram. Pelo contrário, deve ter-se em pouca conta para alguém dotado de sentimentos humanos o não atiçar ou não acender, com ditos malévolos, as inimizades dos outros, se não procura também, com boas palavras, extingui-las. Assim era minha mãe, como Vós, seu íntimo Mestre, a ensinastes na escola do coração.

22. Enfim, até Vos ganhou o marido, nos últimos tempos desta vida temporal, e não teve mais a lamentar nele o que sofrera antes de se converter. Era verdadeiramente a serva dos vossos servos! Todos os que a conheciam Vos louvavam, honrando-Vos e amando-Vos  nela, porque lhe sentiam no coração a vossa presença, comprovada pelos frutos de uma existência tão santa. Tinha sido "esposa de um só marido, saldara aos pais a sua dívida de gratidão, governara a casa piedosamente. Com as suas boas obras, dava testemunhos de santidade.

Educara os filhos, dando-os tantas vezes à luz, quantas os via apartarem-se de Vós. Enfim, ainda antes de ela adormecer no Senhor, quando já vivíamos unidos em Vós pela graça do batismo, era tão desvelada para todos - já que por vossa liberalidade permitis que nos dirijamos aos vossos servos - como se nos tivesse gerado a todos, servindo-nos como se fosse filha de cada um".
Flora Emília, num belo livro de Jostein Gaarder, apresenta as suas queixas contra Agostinho.

Comentários? Não. Apenas dizer que desta forma se consolidam verdades e tradições. São construções históricas, convenientes aos que dominam. Primeiro se divide (gênero, no caso), se hierarquiza, se naturaliza e se universaliza.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Rompendo o silêncio. Alice Walker.

Revendo o livro A cor púrpura, deparo com outro livro de Alice Walker. Trata-se de Rompendo o silêncio. Uma poeta diante do Horror em Ruanda, no Congo Oriental e na Palestina/Israel. Em A cor púrpura, Alice é mostrada como "internacionalmente conhecida por sua participação em movimentos pelos direitos civis, principalmente das causas negra e feminina". Como podemos ver, em Rompendo o silêncio, ela amplia o seu leque de indignações. A cor púrpura é de 1982 e Rompendo o silêncio é de 2010.
O livro de Alice Walker.


O estilo é o mesmo. Pequenos capítulos de duas a três páginas. Sempre cortantes pela delicadeza com que aborda os temas, mesmo sendo expressões do violento ódio que assola a humanidade. A questão de Ruanda recebe apenas um capítulo, bem explicativo de como os belgas plantaram o ódio que provocou um dos maiores genocídios da humanidade, entre os hutu e os tutsi. O  Congo Oriental ganha dois capítulos, mostrando o estupro como arma de guerra dos brancos e a sua ímpar crueldade, obrigando os filhos a comerem carne assada de seus próprios pais. Os demais 21 pequenos capítulos tem a Palestina/Israel como tema.

O título, Rompendo o silêncio, já nos induz que o livro se dedica a fazer denúncias. Estas são as cometidas pelo governo de Israel contra o povo palestino, sob o beneplácito incondicional do governo dos Estados Unidos. Ela descreve o que viu ao longo de uma viagem realizada à região, em nome de organizações internacionais das quais participa. Depois de mostrar Ariel Sharon como o "açougueiro" de Sabra e Chatila, relata a aprendizagem que os judeus tiveram com os americanos para praticarem os horrores na Palestina, numa reflexão que faz "sobre esse ciclo de violência que os humanos traçaram para si mesmos":

"Hitler aprendeu (parcialmente) dos americanos como "limpar" a Alemanha dos judeus, assim como usar cabelos de judeus para rechear colchões. Os cabelos dos indígenas há muito também, foram usados como recheio de colchões. Crianças e famílias indígenas foram massacradas, não porque fossem "selvagens" - um olhar à sua arte diz quem eles foram -, mas porque os colonos europeus que chegaram à América queriam suas terras. Assim como os israelenses quiseram e tomaram à força o território palestino. Do mesmo modo que os americanos, eles tentaram ocultar sua avareza e crueldade por trás de uma montanha de mitos: que ninguém vivia na Palestina, que os palestinos eram selvagens, que não havia nada parecido com um palestino (contribuição de Golda Meir), que os israelenses eram Davi e os palestinos Golias [...] Depois há Hollywood, que tem enorme responsabilidade por constantemente desconsiderar os árabes em geral, mas que, em se tratando da Palestina e de Israel, sempre projeta Israel como estando em seu direito, não importa o que façam...".

A narrativa prossegue contando sobre os bombardeios, os escombros e o medo com que os palestinos tem que conviver diariamente, das comidas que se tornam deliciosas à medida da dificuldade que tem em adquiri-las e também sobre os costumes como o caso do uso do véu e dos problemas que este hábito pode gerar. Nas conversas com o povo, tem uma mulher que aproveita para mandar um recado para Oprah, a famosa apresentadora de televisão. Alice promete transmitir o recado e assim descreve esta mulher:

"Essa bela mulher ri; em seguida, fala com seriedade. Não odiamos os israelenses, Alice, diz ela serenamente. O que odiamos é ser bombardeados, ver nossas crianças vivendo com medo, enterrá-las, morrer de fome e ser expulsos de nossa terra. Odiamos gritar eternamente para o mundo abrir os olhos e ouvidos para a verdade do que está ocorrendo e ser ignorados. Mas não odiamos os israelenses. Se eles parassem de nos humilhar e nos torturar, se parassem de tirar tudo que é nosso, inclusive nossas vidas, dificilmente pensaríamos neles. Por que o faríamos?"

O capítulo 18 tem por título "dominados pela dor". O transcrevo na íntegra: "Há uma sensação de derrota ao tentar confortar alguém cujo filho foi morto enquanto dormia e enterrado, algumas semanas antes, até o pescoço em escombros. Ou uma mãe que perdeu quinze membros da família, todos os filhos, netos, irmãos e irmãs, e o marido. O que dizer para as pessoas cujos familiares saíram de suas casas bombardeadas acenando bandeiras brancas somente para serem baleadas? Para mães cujos filhos estão, neste momento, brincando sobre os escombros tomados de fósforo branco que, depois de vinte e dois dias de bombardeio, se encontram em toda parte em Gaza? O fósforo branco, uma vez em contato com a pele, não para de queimar. Realmente, não há nada a dizer. Nada a dizer àqueles que, ao voltarmos para a América, não querem ouvir as notícias".

Termino com mais um relato dramático de destruição: "Eles destruíram a minha casa, disse, com bombardeios, e então vieram com escavadeiras e deceparam o limoeiro e as oliveiras. O exército de Israel já destruiu mais de dois milhões e meio de oliveiras e árvores frutíferas desde 1948".

Transcrevo ainda o capítulo 24. O mundo encontra sua voz: "O mundo, afinal, encontra sua voz sobre tudo aquilo que o prejudica. Nesse sentido, o duplo legado da catastrófica mudança climática (parte dela causada pela guerra) e da Internet veio para soltar a voz, mesmo a dos mais silenciosos. Ainda que o horror do que testemunhamos em lugares como Ruanda e Congo e Burma e na Palestina/Israel ameace a nossa própria capacidade de falar, nós falaremos. E, como quase todos no planeta agora reconhecem nossa marcha coletiva contra o desastre global, a menos que mudemos profundamente nossos métodos, nós seremos ouvidos.

Como solução ela apresenta a proposta da unidade territorial da Palestina, sem as separações, assim como aconteceu no caso do apartheid da África da Sul.

terça-feira, 3 de julho de 2018

A Rota das Emoções. 7. Fortaleza.

A minha "Rota das Emoções" chegaria ao seu final, com a última etapa da viagem. De Jericoacara até Fortaleza. Mais 280 quilômetros seriam percorridos em mais de 4horas. Primeiro andaríamos, mais uma vez, de carro traçado 4X4. Me assustei um pouco vendo um carro mais velho e aberto chegando à pousada. A mala foi posta no teto da carroceria. O guia/motorista foi logo explicando. É só até Jijoca (23 quilômetros). De lá vocês seguem em confortável ônibus, pela rodovia CE 085. Seriam as últimas emoções do maravilhoso roteiro.
No rumo do encontro com a virgem dos lábios de mel.


Seguiríamos sempre margeando o litoral. Me lembro das cidades de Acaraú (65.000 h.), Iracema (15.000 h.), Trairi (60.000 h.), Paraipaba (35.000 h.), São Gonçalo do Amarante (50.000 h.), já na região metropolitana de Fortaleza e Caucaia (362.000 h). Pronto, já estávamos em Fortaleza. O guia era bom de informações. Ao longo do caminho apenas uma parada para o almoço. O ônibus foi largando o pessoal em seus hotéis, todos concentrados ao longo da avenida Beira- Mar.
Uma bela vista da cidade de Fortaleza.


Chegamos já ao final da tarde. Com um mapinha na mão fiz um desenho mental do local em que eu estava hospedado. No Hotel Bristol - Jangada, na avenida da Abolição. Estava a 50 metros da famosa feirinha, próxima à praia do Meirelles. Na manhã seguinte eu teria um city tour para fazer e mais um passeio a praia de Cumbuco. Como ainda estava com o problema da gota, optei por descanso imediato, após uma sopa de carne e legumes no restaurante do hotel. Isso em meio aos pratos de muitos frutos do mar e peixes. O estoicismo sempre fez parte da minha vida.
A majestosa catedral da cidade de Fortaleza.


O city tour foi muito bom. Deu para ter uma boa noção da cidade. A feirinha, o mercado do peixe, o porto de Mucuripe, a praia do Futuro, a nova região dos ricos, o palácio do governo, a região central da cidade, vista da catedral e do mercado central e a casa do turista. Nesta nós fizemos uma parada de uma hora. Muitas lojas com artesanato, toalhas, lençóis e todo o tipo de lembrancinhas. Depois seguimos para a praia de Cumbuco, distante de Fortaleza uns 30 quilômetros. Creio ser um passeio absolutamente dispensável. Não gosto deste tipo de turismo feito no nordeste, em que te largam por horas e horas em uma barraca de praia, oferecendo outros passeios e preços de refeições caríssimas. O contrato da empresa com a barraca é de um mínimo de cinco horas. O jogo entre Portugal e Espanha ajudou a passar o tempo.
José de Alencar, onipresente em Fortaleza. O teatro com o seu nome.


O guia turístico foi um show à parte. Ele mesmo dizia que tinha que fazer jus à fama de Fortaleza, como a terra dos humoristas. Ele contou a história do Ceará a partir do romance Iracema, de José de Alencar. Fez várias declamações de cor, especialmente, a famosa declaração de amor para Iracema, a bela índia, virgem dos lábios cor de mel. Recomendou shows de humor e falou de várias programações artísticas em cartaz, bem como das principais atrações da cidade, como o Centro Cultural Dragão do Mar e contando a história dos jangadeiros que se recusaram a transportar os escravos. Assim eles foram libertados, antes mesmo da data da abolição.
 Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde. O jangadeiro abolicionista.

No dia seguinte, de táxi, fui ao centro da cidade. Parei em frente a catedral, que procura imitar a da cidade de Colônia. É enorme, imponente por fora e bem simples em seu interior. Andei pelo centro da cidade, nas ruas do comércio popular, até o teatro José de Alencar. Como em todos os centros da cidade, muita muvuca. Voltei a Casa do Turista, onde tínhamos estado no dia anterior, e fui para o mercado central, tido como o maior centro de artesanato do Brasil. Tem ali em torno de 600 lojas, praticando um comércio de autofagia. Não existe uma tabela de preços. Estes estão sujeitos às pechinchas e a competição que achei até desleal. Almocei ali mesmo. Pratos típicos da cozinha do Ceará, nos quais eu não me aventurei.
No Mercado central.
Ainda no Centro Comercial de Fortaleza. O maior centro de artesanato do Brasil.



Fui ainda até o Centro Cultural Dragão do Mar, passando pelo prédio da secretaria da fazenda, um belo prédio histórico. O quartel  do exército, em frente ao mercado central, representa o marco zero da cidade. O Centro Cultural é um espaço permanente de eventos culturais, com salas de cinema e de teatro, cafés e espaços para eventos e exposições. O Centro tem este nome em homenagem ao jangadeiro Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, que recebeu o cognome de Dragão do Mar, por seu envolvimento e liderança no movimento abolicionista do Ceará, onde a escravidão foi abolida no ano de 1884. Já a partir de 1881 os jangadeiros se insubordinaram, recusando-se ao transporte dos escravos para a sua comercialização. É um dos maiores centros culturais do país.
O belo prédio da Secretaria da Fazenda.


Ainda passei o dia de domingo inteiro na cidade, pois o meu voo partiria apenas as 23h30, rumo a Recife, São Paulo e Curitiba. Uma verdadeira odisseia. Deixei o hotel as 14h00 depois do jogo da Alemanha e fui para a feirinha da Beira-Mar para ver o jogo do Brasil. Antes ainda, fui até a Praia de Iracema, para então me acomodar e ver o jogo do Brasil. Subestimei esta tarefa, não encontrando mais lugar para tal, e nem mesmo para almoçar. No intervalo me movimentei e fui para o lado interno da avenida, onde consegui fácil acomodação. Os preços explicam o vazio destes espaços. Não são mesmo caros, mas em comparação aos praticados na praia, sim. As cervejas como a Original, Serramalte e semelhantes são ali vendidas a R$ 10,00. As condições de higiene à beira-mar são um tanto precárias.
Minha última imagem de Fortaleza. Do imaginário, a construção da Fortitudine.


Fortaleza (Fortitudine) tem hoje mais de 2.600.000 habitantes, sendo a quinta maior cidade brasileira e mais de 4.000.000 na região metropolitana. É a área mais densamente povoada do Brasil. Já o Ceará (o cantar da jandaia) tem população superior a 9.000.000 de habitantes, sendo as maiores cidades, além de Fortaleza, as de Caucaia (360.000), Juazeiro do Norte (270.000), Maracanaú (225.000), Sobral (205.000), Crato (130.000), Itapipoca (130.000) Maranguape (125.000) e Iguatu (100.000). As suas riquezas procedem da agropecuária, da industrialização, beneficiada pela concessão de isenções fiscais a partir dos anos 1980, do grande centro de distribuição que é a cidade de Fortaleza e de seu porto, o de Mucuripe, além da crescente atividade do turismo.

Fortaleza em sua imagem poética é denominada de "loira desposada pelo sol". É de se apaixonar. Também é famosa por seus humoristas. Existem muitos jantares, somados a shows de humor. O Ceará tem também a sua gente ilustre. José de Alencar e Rachel de Queiroz na literatura, Patativa do Assaré e Belchior na música, além de Dom Hélder Câmara, um dos meus santos e fonte de inspiração.






segunda-feira, 2 de julho de 2018

A Rota das Emoções. 6. Jericoacara.

A continuidade da "Rota das Emoções", seguiria agora com as aventuras que me levariam de Parnaíba até Jericoacara. Mais uma vez um carro traçado 4X4 e, mais uma vez, um passageiro solitário, indicando que a rota ainda é pouco conhecida. A distância que separa as cidades é de duzentos quilômetros, que seriam percorridos em quatro horas. Luís Correia, Camocim, Tatajuba, Mangue Seco e Guriú estavam no nosso caminho. Duas travessias de balsa e inúmeros trechos pela praia. A rota passa pelas BR 402 e CE 085.
Em Camocim, a primeira travessia de balsa.

O passeio foi maravilhoso e de muita conversa com o guia/motorista. Ele me falava de Luís Correia, a praia do Ceará, frequentada pelo povo de Teresina, apenas na temporada de férias. A paisagem continuava a mesma, entre as palmeiras de babaçu e de carnaúba. Fizemos uma parada para ver e fotografar a árvore penteada, uma obra do vento. Vi a placa que indicava o caminho para Barra Grande, o novo charme do turismo, mas o roteiro estava pré traçado.
As boas vindas do estado do Ceará.

Entramos no Ceará por Chaval (13.000 h.), Barroquinha (15.000 h.) e Camocim (65.000 h.). A paisagem modificou bastante, aparecendo muitas pedras. Os coqueiros também começara a aparecer na paisagem. Lembro que há anos se falava muito de indústrias do sul e do sudeste que estavam se transferindo para o Ceará. Pois é, em Camocim você encontra a fábrica de calçados da Democrata, que emprega em torno de três mil funcionários. Estas empresas foram para o Ceará, em busca de mão de obra barata. Isso hoje não seria mais necessário com a reforma trabalhista feita pelo governo golpista do Temer. Em Camocim fizemos a primeira travessia de Balsa. Isso é opcional, para conferir aventura ao roteiro.
A bela paisagem ao longo do roteiro
A passagem por Barroquinha.

O guia/motorista me falava da rota. Tem gente que a faz com carro próprio, com carros de locadora. Só que o motorista tem que ser um guia com as habilidades específicas exigidas pela estrada. Os pneus devem estar o mais murcho possíveis. O caminho pode ser feito todo por estrada asfaltada. Faríamos uma parada em Tatajuba, um dos passeios da rota oeste de Jericoacara. A paisagem é a das dunas e lagoas. Peixes, camarões e lagostas são oferecidas para o teu almoço. Você escolhe os de sua preferência. A viagem continuaria com direito a nova travessia de balsa, pelo mangue seco, nome em alusão às raízes expostas por causa das marés e, finalmente Jericoacara.
A Lagoa de Tatajuba, um dos passeios da rota oeste de Jericoacara.
Em Tatajuba você escolhe o seu almoço.


Jericoacara é uma praia/aldeia pertencente ao município de Jijoca de Jericoacara (17.000 h.). Ela tem apenas cinco ruas, interligadas por becos. Nenhuma é asfaltada ou iluminada, mantendo o seu caráter primitivo. Existe uma taxa de turismo, paga diariamente, com exceção dos velhinhos, privilégios conferidos pela idade. Os carros ficam no estacionamento. Podem circular apenas os carros que buscam ou levam os turistas em suas chegadas ou saídas ou para os passeios. Existem duas grandes atrações locais, que são a visita à pedra furada e a contemplação do por do sol, a partir das 17h00. A gota me impediu de ir à pedra furada, distante em torno de um quilômetro. Este trajeto também pode ser feito em charretes. Me falaram que o que vale é apenas a fotografia. Mas ver o por do sol, do alto de uma duna, eu fui.
Jericoacara à noite. Ruas sem calçamento e sem iluminação.
O último raio de sol de um belo por do sol do alto de uma duna.

Para fora, são os passeios da rota oeste e leste. São passeios que praticamente ocupam o dia inteiro, pois eles tem longas paradas nas atrações dos locais. Tatajuba no oeste e a Lagoa Paraíso ou Azul no roteiro Leste. Neste roteiro Leste, você, na volta, ainda passa pela praia do Preá e pela árvore da Preguiça. Os lugares são tão encantadores que até as árvores ficam com preguiça. O inconveniente destes passeios são as longas paradas e os preços absurdos que são praticados e a ausência de alternativas. Se quiser comer ou beber, tem que pagar o preço.
A beleza da Lagoa do Paraíso.
O cenário é um convite à preguiça. Até a árvore se deitou.

Os preços em Jericoacara atendem a todos os bolsos. Os restaurantes praticam preços condizentes. Os artesanatos e souvenirs são caros. Ainda uma palavra sobre a pousada. Esta eu recomendo por n razões, mas especialmente por ser nova e pelo atendimento com que você é tratado. Trata-se da Pousada Jeri Dunas. Roberto, seu proprietário ou administrador, se esmera no atendimento com a sua equipe de funcionários. Também deixo uma palavra com relação ao Carlinhos, o nosso condutor/guia, que é também instrutor de kitesurf. Em Jericoacara fiquei por duas noites.
A excelente Pousada Jeri Dunas.