sexta-feira, 6 de julho de 2018

Confissões. Livro IX. 9. Mônica, Esposa Modelar.

Trabalhando junto a um grupo de leitura sobre a "Formação do Pensamento Ocidental", retomei a leitura das Confissões, o magistral livro de memórias de Santo Agostinho, possivelmente o primeiro do gênero. Santo Agostinho é um pensador fundamental na formação deste pensamento, ao procurar dar um caráter de racionalidade ao pensamento cristão, originário de uma dissidência dentro do judaísmo. Esta racionalidade, no entanto, deveria sempre estar submissa à fé, fé esta, revelada pelo próprio Deus. Transformou o mundo das ideias de Platão no mundo das ideias divinas reveladas.

Bem, a finalidade deste post não é a discutir a filosofia de Santo Agostinho. É sim, a de mostrar uma descrição de sua mãe, santa Mônica, decisiva na conversão do filho ao cristianismo. O foco é o da submissão da mulher, esposa, mostrando que o machismo tem profundas raízes históricas, construídas e difundidas com o auxílio da crença religiosa. "Bela, recatada e do lar, bem poderia ser a síntese do texto. Este se encontra em Confissões, Livro IX, 9.
O livro de Santo Agostinho.


MÔNICA , ESPOSA MODELAR

19. Educada assim na modéstia e temperança, Vós a tornáveis mais submissa aos pais do que eles a tornavam obediente a Vós. Quando chegou à idade núbil plena (12 anos), deram-na em matrimônio a um homem, a quem servia como a senhor. Procurava conquistá-lo para Vós, falando-lhe em Vós pelos seus bons costumes, com os quais a tornáveis bela, respeitosamente amável e encantadora aos olhos do marido. Sofria-lhe também as infidelidades matrimoniais com tanta paciência, que nunca teve discórdia alguma com o marido, por este motivo. Esperava que a vossa misericórdia, descendo sobre ele, o fizesse casto, quando crescesse em Vós.

Se o coração do marido era afetuoso, o temperamento era arrebatado. Mas ela sabia que era melhor não resistir à ira do esposo, nem por ações, nem por palavras. Logo que o via mais calmo e sossegado, oportunamente lhe dava a explicação de sua conduta, se por acaso ele irrefletidamente se irritava. Enfim, muitas senhoras, tendo maridos muito mais benignos, traziam no rosto desfigurado os vestígios das pancadas. Conversando entre amigas, enxovalhavam a vida dos esposos. Minha mãe repreendia-lhes a língua, admoestando-as seriamente como por gracejo. Lembrava-lhes que, desde o momento em que ouviram o contrato de matrimônio, como quem escuta a leitura de um documento pelo qual são feitas escravas, elas se deviam considerar como tais. Por este motivo, tendo presente essa condição, não podiam ser altivas com os seus senhores.

Estas matronas, conhecendo o mau gênio que ela suportava ao marido, admiravam-se de nada lhe ouvirem, nem por indício algum contar que Patrício lhe batesse ou que algum dia se desaviessem por questiúnculas domésticas. Perguntavam-lhe familiarmente a razão, e a minha mãe expunha-lhes seu modo de proceder, de que acima fiz menção. As que o punham em prática, depois de o experimentarem, felicitavam-na. As outras, que não faziam caso, continuavam a ser vexadas e oprimidas.

20. A princípio a sogra irritava-se contra ela, por causa de uns mexericos de escravas malévolas. De tal forma minha mãe a conquistou com afabilidades, com paciência e mansidão inalteráveis, que a própria sogra espontaneamente denunciou ao filho as línguas intrigantes das escravas como perturbadoras da paz doméstica entre a nora e ela, e lhe rogou que fossem castigadas. Com efeito, depois, Patrício dócil à mãe e solícito pelo bom governo da casa e pela concórdia entre os seus, mandou flagelar as culpadas, segundo o desejo de quem as acusara. A sogra declarou que podia esperar igual castigo quem quer que para lhe agradar lhe dissesse mal da nora. Ninguém ousou mais expor-se a tal risco, e viveram as duas em doce harmonia, digna de ser lembrada.

21. Concedestes ainda um grande dom a esta fiel serva em cujo seio me criastes, "ó meu Deus e minha misericórdia". Quando podia mostrava-se conciliadora entre as almas discordes e desavindas, a ponto de nada referir de uma à outra senão o que podia levá-las a reconciliar-se, ouvindo de um lado e de outro as queixas amargas, as quais costuma vomitar a discórdia encolerizada e cheia de ressentimentos, quando em presença de uma amiga, o vômito dos rancores contra a inimiga ausente desabafa em azedas confidências.

De pouca importância me parecia este bem, se uma triste experiência me não mostrasse que um grande número de pessoas - não sei por que horrendo contágio de malícia, já espalhado por muito longe -  não só repete a inimigos encolerizados o que uns, zangados, disseram de outros, mas ainda acrescenta coisas que eles não proferiram. Pelo contrário, deve ter-se em pouca conta para alguém dotado de sentimentos humanos o não atiçar ou não acender, com ditos malévolos, as inimizades dos outros, se não procura também, com boas palavras, extingui-las. Assim era minha mãe, como Vós, seu íntimo Mestre, a ensinastes na escola do coração.

22. Enfim, até Vos ganhou o marido, nos últimos tempos desta vida temporal, e não teve mais a lamentar nele o que sofrera antes de se converter. Era verdadeiramente a serva dos vossos servos! Todos os que a conheciam Vos louvavam, honrando-Vos e amando-Vos  nela, porque lhe sentiam no coração a vossa presença, comprovada pelos frutos de uma existência tão santa. Tinha sido "esposa de um só marido, saldara aos pais a sua dívida de gratidão, governara a casa piedosamente. Com as suas boas obras, dava testemunhos de santidade.

Educara os filhos, dando-os tantas vezes à luz, quantas os via apartarem-se de Vós. Enfim, ainda antes de ela adormecer no Senhor, quando já vivíamos unidos em Vós pela graça do batismo, era tão desvelada para todos - já que por vossa liberalidade permitis que nos dirijamos aos vossos servos - como se nos tivesse gerado a todos, servindo-nos como se fosse filha de cada um".
Flora Emília, num belo livro de Jostein Gaarder, apresenta as suas queixas contra Agostinho.

Comentários? Não. Apenas dizer que desta forma se consolidam verdades e tradições. São construções históricas, convenientes aos que dominam. Primeiro se divide (gênero, no caso), se hierarquiza, se naturaliza e se universaliza.

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