quarta-feira, 31 de maio de 2017

maisquememória. Marcelo Backes.

Conheci Marcelo Backes pelos seus trabalhos com a filosofia, mais precisamente com o seu trabalho de tradução e organização do livro A Ideologia alemã de Marx e Engels. Também tinha visto algo de seu trabalho com a literatura. O reencontrei agora, com uma ida ao Shopping, onde havia uma pequena feira de livros de ponta de estoque. Entre os livros estava o quasememória. Como aprecio o gênero, o de memórias e o preço estava mais do que em conta, não tive dúvidas. A compra foi imediata.
O livro de muitas memórias por cidades alemãs e europeias.


O autor, um gaúcho missioneiro, tem uma história de vida de semelhanças com a minha, porém com um grau de intensidade muito maior, em todos os sentidos. Sempre fui mais bem comportado. Também é de uma geração bem posterior à minha. A nossa identificação se deve ao início de nossas atividades estudantis. Logo após as primeiras letras, o seminário foi o nosso destino. Também nos identifica o fato de ali não termos permanecido. Marcelo foi fundo em sua vida de estudante, atingindo um pico onde poucos chegam. Um doutorado na Alemanha.

Na Alemanha permaneceu por seis anos, fundado na cidade de Friburgo. As suas aventuras na Alemanha e países vizinhos são tema de seu livro quasememória. Estas começam por Göttingen, uma cidade eminentemente universitária, que tem em suas glórias o registro de 42 Nobeis. Nesta cidade, no Goethe Institut, Marcelo aperfeiçoou o seu alemão, que como eu, recebeu de presente de seus pais, que tudo fizeram para preservar a tradição e a língua.

Em 19 capítulos Marcelo conta as suas aventuras e também as desventuras com o desvencilhar-se das fortes doses de moralina católica recebidas ao longo de sua infância. Estas lhe renderam intensos prazeres mas também choros, desesperos e momentos de depressão e que, ao final, culminaram em um divórcio nada amigável. Acompanhar as suas viagens foi uma tarefa muito agradável.

Na Alemanha as principais cidades visitadas foram Hanôver, Friburgo, onde fixaria residência e fez os estudos de seu doutorado, Frankfurt, Heidelberg, Kassel, Colônia, Leipzig, Dresden, Stuttgart, Munique e Berlim, e outras menores. Toda a descrição tem gosto de quero mais, isto é, obter mais informações. Os focos são as diferenças regionais, os costumes, a culinária, os vinhos, a pãodurice e outros hábitos enraizados entre os alemães. O Caixa dois de Schröder e a feiura de Ângela Merkel também estão sempre presentes.

O autor também se aventurou em excursões pelos países vizinhos. A França que está mais próxima recebe as suas primeiras considerações, começando por Estrasburgo, que tantas vezes mudou de mão e pelos caminhos do vinho da Alsácia, de apenas 170 quilômetros de paraíso terrestre. Também chegou a Paris, para visitar o Louvre numa terça feira, dia em que ele está de portas fechadas.

Suas viagens também atingiram outros vizinhos como Luxemburgo, Bélgica e a Holanda e, do outro lado, a Áustria, a Suíça e a República Tcheca, com passagem pelas suas principais cidades. O mesmo também ocorreu com a Itália, recebendo visitas as cidades de Turim, Milão, Verona e Veneza. O trotear é sempre o mesmo. Questões culturais, as universidades, dados históricos, os seus monumentos e atrações turísticas e muitos diálogos com pintores e escritores, com ênfase nestes, nos pintores por paixão e nos escritores, como seu campo de estudos. 

Quando está praticamente se despedindo da Europa também recebe uma carta de despedida de Dona Alda, uma carta de despedida do casamento, que pelo jeito, muitos dissabores lhe causou, embora as suas renovadas promessas de se livrar das doses nada homeopáticas de moralina sexual de sua infância. Alda queria uma família constituída e estruturada e um filho. Já Marcelo se inclinava mais para ser um potro solto pelas coxilhas do mundo, uma referência à sua origem missioneira.

Quem acompanha o autor em todas as suas viagens é o pintor Oskar Kokoschka (1886-1980), de quem visita os quadros nos museus das cidades e os interpreta. Até adquire um de seus quadros, o que está devidamente registrado na carta de Dona Alda. Ao final Dona Alda volta para a sua Porto Alegre e ele se perderá pelas e nas belezas do Rio de Janeiro, com um pedido para que jamais seja enterrado em Porto Alegre.

domingo, 28 de maio de 2017

A esposa, a prostituta e o fim da CLT. A partir do filme - Queimada.

 Queimada é um poderoso filme político italiano (1969) que tem Gillo Pontecorvo como diretor e Marlon Brando como ator principal, no papel de um agente inglês que chega a ilha de Queimada e a ajuda a se tornar independente de Portugal, após a abolição da escravidão. Inicia assim o processo de dominação econômica dos ingleses, com o  domínio do comércio do açúcar na bela ilha caribenha. São retratos dos meados do século XIX, na transição do colonialismo para o imperialismo.
O monumental filme de Gillo Pontecorvo com a magnífica atuação de Marlon Brando.

Como é sabido, os ingleses já estavam em um estágio mais avançado de sua economia, pela via da industrialização, que não mais comportava mão de obra escrava. Por isso eram abolicionistas. Numa cena muito hilária, William Walker, o agente inglês, tenta explicar para a elite branca escravagista e outros fidalgos portugueses, as vantagens de substituir o trabalho escravo pela mão de obra assalariada. O exemplo que usa é de raro cinismo. Destaquei o diálogo e o reproduzo, ipsis litteris.

Sir William Walker: Senhores, deixe-me fazer uma pergunta. Minha metáfora poderá parecer um pouco impertinente.... mas acredito que é exata.
O que preferem.... ou devo dizer, o que acham mais conveniente? Uma esposa ou uma dessas mulatas? - se referindo às mulheres semi-nuas do harém (Em cena aparece uma mulata - meio Chica da Silva. Esta Chica da Silva já saiu do meu imaginário). Não me interpretem mal. Falo estritamente em termos econômicos.
Qual é o custo do produto? O que o produto propicia? O produto no caso, sendo o amor. Amor puramente físico... já que, obviamente, sentimentos não têm um papel econômico. Praticamente. Uma esposa precisa de um lar... com comida, roupas, cuidados médicos, etc. É necessário mantê-la a vida toda... mesmo depois que envelhecer e se tornar improdutiva.
E se tiverem o azar de viverem mais do que ela, terão de pagar o enterro. Em meio às risadas ele continua - Não, não. É verdade. Senhores, sei que parece divertido, mas são os fatos, não são? Por outro lado, com uma prostituta... o assunto é diferente, não é? Não há a necessidade de abrigá-la ou alimentá-la e certamente nem de vesti-la ou enterrá-la. Graças a Deus.
Ela é sua só quando precisam. Pagam-na somente por esse serviço... e pagam por hora. O que, senhores, é mais importante... e mais conveniente? Um escravo ou um trabalhador assalariado?

É muito cinismo. Termos estritamente econômicos... Os sentimentos não contam... O utilitarismo levado às últimas consequências. Não quero aqui retomar toda a história das conquistas dos trabalhadores, através de suas muitas lutas coletivas, que redundaram em direitos e que, minimamente, nos permitem chamar a evolução histórica de processo civilizatório. Hoje o imperativo econômico, através do neoliberalismo, ordena a destruição desta história.

Em 2016 assistimos no Brasil um processo que culminou com o golpe de Estado de 31 de agosto. Interesses inconfessáveis motivaram os golpistas. Estes não tardaram em aparecer. Uma das primeiras reformas propostas, em consonância com os comandantes dos mercados, foi a modernização da legislação trabalhista, com supressão de vínculos, de direitos. Vejam os jogos semânticos na tentativa de provocar ilusões. Reforma e modernização. Estas duas palavras implicitamente apontam para melhoras. No entanto, no caso destas reformas modernizantes o objetivo é a eliminação de todo e qualquer direito legal, com o famoso princípio da prevalência do acordado sobre o legislado. Tudo isso  é feito de forma muito generosa, é feito para restaurar e manter empregos. Haja cinismo.

Este princípio elimina laços e vínculos e institui o ser descartável. É o uso por hora, o uso para determinados serviços e gozos e que, pela consagração da mediação, sob o moderno nome de terceirização, consagra a figura do gigolô, do cafetão, sempre desprovido de sentimentos e  escrúpulos, ávido em tirar o máximo proveito.

Com certeza, a metáfora é forte. Mas observem sua procedência. Ela provém do agente inglês William Walker. É uma metáfora inglesa, o país protagonista das excelências do mercado, desde os tempos liberais até os neoliberais. É uma metáfora oriunda do mercado e, nele não cabem sentimentos, nem humanidades. No mercado se encontram competidores, que pautam e moldam suas vidas aos seus princípios. Nele o dinheiro é eleito como o valor supremo e absoluto, ao qual tudo é subordinado. E a partir desta compreensão, nada mais é estranho, a não ser o respeito à dignidade do ser humano.

Lembro, para encerrar, uma percepção de Giambatista Vico, nos alvores da restauração da primazia dos mercados sobre os ditames medievais, devidamente anotada  por Adorno. Ela trata da origem dos conceitos que se entranharam na cultura ocidental: "Estes conceitos provêm da praça do mercado de Atenas". Platão e Aristóteles nada mais fizeram, senão transformá-los em princípios universais.

O texto já está um tanto longo, mas acabo de ler, na revista CULT, nº 223, um trecho selecionado do livro de Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, escrito em 1845: "A relação entre o industrial e o operário não é uma relação humana: é uma relação puramente econômica - o industrial é o 'capital', o operário é o 'trabalho'. E quando o operário se recusa a enquadrar-se nessa abstração, quando afirma que não é apenas 'trabalho', mas um homem que, entre outras faculdades, dispõe da capacidade de trabalhar, quando se convence que não deve ser comprado e vendido enquanto trabalho como qualquer outra mercadoria no mercado, então o burguês se assombra. Ele não pode conceber uma relação com o operário que não seja a da compra-venda; não vê no operário  um homem, vê mãos (hands), qualificação que lhe atribui sistematicamente.

O burguês, para retomar a expressão de Carlyle, só reconhece um vínculo entre os homens: o pagamento à vista. Até mesmo a relação entre ele e sua mulher é, em 99% dos casos, a do pagamento à vista"...











quinta-feira, 25 de maio de 2017

Queimada. O homem que vende guerras.

Observando os fatos que estão ocorrendo no Brasil após a ruptura democrática de 2016, me deu vontade de rever o filme QUEIMADA. Ele é uma obra prima do cinema político e uma das mais perfeitas amostras da transição  do colonialismo para o imperialismo e da abolição da escravidão, que veio em seu bojo. Queimada é uma ilha fictícia das Antilhas, de colonização portuguesa, e que tem na monocultura canavieira a sua riqueza. Um misto de História do Brasil, de Cuba e também do Haiti, ou em termos mais amplos, da colonização portuguesa e espanhola. Ele esteve proibido no Brasil, ao longo da ditadura militar.
Foto do meu DVD  do filme Queimada, com destaque para o nome de Marlon Brando.

O filme reúne gente de primeira qualidade do cinema mundial. A produção italiana, do ano de 1969, tem a direção de Gillo Pontecorvo, assinatura do roteiro de Franco Solinas e Giórgio Arlório e a música é de, ninguém mais e ninguém menos, que Ennio Morricone. O papel principal, o do colonizador inglês William Walker é de Marlon Brando, em magnífica interpretação. O cenário é paradisíaco e os fatos ocorrem em meados do século XIX. O nome do filme no original é Burn.

Primeiramente dou a resenha da contracapa do DVD: "Uma ilha do Caribe na metade do século XIX. A natureza fez um paraíso aqui; o homem o transformou em inferno. Escravos de vastas plantações de açúcar dos portugueses estão prontos para transformar sua miséria em revolta - e os britânicos estão prontos para despejar a última gota d'água. Eles enviam o agente William Walker (Marlon Brando) em uma missão tripla e desonesta: convencer os escravos a se rebelarem, tomar o comércio de açúcar para a Inglaterra... e restabelecer o regime de escravidão. Os temas do colonialismo e da insurreição são explorados no épico QUEIMADA! Com visual e narrativa impressionantes. QUEIMADA tem o brilho de um diretor genial. A genialidade também é evidente na interpretação complexa e inteligente que Marlon Brando faz de um homem que é, ao mesmo tempo, um cavaleiro e um patife, revolucionário e colonialista. E a música de Ennio Morricone é o acompanhamento perfeito de um roteiro tão forte".

O filme começa com a chegada do agente inglês à ilha. Um negro, imediatamente, lhe oferece ajuda para carregar a sua mala. Estão aí, em cena, os dois principais personagens, William Walker e o negro José Dolores. José Dolores será acompanhado de perto pelo inglês, que fará dele o líder das insurreições. O ensina praticando, - roubos e assassinatos por necessidade, - para se habituar com a ideia e não fraquejar, quando dos acontecimentos. José Dolores passa pelas condições de heroi da independência e de vilão execrado, já sob o imperialismo inglês.

O inglês fomenta a rebelião. Assiste aos festejos da independência e se retira do cenário, voltando à cena, dez anos depois. A ilha já está sob os grilhões dos ingleses que manipulam por completo o comércio do açúcar. Os preços logo estarão abaixo dos custos de produção, levando o país, sob o comando de José Dolores, à uma situação de extrema miséria. José Dolores, já na condição de guerrilheiro, lutará bravamente até a resistência final.

Está aí o triplo papel do agente inglês, do qual fala a resenha. Transformar os negros em rebeldes revolucionários a proclamar a independência e abolir a escravidão, decretando assim, o fim da era colonial; transferir o comando para os ingleses, não mais sob o domínio político direto, mas pelo total e implacável domínio econômico, fato que denominamos de imperialismo, e a terceira missão, que será a da restauração da escravidão, sob uma nova forma, também indireta, que é a do trabalho livre assalariado.

Quero dar destaque especial a duas cenas. A primeira, em que  William Walker tenta convencer  os líderes locais sobre as vantagens da abolição da escravidão. Usa para isso uma comparação da mulher no casamento e da mulher como prostituta. No casamento se assume a mulher pelo resto da vida e, como acréscimo, também os seus custos. Já com a mulher prostituta, paga-se apenas pelos serviços eventualmente prestados, sem nenhuma consequência a mais. Assim também é a escravidão. Com a abolição, paga-se apenas por serviços prestados, sem o ônus da doença, da alimentação e da velhice.

A outra cena, é a do final do filme. A discussão que se estabelece em torno do que  deve ser feito com o líder José Dolores. Como tornou-se absolutamente insubmisso, não haverá fórmula para enquadrá-lo e formatá-lo, como se fazia antes. Se o matam, ele se transforma em heroi e o heroi se torna mito e servirá de exemplo para milhares de outros, que o seguirão cegamente (Seria uma imagem do cubano José Martí?). Ao final, os ingleses induzem o novo governo da ilha a matá-lo, à moda inglesa, por enforcamento. O inglês ainda fará uma última tentativa para deixá-lo vivo. É o momento em que José Dolores, mais uma vez se oferece para carregar a sua mala, aproveitando o momento para apunhalá-lo mortalmente.

O fato de querer rever o filme se deveu fundamentalmente a dois motivos. Ver a questão do líder popular, do seu papel messiânico junto ao povo, e do outro lado, a implacável perseguição que lhe será devotada pelos que se sentiram incomodados em sua confortável situação. O outro motivo foi a questão do imperialismo, que aqui no Brasil, sempre encontrou uma burguesia consular. Eu explico. Aqui sempre existiram chefes políticos locais a entregar as nossas riquezas, para que os interesses imperialistas não encontrassem qualquer tipo de resistência.

 É o que vemos ocorrendo no Brasil, neste momento, com a supressão dos direitos trabalhistas e previdenciários. Como os trabalhadores assalariados, ao longo da história foram adquirindo direitos, aproveita-se agora o momento da crise, para suprimi-los por completo. Seus direitos cessam ao final do trabalho realizado, tal qual o exemplo da prostituta, citado no filme. Ambos recebem o soldo ao final dos serviços prestados. Me acompanha a certeza de que, o respeito devotado pelo colonialista, imperialista ou burguês, ao trabalhador e à prostituta é o mesmo, ou seja, nenhum. Segue o link do filme. https://www.youtube.com/watch?v=tQBHr8pjGXI

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Oswald de Andrade e a Academia Brasileira de Letras.

A Academia Brasileira de Letras nunca foi uma unanimidade. Em Navegação de Cabotagem Jorge Amado nos conta algumas de suas peripécias. Entre elas está a de que Machado de Assis, um de seus fundadores, impunha dois vetos incondicionais para quem dela quisesse participar. Dela estariam sistematicamente afastados os boêmios e as mulheres. Fundada em 1897, Rachel de Queiroz ingressou nela apenas em 1977. Foi a pioneira. Foram 80 anos à espera de uma presença feminina.
Irreverente e sarcástico. Marcos do homem do modernismo brasileiro.


Agora, lendo a bela biografia de Oswald de Andrade, de autoria de Maria Augusta Fonseca, encontro mais curiosidades que merecem registro. O homem do modernismo brasileiro, por duas vezes tentou ingressar no mais elevado círculo dos homens de Letras desse país, mais por deboche, do que por efetiva vontade. São tentativas cheias de humor e ironia, tão características de Oswald.

A primeira tentativa ocorreu em 1925, depois, portanto, da passagem do furacão da Semana de Arte Moderna de 1922, ocasião em que Oswald foi estrondosamente vaiado. A primeira a saber da sua intenção foi Tarsila do Amaral, a quem comunicou sua intenção através de uma carta com os seguintes dizeres: "Prezada artista, a 1ª da capital [...] Aqui todos vão bem e eu vou apresentar minha candidatura na ilustre Academia Brasileira. Conto ser vencido, porém, com glória. [...] Oswald phd 1º homem do Brasil!"

Não chegou a ser considerado inscrito, mas pleiteou a vaga em carta aberta, endereçada aos imortais. Depois de uma estocada num dos concorrentes, ele apresenta as suas qualidades. "O Senador Antônio Azeredo - todos vós o sabeis - erra ainda em gramática, erra em estilo, erra em colocação de pronomes. Só acerta em política. Eu não erro porque não acredito em nada disso. Sou escritor e poeta todos os dias, há quinze anos no mínimo. Uso quando quero do estilo convincente (esta carta!), ando às vezes de guarda chuva, já falei na Sorbonne e tenho sido repetidamente elogiado pelo Sr. Tristão de Athayde. Indiquei, queiram ou não queiram, o roteiro brasileiro à minha geração - ao contrário da vossa - quase toda genial. Publiquei diversos volumes de originalíssima  realização - como sobejamente o provam a hostilidade e o espanto do nobre professor Oiticica".

Promete mudar a Academia em quase tudo. Promete "meter o bedelho nos negócios administrativos da Academia, promovendo medidas de alta justiça que não compreendo como até agora escaparam à visão imortal" e continua alfinetando "a Academia desmente o espírito com que foi fundada e insulta a inteligência brasileira a cada nova eleição" e arremata.

"Dos vossos nobre escrutínios só pode sair a derrota de uma pretensão que não entra no meu feitio - todos sabem. Eu de farda - (eu e mais do que eu, qualquer dos modernistas brasileiros solidários com a mocidade heroica de Graça Aranha) - é um anacronismo tão grave como Osório Duque Estrada de bicicleta. A minha candidatura  ficará sendo o altifalante de uma queixa - a dos milhares de intelectuais de minha terra, escarnecidos pela cavação da expoência, quando não pela expoência cavação".

Quinze anos após, em 1940 tenta novamente, na vaga deixada por Luís Guimarães. Disputa com Manuel Bandeira, Martins de Oliveira, Berilo Neves, Basílio de Magalhães, Júlio Nogueira e Menotti del Picchia, que desiste em favor de Manuel Bandeira, que será o vencedor, com 21 votos. Adivinhem quantos votos foram para o Oswald? Apenas um, o de Cassiano Ricardo.

A sua candidatura, mais uma vez, tinha a finalidade de levantar polêmica mas, desta vez, se inscreve formalmente por meio de uma carta-inscrição. Veja os termos: "Senhor acadêmico: Será V.S. uma das raras inteligências deste Grêmio que compreendem a atual situação do mundo (Segunda Guerra), e portanto, a da própria Academia? Ou será V.S. um dos membros da quinta-coluna, que camuflados no fardão, sabotam aí dentro, as magras conquistas do espírito brasileiro.

Passará pela cabeça de V.S. alertada pelos bombardeios contemporâneos, que o fim dos quarenta imortais que nas últimas décadas adormecem o espírito francês sous la coupole, pode ser um campo de concentração? Ou será V.S. daquelas teimosas velhas de Botafogo que ainda acreditam no pavoneio dos títulos literários, roubados aos verdadeiros trabalhadores da cultura? Neste caso quererá V.S. que a Academia Brasileira de Letras seja um espelho Luís XV de um grupo de arrivistas coloniais e suspeitos pretendendo explorar uma multidão de analfabetos? Ou quererá V.S. realmente que o nosso povo se emancipe, participando afinal da vida intelectual do país, como da sua vida econômica, jurídica e social? Todas essas interrogações vêm na dobra da minha candidatura a um fauteuil nessa casa. Sobre ela decidirá V.S. com a mentalidade que representa. O futuro julgará essa eleição mais do que a eleição me julgará. Protocolarmente sou candidato ao voto de V. S. e com prazer me subscrevo".

Também deu muitas declarações à imprensa, como esta, comparando-se a um paraquedista."paraquedista que se lança sobre uma formação inimiga, cujo destino único é ser estraçalhado". Dá bem uma ideia do espírito polêmico, irrequieto e provocador do homem do modernismo brasileiro. A Academia Brasileira de Letras bem que merecia estas finas ironias e continua merecendo, especialmente quando sabemos que o global Merval Pereira é um de seus componentes.

domingo, 21 de maio de 2017

Oswald de Andrade - Biografia. Maria Augusta Fonseca.

O meu contato maior com Oswald de Andrade era para ter acontecido em 2011, quando o homem do modernismo brasileiro foi o homenageado da Feira Literária de Paraty, em sua nona edição. Não ocorreu, pois eu ainda estava em sala de aula. Agora, quase ao acaso, tive este feliz reencontro com o escritor.  Uma pequena compra me fez passar em frente a uma feirinha de livros  da Top Livros, no Shopping Barigui. Todos os livros a R$ 10,00. Uma breve vasculhada, e já estava com vários livros em mãos.
Bela biografia e belo entremear do escritor com o seu tempo e história. Um belo panorama cultural.


Um deles era Oswald de Andrade - biografia, de autoria da professora Maria Augusta Fonseca. O livro é de 2007, da Editora Globo. A Top Livros atua na ponta de estoque dos livros. Imerecidamente este livro fez parte de sobras. Isto me lembrou do último livro do escritor, homem sem profissão. Sem profissão é uma alusão à vida que leva o escritor no Brasil. Tanto os escritores, quanto seus livros podem facilmente entrar no imerecido ostracismo. No funeral de Oswald de Andrade havia menos gente do que na menos concorrida das recepções que dava em seus tempos de fausto.

Oswald de Andrade tem o seu nome umbilicalmente ligado ao modernismo brasileiro, à semana da arte moderna e ao companheiro daquela pioneira jornada, Mário de Andrade.  Antônio Cândido, seu compadre, e analista de sua obra, assim define  este complexo, irrequieto e provocador personagem: "Nesse homem contraditório, reside o conservador e o vanguardista, o conformista e o experimentador". Com a mesma facilidade com que cultivava amizades, também as rompia, com a sua feroz crítica.

Oswald de Andrade pertenceu a mais alta burguesia paulista O pai era político e fez fortuna com a especulação imobiliária. Não foi suficiente, no entanto, para que a ela desse um fim. Recebeu fortes influências da mãe, especialmente o fervor do catolicismo, com o qual nunca rompeu por completo, mesmo sendo adepto do materialismo em seus tempos de militância comunista. Sua vida era agitadíssima sob todos os aspectos. Com os amigos, com as finanças, e, especialmente, em seus envolvimentos amorosos, que muito escandalizaram a conservadora São Paulo.

Jorge Schwartz escreve a orelha do livro e assim faz a sua apresentação. "A biografia entrelaça vida e obra, com um pesquisa minuciosa, em fontes como depoimentos de época, correspondências, artigos jornalísticos, polêmicas literárias, políticas e pessoais, somados às próprias e surpreendentes descrições desse artista que, na melhor tradição vanguardista da identificação 'arte-vida', chegou a se converter em sua própria personagem. Mais do que desenhar um perfil individual, a autora faz um verdadeiro retrato do Brasil. Em momento algum deixa de cruzar os traços biográficos com os registros históricos de um país rural de inícios do século XX, que ingressa na modernidade pau-brasilante com todas as contradições próprias de uma nação periférica e dependente, que buscou com afinco definir sua própria identidade".

Oswald de Andrade nasceu em 1890 e morreu em 1954. Assim a sua história passa pelos reflexos da abolição e da proclamação da República, pela lenta transformação da cidade pela industrialização, pelos agitos dos anos 1920, com a Semana de Arte Moderna em que foi estrondosamente vaiado, pela Revolução e transformações de 1930, pelo Estado Novo e sua censura, pela filiação ao Partido Comunista, até a sua morte em 1954, de uma diabete mal cuidada, embora todo o zelo de sua mulher.

O livro tem 19 capítulos, espalhados ao longo de 392 páginas, com bloco de fotografias e fartas notas apontando as fontes. Passa pela sua infância de filho único mimado, pelos anos de formação, pelo seu ingresso na Faculdade de Direito, pelas suas viagens a Paris, onde frequenta os mais requintados meios culturais, pelo seu envolvimento com a Semana da Arte Moderna e com todo o modernismo brasileiro, pelas suas obras literárias, pela sua atividade jornalística e de polemista da cultura brasileira. Uma vida muito rica, embora pouco compreendida.

A vida amorosa nunca lhe deu sossego. O seu lado dionisíaco era muito forte. De rígida formação moral religiosa passa por muitos amores, que assim como vinham, também se iam. Desta forma se envolveu com Kamiá, com Landa, com a bailarina Isadora Duncan, com Deise, com Tarsila do Amaral, com Pagu, com Julieta, e com Maria Antonieta d'Alkmin, com quem se casou em "últimas núpcias" e para quem escreveu o "Cântico dos Cânticos para flauta e violão". Deveria ser alguém muito sedutor.

Toda a sua obra, bem como as críticas a ela, também são objeto de análise desta biografia. Nas páginas finais tem uma relação completa de seus livros, todos reeditados pela Record. Os que me deu mais vontade ler são os mais autobiográficos. Memórias sentimentais de João Miramar, o Rei da vela (peça de teatro), Pau Brasil, Serafim Ponte Grande e um Homem sem profissão. De maneira geral a sua obra não foi bem recebida. Podemos dizer que ele foi redescoberto, apenas com a chegada do século XXI. O livro também é rico em aspectos pitorescos de sua vida, como as duas tentativas para seu ingresso na Academia Brasileira de Letras, mais como denúncia do que vontade efetiva de ingresso. Mas isso merece um post especial.

O livro é maravilhoso e eu o tomei como um grande livro de história do Brasil, um Brasil tão novo, tão em busca de identidade, causa esta, que foi o motivo principal da agitada vida do escritor. Como gosto de epígrafes, pela sua capacidade de síntese, deixo aqui duas delas. A primeira é geral ao livro: "O homem é o animal que vive entre dois grandes brinquedos - o amor onde ganha, a morte onde perde. Por isso inventou as artes plásticas, a poesia, a dança, a música, o teatro, o circo e enfim, o cinema". A segunda é da introdução, "A vida não é em linha reta, nem em ordem direta se processam as histórias de cada homem".

Um dos grandes méritos em sua vida foi o de nunca ter tido medo de amar. Como recompensa, entre muitas outras, imagino, recebeu uma dança, com absoluta exclusividade, de Isadora Duncan, com a sua nudez envolta apenas com a mágica leveza de suaves transparências. Confesso que fui acometido por uma deliciosa pontinha de inveja.






terça-feira, 16 de maio de 2017

A Gênese das teses do Escola sem Partido. Guadêncio Frigotto.

Na sexta feira, dia 12 de maio, fui assistir uma palestra, organizado pela APP-Sindicato, pelo seu Núcleo Curitiba-Sul, com o professor Gaudêncio Frigotto, que versaria sobre o movimento do Escola sem Partido. Conheço o professor, já de longa data, e a sua fala qualificada, bem como os seus textos e livros sempre são uma referência para mim. A sua fala foi vigorosa e reconfortante.

Tomei as devidas anotações para fazer este post, mas ao final de sua palestra eu adquiri o livro organizado por ele, Escola "sem" partido - Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Como muito do que ele falou está contido no seu artigo no livro, será ele a referência para o post. Ele versa sobre a gênese das teses do movimento, e usa, para combatê-lo, as imagens de Édipo diante da Esfinge, o Ovo da Serpente do filme de Ingmar Bergman e duas crônicas, O Ódio e O Alarme, de Luiz Fernando Veríssimo. Basta jogar no google, e você as terá.
Como não encontrei o livro em livrarias, dou o contato via e-mail: uerj.Ipp@gmail.com

Três tópicos constituem a estrutura do texto. A estrutura do sistema capitalista, anulação da política e estado policial; retorno do fundamentalismo mercantil e o desmanche da escola pública e a função docente e -  para concluir: o golpe, o escola sem partido, a esfinge, o ovo da serpente, o ódio e o alarme. Todo o texto é permeado pelo princípio de que vivemos numa sociedade capitalista, fundada no lucro e dividida em classes. Este fato implica em graves conflitos que são resolvidos por guerras, revoluções e golpes.

Do primeiro tópico destacaria a ideia de que as crises são fator de acumulação de capital, hoje concretizado pelo assalto institucional da dívida pública, que abocanha 45% do total do orçamento anual da União. Se antes as crises eram cíclicas e locais, hoje elas são globais e permanentes. Para viabilizar a acumulação sem contestações, se instala  o estado policial. Para executar este projeto, no interesse da burguesia, ela coopta uma série de coadjuvantes como a mídia, moedora de cérebros, e seitas religiosas, que transformaram "deus" numa mercadoria abstrata. Esta burguesia que é anti nação, anti povo e anti escola pública quer, pelo projeto, instituir uma pedagogia do medo e da violência, pelo instrumento da delação.
O autógrafo e a certeza de estarmos nas mesmas lutas.

No segundo tópico o conceito básico é o de que hoje todas as relações sociais são pautadas e permeadas pela mão invisível do mercado. Todo o histórico da escola pública republicana é substituído pelo ideário do capital humano, que individualiza a culpa, ou do êxito, ou do fracasso. Os pobres são pobres porque não se empenham, não investem em sua produtividade. Este mercado educacional não necessita de políticas públicas, pois a educação saiu da esfera dos direitos para entrar na dos investimentos, que, no mercado são regidos pelo implacável processo de competição. Este forma os seus intelectuais orgânicos em organizações próprias, como a OMC, o BIRD e o BID. Esta educação exige um novo currículo e um novo professor. Nesta escola apenas se pratica, sem práxis, o ato de ensinar. O professor é destituído de sua função educadora e formadora.

Na conclusão, Frigotto nos mostra que o "Escola sem Partido" é o projeto desta burguesia que quer esta nova escola e este novo professor. Quer lhe retirar seus direitos e lhe impor um estado policial fundado na denúncia, na delação e implantar nas escolas uma verdadeira pedagogia do medo, do medo que está entre nós, com a presença dos próprios colegas. Por fim ressalta que é preciso desvendar o enigma da esfinge  e enxergar o filhote da serpente, ainda dentro do ovo, através da fina membrana que o encobre e ver os alertas feitos pelas crônicas de Veríssimo, antes que a esfinge nos devore e que a serpente, já não mais dentro do ovo, destile o seu veneno e contamine todas as instituições da sociedade brasileira.
Sempre é bom o encontro de amigos.

Para isso é fundamental vencer o medo. No texto Frigotto nos remete a Antônio Cândido, a um artigo seu, publicado no jornal Opinião, em janeiro de 1972, sob o título O caráter da repressão. Um texto imperdível, disponível no Portal Vermelho. Ele termina com uma citação de Alfred de Vigny, sobre o medo do medo. " Não tenha medo da pobreza, nem do exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenha medo do medo". O oposto do medo é a coragem, a coragem para decifrar o enigma da esfinge   e para destruir a serpente, ainda dentro do ovo, para que o fascismo em implantação, seja contido antes que propague todos os seus males, como já o foi tristemente experimentado.

domingo, 7 de maio de 2017

Uma História do Samba. As origens. Lira Neto.

Ler um livro do Lira Neto é sempre uma certeza de muita satisfação, informação e formação. Depois de ler a trilogia da biografia de Getúlio Vargas e a do padre Cícero, agora foi a vez do primeiro volume de uma nova trilogia sobre a história do samba. Uma história do samba - As origens. Uma primorosa edição da Companhia das Letras, um lançamento de 2017.
 Pesquisa de muito fôlego. Será sempre uma referência para quem estudar o samba.

Antes de partir para a resenha do livro, passo para a apresentação do projeto da trilogia. A referência está contida no próprio livro. "Esta é a primeira parte da história do moderno samba urbano. O presento tomo, que serve de abre-alas à série e tem como subtítulo As origens, concentra-se no Rio de Janeiro do final do século XIX, até o início da década de 1930, quando da realização dos primeiros desfiles das escolas de samba cariocas. O segundo volume mapeará a chamada Época de Ouro da música brasileira, compreendendo, portanto, o espaço temporal entre os anos de 1930 e 1945, quando o samba se institucionalizou como símbolo de uma proclamada "identidade nacional". O terceiro tomo, por fim, prosseguirá desse ponto em diante, até alcançar os cenários contemporâneos do samba, com seu rico e controverso leque de vertentes e derivações".

O primeiro tomo tem 342 páginas. Estas estão divididas em treze capítulos e 73 páginas de notas e referências bibliográficas das fontes. Um legado para os pesquisadores. Um detalhe, fontes inéditas. Acompanham ainda dois blocos de preciosas e históricas fotografias. Como pretendo fazer um apanhado geral, sem entrar em pormenores dos nomes dos protagonistas das origens do samba, os deixo aqui citados, tomando-os da contracapa do livro: "Rastreando os passos de bambas como Zé Espinguela, Donga, Sinhô, Pixinguinha, Ismael Silva e Noel Rosa, o livro investiga as letras e as melodias, os instrumentos e as gravações fonográficas, a sociologia e a política do ritmo. Lira demonstra que a trajetória do samba corresponde a sua gradativa incorporação ao imaginário cultural do Brasil, no qual festa e agonia se digladiam de modo intermitente".

Festa e agonia. Estas duas palavras resumem a história do samba. Isso também está expresso na bela frase que serve de epígrafe ao livro, tomada de Caetano Veloso - O samba é pai do prazer / O samba é filho da dor. "Desde que o samba é samba". Aparece ainda no prólogo do livro, sob o título Entre a agonia e a festa.  A dor é proveniente da escravidão e das políticas de exclusão que se seguiram à abolição e o prazer é a festa, pois, a própria palavra samba é sinônimo de festa. A alegria, mesmo em meio a tanta dor, sempre a esta superou. Vejam só o aspecto formativo do livro.

Bem, como vimos, o primeiro livro trata dos fins do século XIX e se estende até os anos 1930, tempo de Getúlio Vargas. Alguns fatos políticos e históricos precisam ser levados em conta, como a abolição e a proclamação da República, o fenômeno da urbanização da capital da República e as deliberadas políticas de exclusão social, decorrentes do imperativo da "Ordem e Progresso".
Lira Neto autografando o terceiro volume da biografia de Getúlio, em jantar na casa do amigo Rodolfo Prates.

Na há dúvidas de que o samba é de origem africana e que no Brasil, os seus primeiros ensaios são baianos, mas estes baianos vieram para o Rio de Janeiro. Hilário Jovino Ferreira é nome para ser anotado. Conhecer a geografia do Rio de Janeiro também ajuda a ler o livro. Foi o que me faltou bastante. Mas vamos tomar o centro como referência. Vamos até a Central do Brasil e acompanhar os trilhos da ferrovia. Ao longo deles e nos morros dos arredores ia morando o povão, enquanto os ricos foram rumando para a zona sul. Muitos casarões foram transformados em cortiços, que vieram abaixo com as políticas de Pereira Passos, o Haussmann brasileiro. A literatura ajudou bastante. Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Lima Barreto...

Um fato que me chamou bastante atenção foi a formação dos núcleos urbanos a partir dos fenômenos de exclusão social, pela inexistência de políticas públicas. Os soldados que regressaram da Guerra de Canudos (1896-97), sem soldo e sem lar, mais os negros libertos do Vale do rio Paraíba, com a decadência da lavoura cafeeira, formaram os primeiros núcleos urbanos na região portuária, do Valongo, na "Pequena África". As políticas de higienização protagonizadas por Pereira Passos promoveram novos deslocamentos, empurrando-os para mais longe e, ao menos no primeiro momento, a Praça Onze e os seus entornos foram a nova morada destas populações e, em consequência, também do samba.

Outro fenômeno interessante, bonito e tipicamente brasileiro é o sincretismo religioso, a partir da festa de Nossa Senhora da Penha, onde em meio aos cânticos religiosos, os instrumentos do povo negro foram cavando os seus espaços, junto com as comidas e quitutes da cozinha africana, ao longo das festividades, eminentemente populares.

Aí começa a história dos grandes nomes, dos quais, cada um mereceria uma biografia. Também  são citados os instrumentos e os grupos que se formaram. Mas a marca da dor e do prazer continua vivia. A dor pelos empregos mal remunerados, pelos horários rígidos a que eram submetidos em seus trabalhos mal remunerados e a presença da sífilis e da tuberculose, as doenças que provocavam as mortes precoces e, por outro lado, a ausência do saneamento também provocava as suas letais consequências. Além disso sofriam as constantes ameaças de prisão pela lei da vadiagem (1902) com a qual eram punidos os desocupados, tidos como vadios. Tudo servia de pretexto para a modernização e higienização. Mas as noites se tornavam intermináveis, nas casas das tias, com rodadas de cachaça, cerveja e os instrumentos e as vozes do samba. Estas dores e amores, sofrimentos da ausência do dinheiro e da perdas e ganhos nos amores eram a matéria prima deste grande marco da cultura e da identidade brasileira.

Os últimos capítulos são dedicados às escolas de samba e aos primeiros desfiles (1932-1933), com destaque para o segundo, realizado na Praça Onze, com a Mangueira (a Primeira) se sagrando bi campeã. O livro contém os regulamentos, as boas maneiras necessárias, a proibição do uso de instrumentos de sopro, da sátira política, do uso de símbolos nacionais, assim como os quesitos a serem julgados: harmonia, samba, enredo, originalidade e conjunto. É também o tempo da indústria fonográfica e da indústria cultural. A mulher, ao menos neste primeiro momento da história, entrava apenas como tema dos cantos, mas não ainda, como voz. Carmen Miranda, porém, já aparece no cenário. Fico na espera da continuidade, com a publicação do segundo volume. Aí entrará em cena Lupicínio, meu ídolo maior, Lembro ainda, que a Folha de São Paulo tem uma bela coleção - Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, dedicada a 25 cantores. A coleção tem folheto e um CD com a voz dos grandes astros.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Stefan Zweig. Adeus Europa.

Os livros de Stefan Zweig há muito estão em minha lista de espera. Há muito despertaram a minha curiosidade. Agora, com a estreia do filme Stefan Zweig - Adeus Europa, lançado no Brasil no final de abril de 2017, tive com o autor um encontro um pouco mais marcado. Vamos, de início contextualizar um pouco o famoso escritor austríaco. Ele nasceu em Viena em 1881 e era descendente de judeus muito ricos. Morreu em Petrópolis junto com Lotte, a sua mulher, ambos por suicídio. Zweig era escritor renomado e apenas Thomas Mann o superava em número de leitores.


O filme, embora sendo uma autobiografia, fez uma opção para apresentar apenas recortes de sua vida, a partir do exílio, em 1936, com cenas passadas no Brasil, na Argentina e nos Estados Unidos. Zweig conseguiu fugir em tempo hábil, se livrando assim das garras da ascensão do nazismo e de todas as suas atrocidades. De uma maneira geral a crítica cobra um maior conhecimento da vida do escritor pois, para o pessoal absolutamente leigo, haveria dificuldades em situá-lo. Não sei se seria realmente o caso. Quais são efetivamente os critérios que levam alguém ao cinema? Ver Zweig segue a uma deliberação, a uma escolha.

O filme começa com uma recepção luxuosíssima ao escritor na embaixada brasileira, no Rio de Janeiro. Lá foi recebido em festivo almoço, com rica decoração, com a mesa ornamentada  com flores muito coloridas, com cores muito brasileiras. O banquete da recepção não foi mostrado, apenas os discursos. Zweig estava a caminho de Buenos Aires para um encontro mundial de escritores que visava celebrar a liberdade de expressão. É neste momento que ocorre uma cena bastante elogiada pela crítica. Uma entrevista coletiva para a imprensa. Os jornalistas procuraram de todas as formas arrancar uma confissão anti Hitler, que ele recusou. Seriam necessários maiores dados biográficos para entender os motivos desta criticada recusa. Seria uma função do escritor?

De Buenos Aires o escritor ruma para os Estados Unidos, sem antes passar por uma cidade do interior da Bahia, onde recebe homenagens bastante hilárias, marcadas pelas características do prefeito fanfarrão e dos improvisos, com atrasos e desacertos e, inclusive, uma gafe da direção. O sotaque não é baiano, é português. Antes da homenagem são mostrados canaviais e algumas coisas relativas ao seu cultivo. Zweig mostrou profundo interesse, fazendo inúmeras anotações. Zweig se tornou um grande entusiasta do Brasil, de seus encantos e de sua gente.

Outra parte bem interessante do filme mostra Zweig em Nova Iorque. Lá ele se reencontra com a ex mulher que lhe faz duras cobranças para que ele ajude, com o uso de sua notoriedade, na fuga de outros escritores alemães e austríacos que encontravam grandes dificuldades em empreenderem suas fugas. Creio que, mais uma vez, faltam dados biográficos para uma maior compreensão das cenas. Ele era considerado bastante recluso e talvez por isso ele fosse considerado como pouco propenso a exposições.

Na parte final o filme volta-se novamente para o Brasil, para Petrópolis, mais precisamente, a morada derradeira do escritor. Mostra-o entusiasmado pela paisagem, com a rica flora, a sua integração com a população local e o contato com amigos que também se encontravam no exílio. Em meio a isso vem o lúgubre desfecho. Tanto o escritor, quanto a sua mulher cometem o suicídio, por envenenamento, durante o carnaval de 1942. Estas cenas são magnificamente trabalhadas, mais insinuando do que mostrando. Um dos destaques do filme é a atuação de Josef Hader no papel de Zweig. O seu olhar e o seu semblante indefinido são sempre portadores de alguma perturbação. A direção do filme é de Maria Schrader.

Stefan Zweig deixou uma carta de despedida. Localizei a sua parte final onde ele expõe a razão do ato extremo. As dores do mundo, dilacerado em guerra, eram superiores às de sua capacidade de, pelas palavras, ainda conseguir imprimir mensagens de esperança, função maior de sua arte. Mas vejamos este parágrafo: "A cada dia fui aprendendo a amar mais  e mais esse país, e em nenhum lugar eu poderia ter reconstruído por completo a minha vida, justo quando o mundo de minha própria língua se acabou para mim, e meu lar espiritual, a Europa, se auto-aniquila".

Quanto a leitura, três livros me chamam mais a atenção. A biografia escrita por Alberto Dines, Morte no Paraíso - A Tragédia de Stefan Zweig; o seu livro sobre o Brasil Brasil, o país do futuro e a sua autobiografia O Mundo de ontem.








terça-feira, 2 de maio de 2017

Auto de Fé. Elias Canetti.

Este livro é mais uma das indicações, dos nove maiores romances da literatura mundial, indicados pelo escritor Vargas Llosa. Encontrei a referência no Portal Raízes. Trata-se de Auto de Fé, do escritor búlgaro/inglês, com sobrenome italiano e que escrevia em alemão, Elias Canetti. O livro foi publicado em Viena em 1935, o segundo ano da ascensão do nazismo. Elias Canetti chegou à condição de Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1981.
A edição de Auto de Fé da Nova Fronteira com tradução de Herbert caro.


Confesso que tive enormes dificuldades na leitura e na metabolização do mesmo. O real e o imaginário se misturam o tempo todo, ao longo de suas longas 671 páginas. No Brasil o livro foi editado pela Nova Fronteira. Para facilitar um pouco a sua compreensão e como é hábito meu, vamos a uma rápida contextualização do autor e de sua obra. Elias Canetti nasceu na Bulgária em 1905, filho de uma família judaica espanhola com grande tradição de erudição. Já aos cinco anos foi levado para Londres e, com a morte prematura do pai, a mãe o levou para Viena. A sua formação basicamente se deu na Alemanha. Em 1938 exilou-se na Inglaterra, fugindo do nazismo. Morreu em 1994, na Suíça. Vida agitada, como podem ver.

Vamos ao livro. Ele foi publicado em 1935 em Viena. Encontrei em um blog, entre os comentários, uma informação interessante sobre a escrita do mesmo. Consta que ele foi escrito ao longo de três anos, em um quarto extremamente confortável, situado em frente a um manicômio, ouvindo o grito dos "loucos". Esta era a denominação da época e, sobre isso, existem muitas referências no livro (sobre a psiquiatria). A mim me pareceu que todos os personagens que interagem no livro eram internos deste manicômio. Erro de percepção. Os personagens eram reais, de uma Europa dilacerada, com os indivíduos se decompondo em massa, que não parava de crescer, no início dos anos 1930. Tempos de crise geram monstros. A massa fanática se sobrepõe a todo e qualquer princípio de lógica e de racionalidade.

O romance é de leitura complicada, já que os personagens vivem a realidade da loucura. O humor e a ironia são componentes fundamentais, entremeados com a loucura.  O personagem mais importante é um intelectual, o maior sinólogo (entendido em China) da época e dono de uma vasta biblioteca, a maior biblioteca privada da cidade. Não se relaciona com ninguém. Vive enclausurado dentro da enorme biblioteca, em contato apenas com uma governanta, com quem mantém pactos de não comunicação. É um intelectual respeitado mas absolutamente estéril. Após oito anos de convivência com Therese, a governanta, lhe propõe casamento. Assim não precisaria mais pagar-lhe ordenado. Aí começa a sua ruína. Peter Kien, este é o nome do sinólogo, manifesta uma misoginia tão explícita, como nunca vi paralelo em qualquer outra leitura que já fiz.

Um terceiro personagem é um brutamontes, um policial aposentado, que é o zelador do prédio e que aparentemente é aliado do professor. Vejam a representação da violência na figura do policial. Pfaff, tal é o seu nome, visa apenas ganhos pessoais e para obtê-los carece de qualquer tipo de escrúpulos. Aliás a questão do dinheiro está onipresente no livro. Todos o buscam inescrupulosamente. Um quarto personagem é Fischerle, um anão corcunda, que perambula junto com o professor Kien em suas desventuras, longe de sua biblioteca, da qual fora posto para fora por Therese. Ajuda ao professor na construção de sua nova biblioteca, agora em seu imaginário. Carrega e descarrega diariamente os livros de sua cabeça, alinhando-os cuidadosamente nos hotéis em que se hospedam.

Ficherle introduz o intelectual no submundo, levando-o aos prostíbulos da cidade, no Paraíso, mais elitizado e no Babuíno, frequentado por estes, que dão o nome à casa. Fiz uma consulta para ver o significado exato da palavra. Conferiu com os frequentadores. Fischerle era esperto, dizia-se campeão mundial de xadrez e sonhava com a América e com os sonhos a que ela induzia. No Babuíno arrumou um passaporte falsificado de primeira. Vivia fazendo trapaças, conseguindo dinheiro em fraudes de todos os tamanhos. Pensando na aplicação de mais golpe, manda um telegrama ao irmão de Kien, um psiquiatra, que presidia um manicômio em Paris.

Que o leitor não queira saber sobre o final da história. Ela não se fecha. Tudo permanece inconcluso. O irmão Georges, que quando jovem fora renomado ginecologista e, onde as mulheres adoeciam quando os maridos viajavam, não deixavam de se consultar. Depois se transformou em psiquiatra, tendo sob seus cuidados mais de 800 internados. Quando ele chega a cidade do irmão, aparentemente o liberta de tudo, isto é, do jugo de Therese, do zelador e da gang de Fischerle. Então começam as brigas entre os dois irmãos. São as discussões mais elevadas do livro. Esta passagem me lembrou um pouco de A Montanha Mágica. O autor tem estofo para os diálogos deste livro, mas não os seus personagens. Estes o levam aos submundos de seu tempo.

O livro está dividido em três partes que recebem os seguintes títulos, que podem nos dar uma pista sobre o seu conteúdo, ou não. Uma cabeça sem mundo; um mundo sem cabeça e um mundo na cabeça. Valeu? Além do Nobel de Literatura de 1981, Canetti recebeu também o prêmio Franz Kafka, o mais importante prêmio da literatura austríaca. O maior mérito do livro está, sem dúvida, em nos apresentar este destroçamento psíquico em que a Europa vivia neste tempo de entre guerras e a ascensão dos regimes fascista e nazista. Lembrem-se que ele pertenceu a uma família de judeus. O google me deu a seguinte definição de auto de fé: Auto-de-fé ou auto-da- refere-se a eventos de penitência realizados publicamente (ou em espaços reservados para isso) com humilhação de heréticos e apóstatas bem como punição aos cristãos-novos pelo não cumprimento ou vigilância da nova lhes outorgada, postos em prática pela Inquisição, principalmente em Portugal ...