segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 25. Milton Santos.

Concluo hoje a análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o geógrafo Milton Santos, numa resenha de Fábio Betioli Contel. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial de 2014. Ao todo são apresentados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB). São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil ´clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

Fábio Betioli Contel divide a sua resenha sobre Milton Santos em duas partes: na primeira mostra a sua trajetória pessoal, sua formação, seus primeiros trabalhos e o início de seu envolvimento com o mundo da geografia. Na segunda, ele apresenta o grande geógrafo, quando este já estava instalado no espaço privilegiado da USP e produziu toda uma filosofia da geografia. Não é fácil fazer uma síntese de um intelectual tão produtivo, como o foi Milton Santos, com mais de 40 livros publicados, depois de ter trabalhado em muitas das grandes universidades pelo mundo afora.

Milton Santos nasceu na pequena cidade do interior baiano, Brotas de Macaúbas, no ano de 1926. Sua formação escolar começa em sua própria casa, uma vez que seus pais eram professores. Aos dez anos cumpre, segundo ele próprio, o seu "primeiro exílio", num colégio interno em Salvador, um colégio que privilegiava a formação humanista, com forte carga nas disciplinas de filosofia e de literatura. Em 1944 ingressa na Faculdade de Direito e explica as razões dessa sua escolha: "A faculdade de direito era o lugar da formação geral, inclusive porque o direito não era ministrado como algo técnico; o direito era ensinado juntamente  com economia política [...] juntamente com sociologia jurídica, teoria do Estado, direito constitucional [...]. Isso dava uma base em humanidades que nenhum outro curso oferecia". Foi o tempo em que entrou em contato com Josué de Castro e o seu Geografia da fome (1946).

Milton Santos destaca que ao longo do seu curso de Direito foi influenciado por bons professores. Ele ingressa na vida profissional como professor de geografia em Ilhéus, onde também inicia uma outra atividade que não mais abandonará, a cooperação com jornais. Ele volta a Salvador, depois de aprovado em concurso na Faculdade Católica da cidade. Continua também com a sua atividade jornalística. Exerce cargos políticos, sempre voltados a projetos de desenvolvimento. É o tempo em que se aproxima do Partido Comunista e do governo Jango. A convite de professores franceses faz o seu doutorado em Toulouse. Em 1964 inicia o seu segundo exílio, que ele qualificou como um desenraizamento. Irá trabalhar em universidades famosas como o MIT e a Sorbonne e também em organismos internacionais como a OIT, a OEA e a própria ONU. Estes trabalhos o levam para a África. Emprego e urbanização nos países do Terceiro Mundo o fascinam.

Ao final dos anos 1970 ele regressa ao Brasil e, mesmo com todo o currículo que o acompanha, ele enfrenta dificuldades. Ele próprio nos conta: "os professores das universidades, mesmo aqueles que se fingiam de esquerda, corriam dos professores exilados, como o diabo da cruz". Ele volta para a Bahia, pois queria um filho baiano. Trabalha na UFRJ por um breve tempo e se instala definitivamente na USP., onde encontra todas as condições favoráveis para desenvolver o seu trabalho. É um tempo de efervescência cultural com a ditadura militar agonizante.

Na USP, ele busca uma filosofia para a geografia. A urbanização e o espaço geográfico continuarão sendo os temas que ele privilegia, tudo sob a ótica de uma "nova geografia". Em 1996, já com 70 anos lançará o seu livro mais importante: A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, que, conforme ele próprio afirma, lhe consumiu 15 anos de trabalho. Ele assim define o espaço geográfico, que ele tanto estudou: "O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e de sistemas de ações, não consideradas isoladamente, mas como o  quadro único no qual a história se dá. No começo era uma natureza selvagem, formada por objetos naturais, que ao longo da história vão sendo substituídos por objetos fabricados, objetos técnicos, mecanizados e, depois, cibernéticos, fazendo com que a natureza artificial tenda a funcionar como uma máquina. [...] Os objetos não têm realidade filosófica, isto é, não nos permitem conhecimento, se os vemos separados dos sistemas de ações. Os sistemas de ações também não se dão sem os sistemas de objetos".

Nesse tempo, também não abdica da militância política, brigando mais por ideias do que pela militância partidária. Outro importante tema de que se ocupa é o da globalização, que ele considera fruto de duas tiranias: a tirania da informação e a tirania do dinheiro. É o sistema em que "algumas poucas empresas de alcance global possuem condições de minimizar a ação republicana dos Estados e arrastar para sua órbita, direta ou indiretamente, todas as regiões produtivas, todas as populações, os excedentes e os sistemas culturais locais". Em seu livro Por uma outra globalização, ele reivindica que o homem seja o centro das preocupações civilizacionais. Continuou também a sua militância nos jornais, ocupando colunas na Folha de S.Paulo e no Correio Brasiliense. Era tido como um professor elegante, rigoroso e generoso.

Vejamos a parte final da resenha, em que Fábio procura mostrar o sentido de sua trajetória de vida: "Seu projeto de vida, nesse sentido, se completou plenamente. Além de geógrafo, Milton foi um intelectual público, na acepção que Sartre dá à palavra, isto é,  um 'guardião dos fins fundamentais (emancipação, universalização e portanto humanização do homem)'. Lutou por esses 'fins fundamentais'  a seu modo, num incansável combate por meio da práxis intelectual, a partir de suas ideias libertárias. Seu legado é também um convite. Um convite para que todos aqueles preocupados com o destino da humanidade não esmoreçam na difícil batalha de tornar o espaço geográfico guarida perfeita para a vida digna de toda a população do mundo. Sem exceções".

Tenho no meu blog um dos textos que ele publicou na Folha de S.Paulo, que considero fundamental que seja do conhecimento de todos os educadores. Uma espécie de testamento. É sobre os princípios da educação, para que ela não forme "deficientes cívicos".

 http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/03/os-deficientes-civicos-milton-santos.html

E, como de hábito, o último trabalho. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_28.html

 

 

sábado, 28 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 24. Paulo Freire.

Quase concluindo a análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, vamos hoje trabalhar o "Patrono da Educação Brasileira", Paulo Freire, numa resenha de Ângela Antunes, do Instituto Paulo Freire. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

Paulo Freire nasce na cidade de Recife no ano de 1921 e morre em São Paulo em 1997. Toda a sua obra é autobiográfica e poderia se resumir, segundo a resenhista Ângela Antunes, como "o estar sendo no mundo", agindo nele e o transformando. Também reflete bem toda a sua obra o lema - ação - reflexão - ação, ou, a constante reflexão sobre a prática e o fato de sermos seres inconclusos, em construção, sempre na busca do SER MAIS. E em função disso, sermos movidos pela alegria e pela esperança, ou, numa palavra mais sua, pela amorosidade.

Seu casamento com Elza Maria Costa de Oliveira, uma professora, lhe permitiu uma ampla participação nos debates e na prática das suas atividades educacionais. Paulo formou-se em Direito, mas largou o ofício já em sua primeira causa. Começa a lecionar no próprio colégio que o abrigara com uma bolsa de estudos, mendigada pela sua mãe. Foi ser professor de português. Também trabalhou como professor no SESI de Pernambuco. Foi nessas atividades primeiras, que começa a se esboçar aquilo que se convencionou chamar de "método Paulo Freire", que é, na verdade, muito mais uma concepção de educação: "Pensar a prática para melhor praticar", ou uma "concepção dialética da educação". O seu "método" passa por três etapas, a saber: leitura da realidade - seleção de palavras (temas geradores) e a problematização. 

Como Ângela sintetizou essas três etapas, achei interessante apresentá-las: 1. Etapa da investigação: Descoberta do universo vocabular, em que são levantadas palavras e Temas Geradores à vida cotidiana dos alfabetizandos e do grupo social a que eles pertencem. 2. Etapa da tematização: São codificados e decodificados os temas levantados na fase anterior, contextualizando-os e substituindo a primeira visão mágica por uma visão crítica e social. 3. Etapa de problematização: Nessa ida e vinda do concreto para o abstrato e do abstrato para o concreto, volta-se ao concreto problematizado. Descobrem-se os limites e as possibilidades captadas na primeira etapa. Assim, a alfabetização nunca é dissociada da conscientização. Na avaliação das práticas, sempre é considerado o grau de conscientização que foi obtido. E, lembrando bem, o seu método não é uma técnica de ensino.

Essa sua concepção de educação passa por alguns pressupostos filosóficos: O ser humano é um ser de relações; as relações só se estabelecem entre seres iguais, não hierarquizados; os seres são inconclusos e conscientes da sua inconclusão e estão em busca (transcendência) do "ser mais"; o diálogo, e não o discurso, é o mediador da relação entre os seres que interagem. A humildade e a predisposição para a abertura ao saber são condições indispensáveis para o ser educador. Tudo isso passa por uma construção coletiva e não por uma mera transmissão. Busca-se assim uma cidadania ativa e uma cultura que estimule a solidariedade. 

O seu modo de pensar se formou através das atividades educacionais desenvolvidas em Recife e ele ganha grande notoriedade com o programa de alfabetização de adultos, desenvolvido na cidade de Angicos (RN). Nesse tempo é fortemente influenciado pelos pensadores do ISEB (nacionalismo desenvolvimentista) e busca uma grande compreensão da realidade brasileira, conhecê-la, para transformá-la. Essas suas atividades são tolhidas pelo golpe de 1964, quando é preso por longos 72 dias, rumando depois para o seu exílio no Chile, onde encontra condições para a escrita de seus dois primeiros grandes livros: Educação como prática da liberdade e Pedagogia do oprimido. Nessas obras estão todos os fundamentos de sua concepção educacional, uma concepção que beneficie os "esfarrapados do mundo".

Em 1969 irá para os Estados Unidos. Lá, não será estudante em Harvard, mas sim, professor. Permanece por pouco tempo, rumando para Genebra, para trabalhar no Conselho Mundial de Igrejas por dez anos. É um tempo de grandes trabalhos e novos livros. Ele colabora na organização de projetos educacionais para as recém libertas colônias da África, de língua portuguesa. Educação e emancipação na prática, na superação do colonialismo e de todos os seus vícios, como o patriarcalismo e o imperialismo capitalista. Como esses países praticariam agora a conquista da liberdade política?

O ano de 1980 marca o seu retorno ao Brasil. A UNICAMP e a PUC/SP o acolherão. Em 1989 ele assume a Secretaria de Educação da cidade de São Paulo, a convite da prefeita Luíza Erundina. (a respeito ver o livro Educação na cidade). Licencia-se do cargo, premido pela urgência de escrever. O seu último livro completo é uma espécie de testamento seu - Pedagogia da autonomia - saberes necessários à prática educativa, livro com o qual ele teve uma enorme preocupação para que ele chegasse ao máximo possível de educadores. Recebe inúmeros reconhecimentos internacionais, títulos de Doutor honoris causa das mais renomadas universidades mundiais e é agraciado com o título de Patrono da Educação Brasileira, título que lhe foi conferido em 2012 pelo Congresso Nacional.

A resenhista lhe presta um tributo com as palavras finais da Pedagogia do oprimido: "Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar".

Eu, particularmente, gostei muito de uma biografia sua, O educador - um perfil de Paulo Freire, de Sérgio Haddad, que li e resenhei. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/03/o-educador-um-perfil-de-paulo-freire.html. Também deixo a resenha do belo livro Pedagogia da autonomia, livro com o qual eu já trabalhei incansavelmente: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/08/pedagogia-da-autonomia-saberes.html

E, como de hábito, o trabalho anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_27.html

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 23. Maurício Tragtenberg.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - Clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o historiador e militante, Maurício Tragtenberg, numa resenha de Paulo Douglas Barsotti. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se iniciou no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

Barsotti inicia a sua resenha com uma frase em epígrafe: "O enigma decifrado brasileiro é que aqui tudo se reforma e nada muda". E logo emenda com uma segunda: "Qualquer Estado por natureza é conservador". Uma bela definição do resenhado. Maurício Tragtenberg nasceu em Getúlio Vargas (RS), no pequeno distrito de Erebango, no ano de 1929. É filho de imigrantes judeus ucranianos, fugidos dos pogroms czaristas. A sua primeira escola foi num galpão da pequena colônia em que nasceu. Começaram ali as escolas e universidades de sua vida, como costumava dizer.

Tragtenberg nunca pertenceu a qualquer ortodoxia, sempre defendendo a autonomia dos trabalhadores, criticando veementemente o capitalismo, o stalinismo e as burocracias. Mas teve aproximações com Marx, com os anarquistas, com Trotski, com Max Weber... Foi sempre eclético e pluralista. Desde cedo conheceu a literatura russa e se interessou pela sua Revolução de 1917. Considerou o stalinismo como uma perversão do socialismo e o denunciou pela sua aproximação com o capitalismo. A sua primeira expansão do conhecimento veio com a mudança para Porto Alegre, onde presenciou uma ação da Ação Integralista Brasileira (AIB), enxergando nela uma antecipação dos pogroms fascistas. Via na AIB uma extensão dos movimentos nazifascistas europeus.

De Porto Alegre segue para São Paulo, residindo nos bairros judeus, e, mais tarde, com os trabalhadores italianos, no Brás. Ali fez uma das escolhas de sua vida: nem judeu, nem cristão, mas ateu. No pós segunda guerra, por um breve tempo militou no PCB, rompendo com ele por causa da burocracia stalinista. Levou suas dúvidas ao Partido, sendo que ele as proibia. Em São Paulo conheceu Hermínio Sachetta, famoso trotskista. Permaneceu no trotskismo por um breve tempo, pois o considerava como um mero stalinismo mais intelectualizado. Fez progressos na vida. De Office boy, passa, em concurso público, na empresa de água e eletricidade, trabalhando seis horas por dia. Assim conseguiu frequentar a biblioteca pública Mário de Andrade, onde conheceu Florestan Fernandes e Antônio Cândido. Estes lhe orientaram leituras e lhe indicaram o caminho para ingressar na USP, mesmo sem o ensino básico completo, através da apresentação de um ensaio. Foi o que ele fez. Das ciências sociais migrou para a história.

Formado, torna-se professor da rede pública, trabalhando em Iguape, Taubaté, Mogi das Cruzes e na capital. No ensino superior, começa por São José do Rio Preto. Em 1964 começam as suas grandes agruras. É atingido pelo primeiro Ato Institucional, com a demissão do emprego. Passa um tempo internado em hospital, quando conheceu a burocracia médica. Aprofunda suas leitura de Max Weber. Pelas mãos de Cláudio Abramo chega a Folha de S.Paulo e ao Notícias Populares, onde mantém uma coluna que se tornou famosa por ser dirigida diretamente aos trabalhadores: No Batente. Essa coluna perturbou a classe patronal, o que lhe rendeu um curto prazo de validade. Em 1973 concluiu o seu doutorado, versando sobre o tema da burocracia. A orientação foi de Francisco Weffort. Depois foi professor da UNESP, UNICAMP e USP, tendo passado também pela PUC/SP e pela FGV.

Na sua coluna No Batente abordava, sem medo, os temas mais candentes. Considerava as palestras de motivação como tentativas para que as empresas tivessem escravos satisfeitos e contentes e interpretava o anúncio da exigência de boa aparência como um recado: negro não serve. Passou a trabalhar junto a organizações sindicais e orientou muitos trabalhos acadêmicos sobre o tema do sindicalismo. Defendia a organização autônoma dos trabalhadores, mas percebeu também o seu enredamento na burocracia sindical. Sempre a burocracia. Em seus livros, considerou a revolução de 1930 como um arranjo de modernização das elites, mas considerou 1964 muito pior. 1964 desfez as conquistas trabalhistas dos governos Vargas e promoveu o milagre brasileiro, através da super exploração do trabalhador.

Viu o renascer do sindicalismo brasileiro, com a aproximação do fim da ditadura militar, com certo entusiasmo, que se desfaz, à medida em que ele deixa de ser a organização autônoma dos trabalhadores. Com a mesma dose de otimismo viu o surgimento do Partido dos Trabalhadores, que também logo se desfez, ao perceber que o seu projeto não passava de disputas eleitorais. A Constituinte de 1988 lhe deu a oportunidade de estudar todas as constituintes brasileiras, quando chegou à conclusão da frase já registrada na epígrafe: "tudo se reforma e nada muda". Quanto ao Partido dos Trabalhadores, afirma que este se transformou num mero braço esquerdo do sistema. Ao defender a autonomia dos trabalhadores, critica a democracia representativa pela delegação de poder que ela dá aos eleitos: "Não há luta ou vida por procuração".

Sua obra está reunida em dez volumes, numa publicação da UNESP. Para ressaltar a sua importância deixo registrados os dois parágrafos finais da resenha: "A debilidade histórica das oposições brasileiras caminha pari passu com os processos de conciliação das classes dominantes e exclusão das massas populares da participação política. Tragtenberg ilustra a questão recorrendo a Justiniano José de Almeida (1812- 1863), jornalista ligado ao Partido Conservador que, 'referindo-se à velha Regência', caracteriza a política brasileira em três movimentos: ação, reação e translação. Assim, 'a primeira ação é popular, a segunda é absorvida pela elite; e a terceira é a conciliação'. No Brasil, arremata Tragtenberg, tudo 'se resolve na conciliação'. Esse é o 'enigma decifrado brasileiro' em que 'tudo se reforma e nada muda'.

Para finalizar, Maurício Tragtenberg, além de escritor e cronista do Brasil, possui um extraordinário trabalho acadêmico, em que foi orientador de inúmeras teses e mestrados que abriam espaço para estudos às vezes considerados 'estranhos à Universidade' Apesar de todas as agruras vividas, era difícil ver Tragtenberg sem seu senso de humor cáustico e de fina ironia, modesto, sempre escutando as pessoas, tolerante, sem jamais camuflar suas posições e sempre disposto a prestar solidariedade efetiva aos colegas e amigos que, assim como ele, sofriam discriminações políticas e acadêmicas. Persona rara que faz muita falta no meio político acadêmico brasileiro".

E, como de hábito, o trabalho anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_25.html

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 22. Mário Pedrosa.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o crítico de arte Mário Pedrosa, numa resenha de Everaldo de Oliveira Andrade. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se iniciou no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

O resenhista Everaldo de Oliveira Andrade abre o seu trabalho traçando uma breve síntese de quem foi Mário Pedrosa, afirmando que ele passou por dois exílios: Estado Novo e ditadura militar; que ele foi importante crítico de arte; militante do PCB; crítico do stalinismo; participante da IV Internacional; fundador do PSB nos anos 1940 e do PT, no ano de 1980. Sempre abraçou as suas causas com muito entusiasmo.

Mário Pedrosa nasceu em Timbaúba, no interior de Pernambuco, filho de senhores de engenho, mas sempre foi um filho desgarrado. Seu nascimento ocorreu no exato ano de 1900. Já em 1913 ele é enviado para a Suíça, para efeitos de estudo, voltando ao Brasil em 1916. De volta, ingressa no curso de Direito no Rio de Janeiro. Anos muito ricos, especialmente no que diz respeito a relações pessoais e de participação nos fatos históricos. Lembrando que nos anos 1920 é que ocorreram as grandes transformações brasileiras. Assim participou das greves de 1917, assiste a Revolução russa e ingressa no PCB. De imediato, com a morte de Lenin, ingressa nas lutas contra o stalinismo, chegando a participar da reunião de abertura da IV Internacional (Paris 1938), passando a ser um dos dirigentes internacionais dessa organização.

No Brasil, não se entusiasma com Vargas e antevê que a burguesia brasileira não governaria sob um regime democrático. Viu no movimento de 1930 uma reorganização das classes dominantes no poder num país capitalista, pró imperialismo. Também é o tempo da Guerra Civil espanhola e dos violentos expurgos nos países sob o domínio de Stalin. A Segunda Guerra e o encontro entre Stalin e Hitler confunde todo o mundo socialista. Desliga-se da direção da IV Internacional mas continua a sua luta em defesa da democracia, da autonomia da classe trabalhadora e do livre debate, fora das interferências do poder. Nesse período escreve dois livros: Opção imperialista e Opção brasileira. Observou também atentamente as transformações no mundo do trabalho com o avanço das novas tecnologias.

A sua aproximação com a arte ocorreu já na década de 1920. Via nela um caminho de liberdade. Aproxima-se dos escritores e artistas da semana da arte moderna e dos surrealistas franceses. Não separava a sensibilidade artística da formação da consciência para a superação da alienação. Via nela uma aproximação entre a sociedade e a natureza. Como temos hoje no Paraná uma enorme polêmica com relação a retirada da disciplina de artes de alguns anos do ensino básico, eu transcrevo dois parágrafos da resenha em que é descrita a sua visão da importância da arte na formação do ser humano. Vejamos:

"Se para Mário Pedrosa arte e política seguiam juntas, os caminhos para superar o capitalismo e libertar a criação artística convergiam. A brutalidade do capitalismo e dos meios de comunicação deveria ser superada porque o materialismo grosseiro da sociedade burguesa ajudava a fazer da cultura e das artes um privilégio dos ricos. O capitalismo reproduzia a miséria cultural ao mercantilizar todas as esferas da sociedade. A sociedade capitalista transformava o homem moderno trabalhador em um homem incapaz de enxergar a riqueza artística do mundo, impedido de ter uma imaginação livre e inovadora. Seria preciso fornecer, por intermédio de uma nova educação artística, a possibilidade para desenvolver a sensibilidade e a criatividade das crianças, o sentido das emoções que dão ao homem o impulso espontâneo natural para criar o novo.

Desse modo, Mário acreditava ser possível reeducar a sensibilidade do homem por meio da forma artística, que para ele era uma questão política maior que dizia respeito a um novo destino para a humanidade. Por essa razão, o ensino de arte, como o ensino em geral, deveria ser um tema fundamental ligado à luta política emancipatória. Ele questionou o ensino tradicional das artes, que não estimulava verdadeiramente a criatividade das crianças. Era preciso cultivar a espontaneidade ou  'a ausência de ordenação e regularidade no pintar ou desenhar, o acaso das tintas, os golpes de improviso', tudo longe das regras e das convenções acadêmicas. Ficou fascinado com trabalhos artísticos dos loucos e com a criatividade livre das crianças, aos quais dedicou vários textos. A criança deveria viver plenamente essas possibilidades, não devendo temer as emoções, para que estas aflorassem e desabrochassem pela educação artística. Isso permitiria ensinar as crianças a dar forma às emoções, controlá-las e integrá-las como um fator dinâmico na formação da sua personalidade. Para Mário Pedrosa, ensinar arte às crianças preparava o caminho político para a liberdade".

Mário pedrosa também tem uma interessante crítica sobre Brasília, a moderna capital brasileira: "Fatalmente isolado do povo brasileiro, o seu governo desconhecerá, não participará senão de fora do drama de seu crescimento, do amadurecimento de sua cultura, da formação de sua personalidade. Brasília seria uma espécie de casamata impermeável aos ruídos externos, ou só de opinião, como um estado maior que se abriga em cavernas subterrâneas blindadas".

Quanto ao seu segundo exílio, a situação se agrava a partir do AI-5 de 1968. Ele é acometido de uma isquemia, mas em 1970 ele foge para não ser preso. Como muitos brasileiros, se exilará no Chile, onde tem oportunidade de fundar o Museu da Solidariedade, recebendo inúmeras obras de arte, doadas por seus amigos artistas. Depois do golpe sofrido por Allende ele se refugia em Paris, onde, por agravamento de doenças, tem a permissão para voltar ao Brasil, antes mesmo da Lei da Anistia. A sua última atividade política será a participação na organização e fundação do Partidos dos Trabalhadores, fato que viu com muito entusiasmo, em função de sua organização a partir das bases dos movimentos dos trabalhadores. Foi o filiado número 1.

Em 18 de novembro de 1981, O Pasquim publica a sua última entrevista: "Ser revolucionário é a profissão  natural de um intelectual [...]. Sempre achei que revolução é a atividade mais profunda de todas [...]. Sempre sonhei uma revolução para o Brasil".

E, como de hábito, o trabalho anterior.http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_24.html

Adendo: 18.02.2023. Do livro - Lula - Biografia  - de Fernando Morais. Capítulo 15. Página 348. Sobre a participação de Mário Pedrosa na pré fundação do PT, em São Bernardo do Campo, as suas impressões, ficha número um e tentando convencer Antônio Cândido a se filiar. Com certeza foi dos primeiros, mas a ficha de número um é creditada a Apolônio de Carvalho.

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 21. Darcy Ribeiro.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar um dos maiores brasileiros, o sociólogo e antropólogo Darcy Ribeiro, numa resenha de Agnaldo dos Santos (biografia) e Isa Grisnpum Ferraz (obra). O livro é uma publicação da Boitempo Editorial de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

A resenha começa por uma frase em epígrafe, uma frase do próprio Darcy, que o define muito bem: "De todas as coisas deste mundo tão variado, a única que me exalta, me afeta, me mobiliza, é o gênero humano. As gentes indígenas, com quem convivi tantos anos. As gentes que me acolheram nos meus longos anos de exílio mundo afora. Mas, principalmente, minha amada gente brasileira que é minha dor, por sua pobreza e seu atraso desnecessários. E também meu orgulho, por tudo o que pode ser como uma civilização tropical de povos morenos, feitos pela mistura de raças e pela fusão de culturas". Talvez Darcy seja o intérprete do Brasil que mais amor e empenho dedicou ao povo brasileiro.

A resenha continua com uma auto definição: "Eu sou atípico. O Partido Comunista não me quis porque me achava um militante muito agitado, e a Força Expedicionária Brasileira não me aceitou porque os médicos achavam que eu era muito raquítico para ser sargento. Eu me entendi com o marechal Rondon e passei dez anos com os índios. Dali fui ser ministro da Educação, criei a Universidade de Brasília, fui chefe da Casa Civil de Jango, tentei fazer a reforma de base e caí no exílio. E foi no exílio que escrevi uma larga obra. Nunca gostei de ser político. No fundo, acho que sou político por razões éticas. Um poeta inglês pode ser só poeta. Mas num país com o intestino à mostra, como o Brasil, o intelectual tem obrigação de tomar posição. Essa é uma briga séria e eu estou nessa briga".

E, mais uma posição sua sobre a visão do Brasil e da América Latina: "A meu ver, o que caracteriza a América Latina de hoje é o súbito descobrimento de que tudo é questionável. As velhas explicações eram justificações. É necessário repensar tudo... Eu acredito que o que caracteriza a nossa geração, a geração que começou a atuar depois de 1945, é esta consciência mais lúcida e mais clara de que o nosso mundo tinha de ser desfeito para ser refeito". 

O resenhista o apresenta também em suas diferentes atividades: como político partidário (PDT) foi Ministro da Educação e da Casa Civil (Jango), foi vice-governador de Leonel Brizola e candidato a governador, não logrando a eleição, no Rio de Janeiro. A ditadura de 1964 lhe tolheu os sonhos, num pesadelo que envolveu prisões e exílio. Como antropólogo, sua área de formação, dedicou, por influência do marechal Rondon, dez anos aos índios e como educador, trabalhou ao lado de Anísio Teixeira. Criou a Universidade de Brasília e no Rio de Janeiro, os CIEPS. Foi ainda reitor da Universidade de Brasília e teve decisiva participação na formulação da LDB de 1996.

Agnaldo dos Santos, o resenhista da parte biográfica, apresenta um depoimento de Darcy, dado a ele numa entrevista, sobre as grandes preocupações de sua vida: "O que é que todos nós queremos? É fazer um país habitável, em que as pessoas existam para serem felizes, alegres, amorosas, afetuosas, todo mundo comendo todo dia. Não é uma alegria? Não é um absurdo que num país tão grande, tão cheio de verde, tenha tanta gente com fome?... O Brasil não tem nenhum bezerro abandonado, não tem nenhum cabrito, nenhum frango. Todo frango tem um dono. Mas tem milhões de crianças abandonadas. Quando uma sociedade perde seu nervo ético, perde seu amor, seu apego por suas crianças, que são a sua reprodução, é uma enfermidade tremenda". Por fim apresenta a sua frase, que creio ser a mais famosa:
"Fracassei na maioria das propostas que defendi. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu", e arremata: "Sua obra - em parte esgotada e desconhecida - é estimulante, e não apenas como uma das notáveis expressões de uma época profícua da produção intelectual no país. É também horizonte aberto para pensar o Brasil contemporâneo, que até agora não superou grande parte dos problemas e das questões nela apontados".

A segunda parte, alguns aspectos da obra, é de autoria de Isa Grinspum Ferraz. Ela aponta que ela é menos conhecida do que a sua vida pública e que, ela sofre até de preconceitos em sua recepção, em função de seu ecletismo teórico e metodológico, ou, em outras palavras, por sua originalidade. Nunca atrelou o seu pensamento a matrizes ideológicas, procurando romper com qualquer tipo de rigidez e de vassalagem ao estabelecido. Percebe-se, no entanto, de acordo com Isa, influências de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Câmara Cascudo em suas intepretações sobre a formação do povo brasileiro e de Marx, na análise do processo civilizatório.

Isa analisa três de suas obras, suas obras fundamentais: O processo civilizatório, O povo brasileiro e Confissões, um título não escolhido ao acaso. Vejamos a parte final de sua resenha: "Por isso vale a pena sugerir a leitura do seu último livro, preparado no mesmo período de O povo brasileiro, após sua fuga do tratamento hospitalar - trata-se de sua autobiografia Confissões, título não por coincidência homônimo ao de Santo Agostinho, além do de Rousseau.

Ali, ele procura descrever sua infância nas Minas Gerais, o que torna clara, por exemplo, sua predileção pelos neologismos e termos usados pelo povo simples, no melhor estilo Guimarães Rosa ("fazimento", "ninguemdade"). Descreve suas alegrias e desencontros na universidade, no Executivo e no Legislativo, suas amizades, seu combate à doença, seu gosto pelas letras e por 'contação' de histórias, além da obsessão de toda vida, uma explicação sobre o Brasil e o destino do país. Ele reconhece ali, enfim, a dificuldade de usar o arcabouço conceitual que nos foi legado para essa empreitada, muito em função de berço eurocentrista, mas indica que é trabalho do qual não se deve fugir. Nem mesmo quando o fim se aproxima". O próprio Darcy recomenda:

"A você que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só digo: 'Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada. O único clamor da vida é por mais vida, bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. Depois, seremos matéria cósmica, sem memória de virtudes e gozos. Apagados, minerais. Para sempre mortos".

Darcy, ao enfrentar a morte, o fez de uma forma inusitada. Ele recebeu a extrema unção de Leonardo Boff. Eu conto essa história, no que eu considero como o mais belo texto que já publiquei nesse blog.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/04/darcy-ribeiro-recebe-extrema-uncao-de.html

E, como de hábito, o trabalho anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_23.html

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 20. Rômulo Almeida.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o pensador do desenvolvimento brasileiro Rômulo Almeida, numa resenha de Alexandre de Freitas Barbosa. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial, do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

Alexandre de Freitas Barbosa abre a sua resenha colocando Rômulo Almeida ao lado de Celso Furtado e Ignácio Rangel como os três grandes nomes do desenvolvimentismo brasileiro. Logo depois dessa abertura ele fala do desconhecimento desse que foi o grande nome do planejamento e execução do desenvolvimentismo brasileiro dos anos 1950. Depois dessa abertura ele fala da trajetória do resenhado, que ele considera singular.

Rômulo Almeida nasceu na cidade de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, em sua parte sul. Pertenceu a uma família de classe média, sendo que o seu pai dedicou sua vida ao comércio. Sua formação ocorreu na cidade de Salvador, passando por escolas de elite e terminando na Faculdade de Direito. Já formado, vai ao Rio de Janeiro, sendo professor e jornalista. Lá mantém interessantes contatos, destacando-se entre eles,  San Tiago Dantas. É o período em que ascende nele o interesse pela economia. Conhece também Roberto Simonsen, o formulador das políticas econômicas do governo Vargas. Começa então o seu sonho da utopia desenvolvimentista. Ele próprio fala de sua trajetória:

"Cheguei a ser economista numa trajetória que partia do desafio político. Fiz o curso de direito. Depois dediquei-me a estudos de educação e sociologia. Mas era preciso chegar ao âmago da estrutura social: tornei-me então economista". Da mesma forma fala também das origens do seu modo de pensar, já quase ao final de sua trajetória: "Eu formei a minha vida de servidor público federal dentro de uma consciência nitidamente nacional. Antirregionalista no momento em que era preciso unir o país, unificar o mercado. Considerávamos isto um passo necessário no processo de desenvolvimento autônomo do país. Entretanto, nunca esqueci de que era preciso que esse desenvolvimento, que no sistema de mercado levaria a uma concentração talvez insanável, necessitaria ser compensado por uma política lúcida de desconcentração. Para que o movimento imperial interno de ocupação dos espaços e da unificação territorial e econômica do país a partir do centro não resultasse num país dual". Que visão!

Entre as suas muitas atividades, participou da elaboração dos projetos da criação da Petrobras. Nos anos 1930 passou por um verdadeiro zigue-zague ideológico (integralismo inclusive), certamente motivado pela volatilidade da política brasileira da época. Ele definiu o seu passado, de quando tinha 16 anos: "Um nacionalista dotado de tremenda preparação cívica, cujo negócio era o Brasil para a frente, mas também socialista no sentido da distribuição de oportunidades e da participação do povo. Mas não era comunista, o fraseado deles me deixava tonto". Depois se definiu como economista com enraizamento social. Alimentava uma certeza um tanto absoluta, de que as elites jamais promoveriam o desenvolvimento. Considerava o governo Dutra como dotado de um "liberalismo paralisante".

Na década entre 1950 e 1960 se viu no centro do front desenvolvimentista do governo Vargas. Era um dos chamados "boêmios cívicos" que varavam noites se debruçando em projetos de industrialização e de dotação do país de infraestrutura de transportes e de energia. Ao longo do governo JK, se dedicou mais à Bahia, à sua modernização e diversificação econômica. Em 1964 estava trabalhando junto com Celso Furtado. Foi o período em que, segundo ele, os técnicos do governo foram substituídos pelos tecnocratas. Estes, sem consultar o povo "sabiam o que ele queria e precisava". Em 1965 já o encontraremos na resistência democrática, filiando-se ao MDB, disputando e perdendo as eleições ao Senado pela Bahia.

A sua vida de economista foi pautada em três princípios: planejamento, execução e reflexão. A década de 1940 foi mais dedicada à reflexão e a de 1950 ao planejamento e à execução. Jamais pensou a economia dissociada da questão social. Ao longo dos anos 1950 também se tornou um historiador, se ocupando das razões da concentração da economia brasileira a partir do estado de São Paulo. Ao defender a desconcentração, participa da criação do Banco do Nordeste e da SUDENE. Também verá no latifúndio e no patrimonialismo os maiores entraves ao desenvolvimento do país. Sempre defendeu a participação do Estado nos projetos de desenvolvimento de projetos sociais. Também se debruçou sobre as privatizações, vendo nelas, um enfraquecimento geral da economia. Com as privatizações "cresceremos menos, cresceremos mais capengas e mais dependentes".

Sobre as possibilidades futuras, ele assim as via, na síntese do resenhista: "As condições positivas são as tecnologias agrícolas desenvolvidas para o trópico; o núcleo industrial nos setores de bens de capital e intermediários; a capacidade empresarial e os recursos humanos ao menos nos segmentos modernos; a qualidade do Estado brasileiro no que tange ao padrão de organização e de métodos de gestão; o sistema federativo, com entidades espaciais descentralizadas com relativa autonomia; além da escala do mercado interno, acrescida da crescente capacidade de exportação". Também apontava para os entraves:

"Do lado das condições negativas, o ufanismo autoritário que engessa mudanças culturais e institucionais; a semialfabetização; o cartorialismo gremial, que concede privilégios por meio de diplomas; o exagero expropriativo de uma minoria; o explosivo problema urbano, que não se resolve sem mudança na distribuição e no uso da propriedade; o crescimento econômico gerador de dependência externa; a deterioração da solidariedade e da participação que pode esgarçar a cordialidade como característica nacional; a postura de superioridade com relação aos demais países da região". E, Alexandre de Freitas Barbosa, assim termina a sua resenha:

"Por fim, afirma que não está provado que o crescimento elevado do PIB exija necessariamente uma distribuição tão desigual. Ou seja, a desigualdade está na base da acumulação capitalista no Brasil (o que é diferente de condição), em relação à qual o Estado tem perdido a capacidade de acionar mecanismos corretivos. O modelo pode ser superado pelas próprias forças que ele engendra e pela reorganização da sociedade, acionando o Estado de maneira democrática, mas sem retirar-lhe a autonomia e a capacidade propositiva. É o último canto da sereia de um capitalismo autônomo, democrático, regulado e adaptado à realidade cultural dos trópicos".

Confesso ser este o primeiro contato com Rômulo Almeida. Apenas o conhecia como alguém ligado às políticas econômicas implementadas ao longo da segunda passagem de Vargas pelo governo. Efetivamente, trata-se de um pensador da economia brasileira, de um planejador e de um executor de políticas públicas através de projetos governamentais.

E, como de hábito, o trabalho anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicosrebeldes.html


sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 19. Celso Furtado.

Dando continuidade na análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o economista Celso Furtado, numa resenha de Carlos Mallorquín. O livro é uma produção da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

A resenha é de Carlos Mallorquín, um dos maiores estudiosos da obra de Celso Furtado e autor do livro Celso Furtado: um retrato intelectual. Foi professor em universidades mexicanas. É, portanto, uma autoridade no assunto. Também é estudioso da obra de Raul Prebisch, que junto com Celso Furtado se constituíram nos grandes nomes desse organismo internacional. Foi, portanto, um estudioso da economia latino americana. Carlos nos recomenda estudar os projetos de desenvolvimento da América Latina, começando pelos trabalhos desenvolvidos por Celso Furtado. Um estudo mais do que necessário, nesses tempos de hegemonia neoliberal, nos recomenda o resenhista.

Ele apresenta Celso Furtado como um intelectual latino americano, grande estudioso das transformações econômicas dos países periféricos ao sistema capitalista. Destacou-se primeiramente pelos seus trabalhos na CEPAL, integrando junto com Raul Prebisch, os seus economistas de uma linha mais progressista, em contraposição aos economistas dos Estados Unidos.

Celso Furtado nasceu na cidade de Pombal, na Paraíba, no ano de 1920, filho de uma família de classe média e vida dedicada ao serviço público. Ingressa no curso de Direito da Universidade do Brasil, quando naquele tempo apenas se iniciava a ter no curso disciplinas da área das ciências sociais. Por essa razão, no seu terceiro ano, se transferiu para o curso de Administração. Assim descreve a sua passagem pela universidade: "Segundo as regras da época, minha formação em economia era de um autodidata, [...] e apoiado em minha formação jurídica e em estudos especializados de organização das finanças públicas". À economia dedicou toda a sua vida de estudos e de atividades, seguindo o exemplo da família, na sua dedicação ao serviço público. 

Participou da FEB, na Itália, permanecendo depois em Paris, onde faz o seu doutorado, desenvolvendo o tema da economia colonial brasileira, com foco na economia canavieira e traçando paralelos com as Antilhas. Entre 1948 e 1957 trabalha na CEPAL, num dos períodos mais produtivos de sua vida intelectual, focado agora nas questões desenvolvimentistas. Nesse período também trabalha para o governo Vargas, focado na questão da industrialização, e, desenvolvendo trabalhos junto aos pensadores do ISEB. Em 1959 edita o seu principal livro Formação econômica do Brasil. 

Após o seu desligamento da CEPAL e de sua aproximação com o pensamento keynesiano irá para Cambridge fazer o seu pós doutorado e, na volta ao Brasil, trabalhará no BNDE, voltando-se para o desenvolvimento do nordeste, onde, ao longo do governo de JK, participará da criação da SUDENE. Depois será ministro do Planejamento de Jango, responsável pela elaboração do Plano Trienal. Em 1964 terá seus direitos políticos cassados e conhecerá, no exílio, famosas universidades, mundo afora, na qualidade de professor. Após a ditadura, volta à vida pública brasileira como Ministro da Cultura do governo Sarney. Numa nova série de livros, denunciará o abandono das questões sociais por longos vinte anos, os anos da ditadura militar. Também analisa as novas tendências da economia, da nova dependência, da ascensão do capitalismo financeiro, da dívida externa e do monetarismo.

Ainda escreverá três livros autobiográficos. O resenhista termina o seu trabalho reconhecendo o tributo devido ao grande economista: "...Tudo isso me levou à conclusão de que as ciências sociais latino-americanas parecem desconhecer sua grande dívida com Celso Furtado. A herança desse autor é incomensurável e há de se resgatá-la do esquecimento para (re)construir as verdades deste mundo. Furtado, como intelectual comprometido com a transformação das relações sociais reinantes, não foi alheio à dita problemática: nos legou 'um regime de verdade' sobre a ideia de subdesenvolvimento e as possíveis vias para sua superação". É isso que eu guardo desse grande intérprete do Brasil. Um pensador dedicado à superação do nosso subdesenvolvimento, pela via da indução econômica e do planejamento do Estado. Um keynesiano.

Como já trabalhei o autor, a partir do livro Introdução ao Brasil - um banquete no trópico, deixo aqui a resenha feita, com foco no seu livro principal Formação econômica do Brasil. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-15-formacao.html

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quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 18. Antônio Cândido.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o sociólogo e crítico literário Antônio Cândido, numa resenha de Flávio Aguiar. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo editorial. 2014.

O resenhista, Flávio Aguiar, na abertura de seu trabalho atribui a Antônio Cândido, uma frase de Goethe, de que os personagens importantes e marcantes, devem deixar como herança, raízes e asas. Que bela atribuição para este homem marcado pela sociologia, pela literatura e pela crítica literária. Tudo teria começado com a revista Clima, em que trabalhou, junto com personalidades marcantes como Paulo Emílio Salles Gomes (cinema) e Décio de Almeida Prado (teatro), entre outros. Era uma época de busca de fontes, de rigor científico e de especializações, tudo influenciado pela recém fundada Universidade de São Paulo (USP).

Antônio Cândido nasceu no Rio de Janeiro em 1918, passando sua infância e parte da juventude em Poços de Caldas (MG) e a vida universitária, já em São Paulo. Deixa inconcluso o seu curso de Direito para se dedicar às ciências sociais e seguir a carreira de professor universitário, como decorrência. Essa, ele começou na cidade de Assis (UNESP), seguindo depois na USP. Em 1958, abandona de vez a sociologia para abraçar definitivamente a Literatura.  Este também será o seu campo de trabalho na qualidade de jornalista. Nessa atividade lançou o suplemento literário do jornal O Estado de S. Paulo. Sobre essa sua troca de campo de trabalho Fernando de Azevedo teria dito que ele se casara com a sociologia e que a literatura, tornou-se depois, a sua bela amante.

A sua formação foi toda ela muito consistente. Foi leitor das primeiras grandes interpretações do Brasil, convivendo, inclusive com os seus autores, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior e com suas obras Casa-Grande & Senzala (1933), Raízes do Brasil (1936) e Formação do Brasil Contemporâneo - Colônia (1942). Do último tomou de empréstimo a palavra formação, para o seu mais expressivo livro Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1959). A literatura acompanhou a sua formação universitária. Sílvio Romero (História da literatura brasileira - (1888) foi o tema de seu mestrado e a poesia popular dos Parceiros do Rio Bonito, o trabalho de seu doutorado. Muito se inspirou também em Fernando de Azevedo (A cultura brasileira, 1943).

O resenhista chama a atenção para palavras-chave sempre presentes em seus trabalhos: "Retomando as palavras-chave desse parágrafo de Roberto Schwarcz, em sentido inverso, encontramos: "juízo crítico", "experiência histórica", "elaboração intelectual", "chão social cotidiano", "disciplina histórica", "linha de trabalho". São traços delineadores de uma perspectiva que acompanhou a trajetória intelectual de Antônio Cândido desde sempre, segundo podemos inferir do depoimento do colega e amigo Décio de Almeida Prado". O rigor do método. O resenhista continua falando de sua obra:

"Por isso, embora tenha o peso de um tratado, a Formação... nunca abandonou a marca do ensaio. Ela pode ser vista, mesmo em seus aspectos teóricos, como uma coleção de ensaios com valor próprio, mas emoldurados por uma metodologia de trabalho e um objetivo único, a saber, o de analisar como cada um deles se relaciona com o propósito maior e comum do conjunto e dos períodos em tela, do albor - ainda  que um tanto vago e diluído - das letras iluministas, ao fragor, às vezes desequilibrado, do romantismo e de sua passagem ao momento seguinte, o dos 'reformadores', das letras e da pátria ao final do século. Aquele propósito maior e comum era o desejo de construir uma literatura para, no e do Brasil". Flávio Aguiar continua apresentando características da obra de Antônio Cândido, como a de um Brasil em movimento:

"A literatura, assim, é 'sistema' e 'emblema', ambos conformados por 'formação e transformação, polifonia e cacofonia' em que 'ressoam algum tipo de diálogo com outros escritos de outras literaturas, contemporâneas ou não'. É desse modelo ou, melhor ainda, dessa forma de pensar que parte a fixação de dois momentos decisivos na formação literária brasileira, o Romantismo, cuja visão ampliada abrange o período de 1836 a 1870, e o modernismo, de 1922 a 1945. São períodos de um autêntico aggiornamento na cultura brasileira, marcados, de modos diferenciados, por um 'ardor de conhecer o país'".

O resenhista ainda destaca um outro livro de Antônio Cândido A educação pela noite e outros ensaios (1987), em que ele fala dos limites da leitura erudita no Brasil. Vejamos o resenhista: "Durante muito tempo - provavelmente graças à precariedade do alcance de nosso sistema educacional - a maior parte de nossa população viveu à margem dela. Mais recentemente, quando incorporada a formas de cultura velozmente urbanizada do Brasil do pós-guerra e mais ainda a partir do golpe militar de 1964, essa população simplesmente 'saltava' por cima dessa literatura, incorporando-se à cultura de massa do rádio, da fonográfica, do cinema e da televisão (saltando também sobre o teatro)". Devo intervir para lamentar a educação cada vez mais reduzida em nossas escolas pela visão do projeto mercantil da educação neoliberal.

Flávio Aguiar assim termina a sua bela resenha: "Nas últimas décadas, Antônio Cândido ajudou decisivamente a consolidar uma visão de nossa literatura - e, portanto, com ela, do próprio Brasil, como parte da América Latina. Ele já assinalara, desde sempre, nossa pertença latina como herdeiros que somos desse legado europeu. Porém, a partir de seu encontro com o crítico uruguaio Angel Rama, em 1960, ambos passaram a visualizar uma visão unitária para os processos literários da América Latina, baseada nos grandes projetos e processos de "modernização" social e cultural do continente: mais ou menos o que se define a partir de 1870, depois a partir dos anos 1920 e da crise de 1929, e no período posterior à Segunda Guerra Mundial. À ideia dos influxos de culturas originais - a matriz europeia miscigenada às raízes africanas e indígenas - ajuntou-se a de uma autêntica fratria literária, numa América Latina vista não como um passado comum a manter e a recuperar, mas como um projeto cultural a construir, vislumbrado na(s) sua(s) literatura(s).

Dessa forma, ao lado do descortinar e do escrutinar suas raízes e seus espaços presentes por meio da leitura literária, Antônio Cândido ajudou a aprestar  a nossa literatura e a nossa crítica para novos voos além-fronteiras". Deixo também o trabalho feito sobre Antônio Cândido, a partir do livro Introdução ao Brasil - um banquete no trópico. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico17-formacao-da.html 

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terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 17. Jacob Gorender.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos ver hoje o historiador Jacob Gorender, numa resenha de Mário Maetri. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial, do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

A resenha de Mário Maestri é um pouco mais longa que a de outros intérpretes e se foca mais em sua obra, começando, porém, com a apresentação de alguns dados biográficos e da sua trajetória de teórico e  militante no campo da esquerda brasileira. Jacob Gorender nasceu em Salvador, no ano de 1932, vindo a morrer em São Paulo, em 2013. A sua formação se deu nos melhores colégios de Salvador, onde também ingressou no curso de Direito, que logo abandonou, em função de ter abraçado a militância política dentro do PCB. Participou da Força Expedicionária Brasileira na Itália, onde encontrou-se com dirigentes partidários do PCI.

Em sua volta, abraça a carreira jornalística. Participa de cursos de formação em Moscou, quando também domina o idioma russo. Como dirigente do PCB, abraça todas as suas causas, especialmente a adesão aos governos burgueses, como um imperativo do avanço dos modos de produção, em que se defendia que o socialismo substituiria o modo de produção capitalista. Por isso, o apoio. Atentamente observa os movimentos internacionais, especialmente a Revolução cubana. Com o golpe de 1964 as teorias do PCB se desmoralizam e o Partido se desintegra. Em 1968, no Rio de Janeiro, participa da fundação do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), junto a uma série de camaradas seus. Depois dedica-se mais ao campo teórico do que à militância revolucionária. Nos anos 1990 filia-se ao Partido dos Trabalhadores, mas também, sem militância efetiva.

A partir desse momento a resenha enverada pelo campo de sua obra teórica, de seus livros. O primeiro deles é O escravismo colonial, uma publicação do ano de 1978. Essa obra representa o fim da tese, que imperava desde 1928, de nosso passado semi feudal. Não havia a superposição etapista de modos de produção, mas, uma pluralidade dos modos de produção na formação da sociedade brasileira. A obra representa uma ruptura com os dogmas stalisnistas, com a burocracia e com o reformismo. A fonte de inspiração será Marx, Ernest Mandel e Trotski. O resenhista assim descreve o caráter dessa sua obra essencial:

"A tese O escravismo colonial tratava-se de investigação organizada para estabelecer bases metodológicas sólidas para a interpretação crítica da moderna formação social brasileira, para revolucioná-la em um sentido socialista. A poderosa reflexão empreendida em O escravismo colonial teve seguimento sobretudo em dois ensaios, indiscutivelmente de menor fôlego - Gênese e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro e Burguesia brasileira". Esse último ocupa-se do processo de industrialização.

Em 1987 produziu o seu livro mais conhecido Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, livro "reconhecido como clássico da historiografia do Brasil". O resenhista lhe tece o seguinte comentário: "No livro, aponta o caráter inconsequente da ruptura armada com o pacifismo e o colaboracionismo do PCB".

O resenhista acompanha Gorender, agora nos anos 1980, anos em que, nas palavras do resenhista, "a maré neoliberal fez recuar globalmente o mundo do trabalho, dissolvendo partidos operários, desmoralizando milhares de políticos, intelectuais e lutadores sociais. O processo contrarrevolucionário alcançaria o ápice com a restauração capitalista nos países de economia nacionalizada e planejada, dissolvendo as conquistas obtidas pelos trabalhadores nos últimos setenta anos, drama histórico epocal". Como encontraremos Gorender diante desse processo? O resenhista nos indica a sua visão:

"Gorender sofreu duramente aquele processo, com destaque para a destruição da URSS. Nesse contexto, estabeleceu-se dissintonia essencial entre o caráter de sua produção anterior sobre a formação social brasileira e seus posteriores ensaios de interpretação da crise do mundo do trabalho, do socialismo, da URSS". sobre o tema escreve dois livros: Perestroika: origens, projetos e impasses (1991) e Marcino e Liberatore: diálogos sobre marxismo, social democracia e liberalismo (1992). Marcino e Liberatore são referências a Marx e a um liberal.

Ao final da sua vida ainda escreveu Marxismo sem utopia em que, segundo o resenhista, Gorender sofreu uma recaída social democrata, que já o acometera em 1958. E o resenhista assim termina o seu trabalho: "Um marxista revolucionário não pode viver à margem da utopia, compreendida como compromisso férreo com ideal racional e objetivamente fundado, mas em geral de materialização distante, difícil e penosa. Fortemente influenciado pela luta social, essa instância psicológica individual é posta sob tensão crescente sobretudo nos momentos de triunfo dos opressores.

Triunfo que certamente jamais alcançou a dimensão conhecida dos nossos dias de crescente domínio da barbárie capitalista. Dessa contradição surge o permanente conflito entre a perseverança, a acomodação e a rendição que se materializa comumente sob a forma de crença ou descrença na necessidade - possibilidade da superação da exploração social

Dilaceramento que indiscutivelmente engoliu em sua idade tardia este que foi sem dúvida o mais criativo marxista revolucionário brasileiro". 

Ainda quero deixar um comentário final de uma experiência minha. Em 1990, participando de uma campanha política em favor do Partido dos Trabalhadores, encontrei, na cidade de Cianorte, várias pessoas que integraram as fileiras do PCBR. Fiquei muito curioso, mas não tive condições de fazer uma pesquisa com essas pessoas, embora morrendo de curiosidade.

E como de hábito, a resenha anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_15.html



domingo, 15 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 16. Rui Mauro Marini.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil" a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincol Secco, vamos hoje trabalhar o economista Rui Mauro Marini, numa resenha de Guillermo Almeyra. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo editorial. 2014.

Rui Mauro Marini é mineiro, nascido em Barbacena, no ano de 1932. Morreu no Rio de Janeiro, em 1997, com apenas 65 anos. Ele é autor de vasta obra teórica e de intensa militância revolucionária. Sua vida é marcada por constantes exílios e atividades em diferentes universidades, de acordo com os exílios. Assim, no Brasil trabalhou na UERJ e na Universidade de Brasília, bem como em universidades chilenas e mexicanas. 

Rui Mauro Marini se tornou bastante conhecido com a Teoria da Dependência, na qual mostrava o capitalismo como um sistema global. Por essa sua teoria se contrapunha à Teoria da Dependência dos economistas da CEPAL, que, segundo ele, tinham uma visão pró capitalista, desenvolvimentista, das burguesias nacionais. Marini foi fortemente influenciado pelas teorias de Trotski e de Rosa Luxemburgo e, discordando, por óbvio, do stalinismo e da teoria da consolidação socialista apenas na URSS e seus satélites. Em consequência, e de acordo com as influências teóricas, defendia a revolução permanente. No Brasil militou na POLOP (Organização Revolucionária Marxista Política Operária) e no Chile no MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária).

O resenhista conta que conheceu pessoalmente Marini, no México, nos anos de 1979 a 1982. Mostra as convergências e divergências que marcaram a relação. Aponta que Marini também recebeu influências de Florestan Fernandes. A sua crítica à Teoria da Dependência dos economistas da CEPAL se deve a uma divergência de raiz com os seus autores, adeptos da social democracia, enquanto ele sempre permaneceu no campo marxista em suas análises. A principal crítica que lhes fazia consistia em acusá-los como defensores do que ele considerava como sub imperialismo, fundado numa exploração da mais valia tal, que impedia a própria reprodução da força de trabalho.

Essa super exploração do trabalho conduz as suas reflexões sobre o processo da industrialização brasileira, dissociada do consumo e integrada ao mercado internacional. Vejamos uma parte de uma citação sua: "desenvolvendo sua economia, em função do mercado mundial, a América Latina é levada a reproduzir em seu seio as relações de produção que se encontravam na origem da formação desse mercado e que determinavam seu caráter e sua expansão. Mas esse processo estava marcado por uma profunda contradição. Chamada a coadjuvar a acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, nos países centrais, a América Latina teve que fazê-lo mediante uma acumulação fundada na superexploração do trabalhador. Nesta contradição radica-se a essência da dependência latino-americana". O destaque em itálico é do resenhista.

Os seus trabalhos continuam com uma análise da evolução da industrialização no mundo, com foco no que estava acontecendo na China e sob a influência das novas teorias a partir da globalização e do neoliberalismo, constatando uma aumento sempre maior da super exploração. Por isso sempre se firmou em seus princípios em favor de uma revolução democrática radical. O resenhista assim conclui o seu trabalho:

"Sem dúvida, por último, Marini sempre atentou para o desenvolvimento da realidade, discutindo em função da reorganização política dos trabalhadores. Seguramente também não diria hoje que a China 'não tem desatado sua base econômica socialista' e muito provavelmente se preocuparia, em compensação, para ver qual curso levaria a uma organização e politização anticapitalista aos milhões de seres humanos que, desde os anos 1980, na China, Vietnã e Europa Oriental, com a derrubada do 'socialismo real' e a desmoralização da política dos habitantes dos países que se diziam 'socialistas', deram a base ao capital financeiro mundial para lograr um novo ânimo e desenvolver a superexploração em meio planeta".

É. Certamente o autor teve uma morte muito precoce para se posicionar diante das transformações mundiais advindas com o fim do 'socialismo real' e com a supremacia das doutrinas do neoliberalismo e da globalização. Com certeza, Rui Mauro Marini se firmou na sua crítica à Teoria da Dependência, defendida pelos economistas ligados à CEPAL e pela fidelidade a seus princípios a partir de Trotski e de Rosa Luxemburgo. Deixo ainda, como de hábito, o trabalho anterior.

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sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 15. Florestan Fernandes.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o grande clássico da sociologia brasileira, Florestan Fernandes, resenhado por Haroldo Ceravolo Sereza. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 autores, em resenhas apresentadas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo editorial. 2014.

Florestan Fernandes é, seguramente, um nome maior entre os nossos intérpretes. Graças aos seus estudos e trabalhos, a sociologia ganhou no Brasil o status de ciência. Florestan nasceu em São Paulo no ano de 1920 e também morreu nessa cidade, no ano de 1995. Sua origem é a mais humilde possível, semelhante a maioria do povo brasileiro. Bernardo Ricúpero assim o apresenta: "Não vem de família patrícia, como Oliveira Viana, Gilberto Freyre e Caio Prado Junior, tampouco de camadas médias, casos de Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, oriundos de seus dois ramos principais, famílias tradicionais decadentes e imigrantes em processo de ascensão social".

A formação inicial de Florestan tem a marca da exclusão social, uma vez que foi vítima do trabalho infantil, como engraxate nas ruas de São Paulo, para ajudar a mãe no sustento da família. Florestan nunca conheceu o seu pai. Seus estudos regulares chegaram apenas até o terceiro ano, completando-os depois no ensino supletivo (atual EJA). Isso não o impediu de ser um aluno brilhante na USP. Tão logo se formou, já foi convidado para ser professor assistente do grande sociólogo francês Roger Bastide, com quem tem trabalhos publicados sobre as questões raciais no Brasil. A sociologia de Florestan tem as marcas da crítica e da militância. O estudo das questões raciais o levou a um de seus primeiros livros, Brancos e negros em São Paulo.

Esse será também o tema de seus estudos posteriores e o embrião de seus dois livros fundamentais: A integração do negro na sociedade de classes e A revolução burguesa no Brasil. Se o primeiro livro ainda traz marcas da sociologia funcionalista, o segundo já tem referenciais em Max Weber, Mannheim e Marx. Os dois livros se alimentam mutuamente. Vejamos as palavras do resenhista: "Baseado na própria experiência pessoal de marginalizado, de criança que não conheceu o pai e começou a trabalhar muito cedo, morador de bairros pobres em que conviviam negros e italianos, como o Bexiga, Florestan parece ter compreendido de forma profundamente empática as privações que a 'população de cor" de São Paulo sofria". Florestan contou com a ajuda de uma madrinha, dona Hermínia Bresser.

No seu segundo grande livro, Florestan mostra que a revolução burguesa no Brasil sempre ficou muito distante da democracia. O Brasil permaneceu, isso sim, um país patriarcal e escravista, dominado pelo capital externo e nunca disposto a mudanças em suas estruturas mais profundas. Nem a abolição e nem a República contribuíram para a realização de mudanças e por isso o Brasil passou a ser dominado por um 'regime autocrático burguês'.  Gabriel Cohn assim descreve esse livro; "Deixada a burguesia, numa sociedade como a brasileira, solta à sua sorte, aquela que a leva a conformar a sociedade brasileira à sua imagem e semelhança, não tem como ser democrática, mas sempre estará sob o encanto da solução autocrática". A resenha segue apresentando esse livro. O burguês, caracterizado por Florestan, ganha a seguinte descrição do resenhista:

"A burguesia surge no Brasil, como uma entidade especializada, seja na figura do 'agente artesanal inserido na rede de mercantilização da produção interna, seja como negociante'. 'Pela própria dinâmica da economia colonial, as duas florações do 'burguês' permanecem sufocadas, enquanto o escravismo, a grande lavoura exportadora e o estatuto colonial estiveram conjugados'. O principal agente econômico, o senhor do engenho, fica fora da categoria 'burguês'. Isso porque opera mais na lógica militar e administrativa do que na de alguém que busca ganho por meio do 'risco calculado'. Seu papel era ampliar e reproduzir o sistema colonial, em que sua remuneração era antes a parte não absorvida pela Coroa portuguesa e pelas agências comerciais do que propriamente o 'lucro'. É aí que se conforma a dominação patrimonialista, uma ordem social que não é feudal, nem capitalista. E é apenas nas franjas desse ambiente que vai se formando, lentamente, um 'espírito burguês', ligado sobretudo ao comércio e ao desenvolvimento urbano".

Quanto a abolição, ela jogou os ex escravizados numa sociedade competitiva e, ao mesmo tempo, lhes negou os meios de competição, como o acesso à terra e à educação. Tudo isso foi fortalecendo os laços antidemocráticos. E o que significou o ano de 1964 dentro dessa realidade? Tudo o que antes era disfarçado, ganhou, com 1964, o caráter indisfarçado de uma ditadura escancarada explícita. Vejamos mais uma vez, o resenhista expressando o pensamento de Florestan. "Ao estabelecer uma relação direta entre a exclusão do negro e, portanto, o racismo e a ascensão burguesa no país, Florestan explicita a violência que significou a implantação da modernização da sociedade brasileira, que excluiu escravos e seus descendentes justamente do processo que prometia eliminar os mais cruéis instrumentos de dominação patriarcal. Uma violência que atingiria seu ápice durante a ditadura civil-militar (1964-1985)".

Para Florestan, a marginalização do negro na sociedade brasileira após a abolição se constituía num ato explícito de racismo. Como trabalhei a resenha de seus dois livros principais, a partir de Introdução ao Brasil - um banquete no trópico, as deixo para consulta:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-35-integracao-do.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-19-revolucao.html

E como de hábito, o trabalho anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_11.html



 

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 14. Edgar Carone.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, vamos hoje trabalhar o historiador Edgar Carone, numa resenha de Marisa Midori Deaecto e Lincoln Secco. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 autores, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a chamada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

A resenha começa apresentando Edgar Carone como possivelmente sendo o mais citado e, ao mesmo tempo, o menos conhecido dos historiadores brasileiros. Ele é descendente de libaneses. Nasceu em São Paulo no ano de 1923 e morreu, também em São Paulo, em 2003. Os seus anos de formação são da década de 1940, quando fez o curso de História e Geografia na USP., quando se aproximou de intelectuais marxistas, que muito o influenciaram. Ele se tornou notável pela sua biblioteca, especialmente após a compra da biblioteca de Astrojildo Pereira. Era um voraz comprador de livros.

O Brasil e o socialismo sempre foram os grandes temas de seus estudos. Ao editar o seu primeiro livro, Revoluções do Brasil contemporâneo (1965) já adquirira a sua visão fundamental do país. Vejamos: "Ao acabar a primeira pesquisa falei: o que caracteriza esse momento do seguinte? Bem, no marxismo é uma mudança de estrutura. No Brasil, não houve nenhuma mudança estrutural. As classes dominantes que existiram se renovaram não no sentido de classe, mas de grupo dentro do poder".

A sua vida como professor da Academia se inicia nos anos 1960, na FGV, na UNESP, campus Araraquara e finalmente na USP. Edgar Carone sempre esteve muito ligado a Astrojildo Pereira, mesmo sem tê-lo conhecido pessoalmente, especialmente a partir dos anos 1970, quando conhece e compra a sua biblioteca, possivelmente a melhor biblioteca de livros marxistas existente no Brasil. Essa história é muito singular e é assim contada pela dupla de resenhistas: "Os livros de Astrojildo Pereira encontravam-se em um sebo localizado na rua Celso Garcia, no centro de São Paulo. Por temer algum tipo de repressão policial, o livreiro pretendia se livrar rapidamente dos livros e os ofereceu ao cliente Edgar Carone. O momento, conforme ele o descreve, é de grande emoção. Estava ali, em perfeito estado de conservação, a obra de uma vida dedicada aos livros. Com efeito, era a descoberta de uma vasta história do pensamento socialista, das Internacionais, enfim de livros, coleções, entre algumas edições raríssimas que motivaram novas pesquisas - não somente sobre o Brasil, embora tenha sido esse o seu maior interesse - e abriram horizontes para os escritos sobre o anarquismo, o socialismo e as Internacionais". Da compra e estudo desses livros surgiu o seu livro O marxismo no Brasil: das origens a 1964, publicado em 1986.

A resenha continua com a apresentação desse livro para depois se dedicar a seus estudos brasileiros e a apresentar a sua ideia de Brasil, a partir de seus livros sobre a República, num total de treze volumes. Vejamos os resenhistas falando sobre eles: "Edgar Carone iniciou suas pesquisas para dar uma resposta intelectual ao golpe de 1964. Queria entender como havia começado o processo político que desaguaria na ditadura militar. Sua história republicana apresentava sempre um volume de análise estatística das classes sociais. Seguiam-se um volume sobre a evolução política dos acontecimentos e outro de documentos selecionados que ilustravam o período estudado. Embora sua cronologia fosse política e acusada de tradicional, até hoje ela se mantém nos estudos do período republicano".

Nesses volumes sobre a República, a industrialização brasileira ganha um grande destaque, bem como os governos de Getúlio Vargas. Outro ponto de destaque é o levante de 1935 e uma profunda mudança na mentalidade dos militares. Começa a se formar uma unidade na mentalidade anticomunista. O processo de industrialização deu toda a força política para o estado de São Paulo, que ao longo da República Velha "deu" ao Brasil sete presidentes.

Volto à frase de abertura desse texto, que aponta Edgar Carone como um dos menos conhecidos dos historiadores brasileiros. Confesso que é pela primeira vez que faço um pequeno estudo mais sistemático sobre este nosso intérprete, tão essencial para o estudo das ideias marxistas e o movimento operário brasileiro e para o estudo do período republicano de nossa história. Anotei uma série de títulos seus para vasculhar nos sebos: Revolução do Brasil ContemporâneoRepública Nova, O pensamento industrial no Brasil, A terceira República (1937-1945), República liberal (1945-1964. 

Como de hábito, o trabalho anterior.http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_9.html

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 13. Caio Prado Junior.

Dando continuidade na análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o grande clássico Caio Prado Junior, numa resenha de Luiz Bernardo Pericás e Maria Célia Wider. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes em resenhas apresentadas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

Caio Prado Junior é um dos maiores clássicos das interpretações do Brasil. Ele se distinguiu pela utilização do marxismo como método de suas análises. O seu grande clássico é Formação do Brasil Contemporâneo, livro do ano de 1942, uma abordagem de trezentos anos de história colonial. Nele o Brasil é visto como uma empresa comercial, voltada para o mercado externo, por ele subordinado e com base na exploração de nossos recursos naturais. Caio Prado foi simultaneamente um grande intelectual e homem de ação, militante do PCB, o famoso Partidão. Ele é oriundo de uma das famílias mais tradicionais da alta elite de São Paulo. A sua casa sempre foi frequentada por intelectuais da mais alta representatividade e que sobre ele exerceram decisiva influência. Tornou-se um leitor voraz. Estudou no Colégio São Luís e formou-se em Direito, na famosa Faculdade do Largo de São Francisco. O seu primeiro livro data do ano de 1933 - Evolução política do Brasil.

Em seus livros estão presentes os males herdados da nossa colonização sob o domínio do latifúndio, da monocultura, da escravidão em uma economia determinada por interesses estranhos a nós. A nossa independência não representou uma ruptura, mantendo assim as estruturas da monarquia portuguesa e herdando, entre os males, a permanência da escravidão. Esta monarquia já se encontrava em estado de decomposição, sendo derrubada por uma simples passeata militar. Um 1933, já conhecendo as obras básicas do marxismo, empreende viagem para a URSS, para conhecer um "novo mundo" e com ele se entusiasmando.

De volta ao Brasil participa da fundação da USP, de seus cursos de História e participa da ANL, em oposição a Vargas, participando do levante comunista (pejorativamente chamado de Intentona) de 1935. Viaja pelo Brasil, para conhecer a sua formação. Em 1942 surge o seu grande livro Formação do Brasil Contemporâneo, onde analisa a nossa economia colonial voltada para o exterior, característica ainda presente em nossa economia no ano da publicação de seu livro. Vejamos, em citação sua:

"Se vamos à essência da nossa formação veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e, em seguida, café, para o comércio europeu. Nada mais do que isto. É com tal objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país". É toda a lógica da economia colonial e que persistirá após a independência e, mesmo após a República.

O livro foi escrito sob a perspectiva da continuidade. Assim, em 1945 sai a publicação de História Econômica do Brasil, com três grandes tópicos sob análise: o Brasil sob o capitalismo mercantil, a estrutura agrária brasileira e o domínio imperialista. Acreditava que o Brasil "ainda não" estava preparado para a sua revolução, embora nunca fosse adepto do etapismo, defendido pelo seu Partido. Embora ainda não preparado, ela deveria começar.

Na sequência, a resenha caminha para mostrar a sua trajetória na editora e a sua atividade no Parlamento. Ele foi o fundador da Editora Brasiliense e da Gráfica Urupês e, mais tarde, da Revista Brasiliense, que ao todo teve 52 publicações. Uma verdadeira tribuna de debates brasileiros. Em 1945 não se elegeu Deputado Constituinte, mas logrou êxito como deputado estadual por São Paulo, em 1947, mandato que logo lhe foi tolhido com a cassação de seu partido pelo STF. Sempre se manteve na oposição aos governos dos anos 1950. A prisão nunca lhe foi estranha. Foi preso em várias ocasiões, entre as idades de 23 e 63 nos. 1964 marca assim, um novo ciclo nessas prisões e exílios.

Outro tópico da resenha é sobre a sua atividade intelectual e a sua relação com o Partido. Quanto ao Partido, sempre foi um militante devoto e extremamente ativo, colaborando em todos os sentidos com a sua sustentação. Na sua condição de intelectual autônomo e independente, teve divergências profundas com o mesmo, com relação ao governo Vargas, o Estado Novo, a questão rural, nunca aceitando o dogma partidário de que vivemos um período semifeudal e sim um momento do capitalismo mercantil, fato que marcaria a posição do partido com relação à Revolução. Essa parte da resenha é bastante esclarecedora com relação a essa problemática toda, fundamental para a compreensão do comportamento da esquerda em todo esse período. Em 1964, novas prisões e exílios. Em 1966, com o livro A revolução brasileira, ele mesmo se posiciona com relação a toda essa problemática. O livro teve grandes repercussões entre a esquerda brasileira.

Novos estudos, viagens (URSS, China e Cuba) e livros marcam a continuidade de sua trajetória. Escreveu sobre as suas viagens aos países do socialismo real, nunca perdendo o seu entusiasmo com relação a este "novo mundo", embora lhe fazendo algumas críticas. Morreu como um verdadeiro mártir de uma grande causa: a transformação de seu país num país justo. Vejamos o parágrafo final da resenha: "Caio Prado Junior morreu em São Paulo em 1990, aos 83 anos de idade, depois de uma longa vida de lutas políticas e intelectuais pelo socialismo e pelo desenvolvimento econômico e cultural pleno em nosso país".

Deixo a resenha de dois trabalhos anteriores já publicados no blog. A primeira é a de uma biografia sua, de autoria de Luiz Bernardo Pericás, autor também da resenha do livro da presente análise. Biografia que recomendo muito. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/03/caio-prado-junior-uma-biografia-politica.html

A segunda é uma resenha feita a partir do livro Introdução ao Brasil - Um banquete no trópico - com foco na Formação do Brasil Contemporâneo. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-12-formacao-do.html

E, como de hábito, a publicação anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_7.html