quarta-feira, 27 de julho de 2022

Um banquete no trópico. 35. A integração do negro na sociedade de classes. Florestan Fernandes.

Este é o trigésimo quinto trabalho do presente projeto.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/03/introducao-ao-brasil-um-banquete-no.html 

Trata-se da resenha que Gabriel Cohn, professor do Departamento de Ciência Política da FFCH da Universidade de São Paulo, fez de A integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes. A resenha encontra-se em Introdução ao Brasil - um banquete no trópico, volume II, páginas 385 a 402, livro organizado por Lourenço Dantas Mota. O livro, de dois volumes, aborda essa questão profundamente paradoxal. A integração do negro numa sociedade de classes. A primeira publicação data do ano de 1964.

Florestan Fernandes. No volume II. 

O livro, de dois volumes, O legado da raça branca O limiar de uma nova era, trata da formação de uma sociedade de classes em São Paulo. Trata, portanto, de um dos mais vivos problemas na formação da sociedade brasileira, como o é o da formação de uma sociedade de classes. Limiar de uma nova era era o nome dado ao principal órgão da imprensa negra nesse período. O livro é mais expressão de promessas do que o seu cumprimento, mais de anseios do que sua realização, mais de obstáculos do que trajetos bem sucedidos. Trata de um entrecruzamento de dois graves problemas, o dos ex-escravizados e a formação de uma sociedade de classes. Qual seria o caminho a percorrer? Haveria a abertura de espaços para a integração? Quais seriam as possibilidades de organização e de afirmação como classe?

Não há caminho reto e plano a percorrer. Se houve uma dita "Lei áurea" não houve uma "via áurea" para a efetivação da integração social. O negro deveria se afirmar como negro e como classe. A via, não áurea, o empurrava para o beco. Obstáculos praticamente intransponíveis impediam essa via. A história da sociedade brasileira se defrontava com o dilema de que o passado e o presente comprometiam irremediavelmente o nosso futuro. Mas não era essa a perspectiva da obra. Seria necessária uma mudança qualitativa nas relações. O antigo cativo, agora era um homem negro, membro ativo de uma classe. Sem isso, o dilema se apresentava como insolúvel. Mas como se efetivaria essa mudança? Como pode o antigo cativo afirmar-se como um agente de transformações históricas, liberar as forças antes tolhidas? O negro entra no âmago da história e não à sua margem, nas análises de Florestan. O negro é o povo.

Ao negro coube o pior ponto de partida, de largada, nessa disputa histórica dentro de uma sociedade de classes. Não era mais inteiramente excluído e nem devidamente equipado para a inclusão. Nesse processo era ele o mais vulnerável. Ele move-se em círculos econômicos e políticos fechados que atravessam toda a nossa história, embora, não mais afirmados como tal. Mas esse povo quer emergir da história. Era a parte mais penalizada e a integração não se daria como um dom, mas como uma tarefa, uma missão. Vejamos uma parte dessa análise, na interpretação do resenhista:

'"O ainda, aqui e o agora formaram o objeto de nossas indagações', esclarece o autor na apresentação da obra. Por isso, acrescenta, 'a constelação social constituída pela ordem social competitiva impôs-se como sistema de referência inevitável nas descrições e interpretações'. Repare-se que o foco da análise não é um tipo de sociedade. Este somente é a referência básica (mesmo que o autor explicitamente não vê razão para crer que, tal como se apresenta, essa sociedade pudesse proporcionar 'as soluções efetivas para o dilema racial brasileiro'). Nem mesmo é o negro como categoria social específica, ou nem sequer  as relações entre negros e brancos. O objeto real do estudo é a complexa e tensa dinâmica em que se entrelaçam o presente, o legado do passado e as possibilidades futuras na sociedade brasileira". A identificação de um legado histórico. Ir para além desse legado. Ele contém um fardo e uma promessa. Carga do passado e potência do presente. Um passado de persistência e um futuro como projeção. Os vetores e as linhas de força.

A partir desse ponto o resenhista entra na análise da estrutura da obra, uma obra de 795 páginas. Começa mostrando Florestan e a familiaridade com o tema, a partir de pesquisa realizada junto com Roger Bastide, da qual saiu o livro Brancos e negros em São Paulo. Na continuidade, duas décadas de dedicação ao tema, com enormes avanços especialmente sobre o conceito de "democracia racial", conceito que fundamentava a pesquisa anterior, financiada pela UNESCO. Em uma de suas análises surge um novo personagem, o personagem do povo brasileiro e este povo brasileiro era formado por negros. Do conceito de "democracia racial" ele evolui para o conceito mais amplo de uma democracia em toda a sociedade. E esta democracia tem obstáculos estruturais e de resistências muito fortes para que ela se concretizasse em todas as suas dimensões, a começar pela política. A partir daí apresenta o conteúdo e a forma dos dois volumes de sua obra.

A primeira é mais teórica. Fundamenta-se na coleta de dados retirados de livros, jornais, artigos e relatórios e a segunda consta da análise da pesquisa de campo. O resenhista apresenta alguns dados que considera mais relevantes, como a questão do legado da raça branca, título do primeiro volume. Os brancos viram-se livres de seus escravos, mais do que estes ganharam a sua liberdade. O foco é a cidade de São Paulo e a grande perspectiva é a de como os escravizados, agora livres, reuniam condições de sobrevivência numa sociedade de classes, competitiva, portanto. Para agravar a sua situação somavam-se às condições que traziam da escravidão, a concorrência sofrida com a chegada maciça da vinda de imigrantes europeus. Teriam que disputar os mesmos espaços. O resenhista assim procura interpretar o autor:

"Confrontados com experiências como a do contrato de trabalho eram levados a interpretá-las sob um critério rígido: nada que lembrasse as condições anteriores era aceitável, sobretudo quando estavam envolvidas restrições a uma liberdade percebida de modo difuso. Viam-se, assim, em situações em que o próprio modo como traduziam seu empenho na integração social voltava-se contra eles. Mesmo quando buscavam absorver uma exigência do novo modo de vida, como a ambição por riqueza e o avanço social, o faziam de maneira desastrosa. Essa ambição existia, mas foi 'exatamente a causa de sua perda, pois fomentou opções extremamente rígidas e negativas', comenta o autor. Nessas condições, 'a sociedade de classes torna-se uma miragem, que não lhe abre de pronto nenhuma via de redenção coletiva'. Nessa etapa inicial [...] a liberdade apresenta-se para o povo negro de modo ainda ambivalente, como exigência radical e também como fonte de frustrações. Mas, comenta o autor, 'para expurgar-se de uma herança cultural perniciosa e converter-se em homem livre, o 'negro precisava viver em liberdade. Se chegou a usar a liberdade contra si, isso aconteceu, porque não sabia proceder de outro modo..."'.

Eles teriam que cumprir um 'destino humano', com enormes impactos da liberdade sobre a constituição de sua personalidade. O livro ganha uma grande dramaticidade. Faltavam ao negro suportes perceptivos e cognitivos para uma 'boa' organização do comportamento humano. Florestan chega a usar termos que superam o que antes designava por heranças culturais intransponíveis como 'apanhados numa ratoeira'. Ele padecia de carência de técnicas sociais e culturais diante de sua nova situação. Constantemente ouvia expressões como "Aprenda a agir como branco" ou "Aprenda que você não é branco". Enfim, o problema da inserção numa sociedade de classes era um grande problema que se apresentava para toda a sociedade brasileira. E uma grande e grave pergunta. Até aonde vai a lealdade dos brancos nessa tarefa de integração. Afinal, esta integração não se daria no 'fechado mundo dos brancos'? Vejamos esse mundo, na voz do resenhista:

"Nesse sentido, 'a ordem social competitiva emergiu e expandiu-se, completamente, como um autêntico e fechado mundo dos brancos'. Mas uma ordem social simultaneamente competitiva e fechada é uma aberração, uma fonte de dilemas insolúveis. Claro, concordaria Florestan, e poderia acrescentar: é isso mesmo que eu queria mostrar, examinando como se deu e em nome do que persiste. Mas é a aberração em que historicamente nos foi dado viver, na qual a inconformidade negra não tem como vencer, nem como desistir". O resenhista ainda selecionou um parágrafo relativo aos preconceitos raciais. Vejamos:

"Ao mesmo tempo, não obstante, amortecem ou anulam as repercussões das tendências de democratização da riqueza, do prestígio social e do poder na esfera das relações raciais. Descobre-se, assim, uma faceta deveras instrutiva da nossa realidade racial. Ela sugere que assiste razão aos que apontam o Brasil como um caso extremo de tolerância racial. Entretanto, também evidencia o reverso da medalha, infelizmente negligenciado: a tolerância racial não está a serviço da igualdade racial e, por conseguinte, é uma condição neutra em face dos problemas humanos do 'negro', relacionados com a concentração racial da renda, do prestígio social e do poder. Ela se vincula claramente, de fato, à defesa e à perpetuação indefinida do status quo racial, através de efeitos que promovem a preservação indireta das disparidades sociais, que condicionam a subalternização permanente do negro e do mulato. As vítimas do preconceito e da discriminação são encaradas e tratadas, com relativo decoro e civilidade, como pessoas; contudo, como se fossem pela metade. Os seus interesses materiais ou morais não entram na linha de conta. O que importa, imediata e realmente, é a 'paz social', com tudo o que ela representa como fator de estabilidade dos padrões de dominação racial".

Diante dessa afirmação, dois pequenos parágrafos do resenhista como conclusão. "As consequências desse estado de coisas são muito fundas. Na consciência social do 'branco' o 'preconceito de cor' aparece 'como se constituísse uma necessidade maldita'. E, na mais pungente frase do livro: 'O negro prolonga, assim, o destino do escravo'.

Seres humanos pela metade. Necessidade maldita. prolongamento do destino do escravo. Conclusão: é tempo de se promover a Segunda abolição.

Deixo ainda o link da outra obra de Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/04/um-banquete-no-tropico-19-revolucao.html 

E como de hábito, o trabalho anterior, Ordem e progresso, de Gilberto Freyre.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/06/um-banquete-no-tropico-34-ordem-e.html


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