segunda-feira, 18 de julho de 2022

Um banquete no trópico. 29. A América Latina: males de origem. Manuel Bonfim.

Este é o vigésimo nono trabalho do presente projeto.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/03/introducao-ao-brasil-um-banquete-no.html

Trata-se da resenha feita por Roberto Ventura, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, da obra A América Latina: males de origem, de Manuel Bonfim (1868 - 1932). A resenha encontra-se em Introdução ao Brasil -  um banquete no trópico, livro organizado por Lourenço Dantas Mota, vol. II, nas páginas 237 a 258. Trata-se da obra prima do educador e historiador sergipano, escrita com indignação e muita paixão. A categoria fundamental de análise para os nossos males é o termo parasitismo, termo transposto da biologia. Condena veementemente o racismo, o evolucionismo e o positivismo, teorias dominantes na época.

No volume II, Manuel Bonfim. A América Latina. Males de origem. A resenha.


Para melhor acompanhar a resenha apresento o sumário do livro. A edição que possuo é a edição do centenário, que tem apresentação de Darcy Ribeiro, que lhe outorga o título de antropólogo. O livro é dividido em cinco partes, a saber: I. A América Latina: estudo de parasitismo social. 1. A Europa e a América Latina: a opinião corrente. 2. Consequências da malevolência europeia; II. Parasitismo e degeneração. 1. Organismos biológicos e organismos sociais. 2. Causa da degeneração; III. As nações colonizadoras da América do Sul. 1. A educação guerreira e depredadora. 2. Parasitismo heroico: o "pensamento ibérico". 3. Transformação sedentária; degeneração. IV. Efeitos do parasitismo sobre as novas sociedades. Seção A. Efeitos gerais. 1. Natureza desses efeitos. 2. Expressão desses efeitos na vida econômica, política, intelectual e moral. Seção B. Efeitos especiais. 1. Preliminares: hereditariedade psicológica e social. 2. Efeitos da hereditariedade e da educação. 3. Efeitos devidos à tradição e à imitação. 4. Reação contra o Estado-metrópole. 5. Remanescentes da metrópole. V. As novas sociedades. 1. Elementos essenciais do caráter; raças colonizadoras; efeitos do cruzamento. 2. Revivescência das lutas anteriores. 3. A perspectiva da agressão - resistência. 4. As nações sul americanas em face à civilização e ao progresso. Resumo e conclusão.

O resenhista começa por apresentar o autor, a obra, sua importância e a contextualização. O livro teve sua primeira edição no ano de 1905. Na época reinavam teorias da existência de raças inferiores, da degeneração provocada pela miscigenação e das letargias provocadas pelo clima tropical. Já Manuel Bonfim aponta como causas para os nossos males, a exploração e a escravidão praticadas pelas metrópoles colonizadoras. Usa a categoria do parasitismo para apontar os males de origem. Aponta o estado brasileiro como tirânico e espoliador e perpetuador das atrocidades contra o povo. O remédio contra esses males seria uma educação popular massiva. Também aponta os males do imperialismo dos Estados Unidos, pela Doutrina Monroe (1817-1825). Contra pensadores influentes como Ruy Barbosa, Rio Branco, Joaquim Nabuco e Sílvio Romero se manifesta contra o pan-americanismo, um neocolonialismo sob a tutela dos Estados Unidos. Condena a República brasileira incipiente por sua adaptação às instituições monárquicas e ao conservadorismo.

Manuel Bonfim migrou da medicina para a política, para a história e para a educação. Darcy Ribeiro o reverencia como o fundador da antropologia brasileira. Já Antônio Cândido o considera como o mais radical dos pensadores do início do século XX. A exemplo de Joaquim Nabuco, é um reformador social, tornando-se um revolucionário apenas ao final de sua vida. Seus autores de referência eram Rocha Pombo e Oliveira Martins, sem o seu racismo. Também estudos Varnhagen e frei Vicente Salvador. O seu conceito chave de parasitismo para explicar a realidade social se deve ao fator escravidão. Ele se realiza através do trabalho escravo. O livro é uma busca pelas razões do nosso atraso, que uma vez diagnosticado, deveria ser superado. O livro era movido a patriotismo. Vejamos: "Este livro deriva diretamente do amor de um brasileiro pelo Brasil, da solicitude de um americano pela América".

Bonfim acusa o clero e a administração colonial pelo parasitismo instaurado e apontava para a escravidão como o meio de sua concretização. Passa a explicitar o uso do termo "parasitismo" e a sua prática por nações colonizadoras e por patrões. É a teoria biológica da "mais valia". Ele gera decadência e degradação. Vejamos o autor: "É o parasitismo, sempre e por toda parte o parasitismo, causa das causas, causa primeira, resumindo a história de todas as decadências em que vão desaparecendo os povos e as civilizações". E o resenhista continua: "O parasitismo produziria a exploração predatória e o gosto pela vida sedentária, que levariam ao esgotamento dos recursos e à decadência das sociedades. A eterna luta entre parasita e parasitado seria, portanto, o principal fator das transformações históricas". Seria a sua "luta de classes".

A partir daí o resenhista passa a examinar as cinco partes do livro. Na primeira parte, aponta para a visão negativa que os europeus tinham do Brasil, por não conhecerem a nossa história. Essa visão influenciou, inclusive, pensadores brasileiros e geraram teorias de imobilismo e fatalidades irreversíveis quanto à possibilidades de futuro. Também condena os Estados Unidos, que nos julgavam como imprestáveis, querendo nos estender o "manto protetor" do imperialismo. Proteção para justificar as práticas imperialistas.

Na segunda parte entra em cena o parasitismo e as degenerações que ele causa. Alerta que o parasitismo social é muito mais complexo que o parasitismo biológico. Não se dá por etapas e pela linearidade. Mas ele reproduziu o parasitismo biológico. Vejamos o resenhista: "Assim como existem na natureza parasitas que vivem de outros organismos, haveria, na sociedade, dominantes e dominados, senhores e escravos, patrões e trabalhadores, metrópole e colônia, capital estrangeiro e nação, Estado e povo. O parasitismo social reproduziria as características do parasitismo biológico, que traz a debilitação do organismo atacado, submetido à violência do parasita, que lhe retira a energia. Mas o próprio parasita acabaria por degenerar e entrar em decadência, chegando mesmo ao extermínio".

Uma imagem do parasitismo na natureza. Destruição do parasita e do parasitado. Foto tirada em Bonito.

Na terceira parte mostra a raiz dos males, originários dos países colonizadores. Os países ibéricos viveram onze séculos de formação guerreiro/predatória o que lhes provocou a inaptidão para o trabalho. Com as navegações comportaram-se como verdadeiros piratas e nunca foram colonizadores. Apenas saquearam, como no México e no Peru. Mostraram o seu desprezo pelo trabalho, trazendo os escravos para exercerem tal tarefa. E com os negros e com os índios estabeleceram as relações sociais parasitárias. Vejamos o autor: "A colônia é parasita; mas mesmo dentro da colônia, o parasitismo se exerce. - Em suma, a vítima das vítimas é o escravo, e este é o único que não tem voz, nem para queixar-se!".

Na quarta parte os efeitos do parasitismo são mostrados. A colonização predatória gera sociedades duais e em vez de interesses gerais, prosperam apenas os interesses privados. Isso promove a degradação do parasita e do parasitado. Com o atrofiamento provocado, o parasitismo se renova e se mantém com o conservadorismo. A independência em nada mudou o nosso quadro social. A escravidão, instituição principal, é mantida intacta. No conservadorismo o Estado se institui como "órgão de opressão", existe para fazer o mal. Vejamos: "O Estado existe para fazer o mal, exclusivamente [...] o Estado é inimigo, o opressor e o espoliador, a ele não se liga ideia de bem ou de útil; só inspira ódio e desconfiança" [...] Tornou-se, portanto, um "organismo dominador, tirânico, oneroso, e quase inútil [...] Eis o Estado: uma realidade à parte, em vez de ser um aparelho nascido da própria nacionalidade, fazendo corpo com ela, refletindo as suas tendências e interesses". Se interessa apenas por impostos e forças armadas repressoras.

E o resenhista continua: "Tal ânsia espoliadora teria corrompido as populações submetidas à colonização ibérica, trazendo a perversão do senso moral, o horror ao trabalho livre é à vida pacífica, o ódio ao governo, a desconfiança das autoridades e o desenvolvimento  dos instintos agressivos". Com a independência, o imperador partiu, mas a monarquia permaneceu. Mostra ainda as decepções com a República, com a sua democracia sem povo e, em que, o Estado não cumpre a sua função de oferecer educação para o povo.

A quinta parte aponta para a formação das novas sociedades, influenciadas pelos intelectuais da época e com os quais era preciso romper. Isto é, era necessário romper com o racismo, com o evolucionismo e com o positivismo. Eram essas "filosofias do massacre" que permitiam o domínio dos fortes sobre os fracos. Assim ele se expressa: "Levada à prática, a teoria deu o seguinte resultado: vão os "superiores" aos países onde existem esses "povos inferiores",  organizam-lhes a vida conforme as suas tradições - deles superiores, instituem-se em classes dirigentes, e obrigam os inferiores a trabalhar para sustentá-las; e se estes o não quiserem, então que os matem e eliminem de qualquer forma, a fim de ficar a terra para os superiores [...] Tal é, em síntese, a teoria das raças inferiores". As teorias raciais sempre estiveram atreladas ao expansionismo colonial/imperialista. As críticas se dirigem aos três fatores que ele tanto combateu, o racismo, o evolucionismo e o positivismo e as suas hierarquias. Entre os humanos não deveria predominar o darwinismo social, mas sim, a solidariedade. O livro termina com um ligeiro otimismo, em função de sua crença na educação popular.

A parte final da resenha é dedicada às críticas e a recepção de sua obra. As mais duras lhe foram dirigidas por Sílvio Romero, fervoroso adepto das teorias do evolucionismo, do branqueamento. Lhe dirigiu 25 artigos de crítica à sua obra.  Por 20 anos, retirou-se da vida de historiador e escritor e se dedicou à educação e à política. Criticou duramente a Revolução de 1930 pela sua falta de radicalidade. Apenas ao final da vida voltou a escrever, agora sob a perspectiva revolucionária, com o livro Brasil Nação.

Quanto aos méritos, influenciou toda uma geração de intérpretes de Brasil, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior. Além disso fez todo o esforço em sepultar as teorias étnico climáticas, substituindo-as por fatores sociais e culturais. Não raça e natureza, mas sim, cultura e caráter. Sempre expressou o seu pensamento com paixão e indignação, fato que também lhe valeu críticas. A sua obra caiu num longo esquecimento, sendo redescoberto por Darcy Ribeiro, ao longo dos anos 1980. Darcy o considerava como o pensador mais original da América Latina. Nos 500 anos do "descobrimento" recebeu a sua canonização. Eu mesmo tenho uma edição de 2005, comemorativa ao centenário da obra. Deixo ainda o penúltimo parágrafo da resenha: 

"O interesse por sua obra cresceu nos 500 anos do descobrimento do Brasil, quando houve uma quase canonização de Manuel Bonfim, alçado ao pedestal dos mais destacados comentaristas do país. Silviano Santiago inclui A América Latina no volume Intérpretes do Brasil, junto com ensaístas, historiadores e sociólogos, como Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes. Seu livro didático, Através do Brasil,  escrito em parceria com Olavo Bilac, foi também relançado. Está prevista ainda a reedição de O Brasil na história, além da publicação de sua biografia, O rebelde esquecido, pelo sociólogo Ronaldo Conde Aguiar".

Antônio Cândido, em dez apresentações de intérpretes do Brasil, o situa em quinto lugar. Vejamos:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/10/dez-interpretacoes-de-brasil-indicacoes.html

Vejamos ainda o link da resenha que fiz, quando da leitura do primoroso livro, no ano de 2013.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/11/a-america-latina-males-de-origem-manoel.html

E, como de hábito, a resenha do trabalho anterior, sobre a obra Minha formação, de Joaquim Nabuco.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/05/um-banquete-no-tropico-28-minha.html

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