sexta-feira, 15 de julho de 2022

Um banquete no trópico. 25. D. João VI no Brasil. Oliveira Lima.

Este é o vigésimo quinto trabalho do presente projeto.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/03/introducao-ao-brasil-um-banquete-no.html

Trata-se da resenha de Guilherme Pereira das Neves, professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, do livro D. João VI no Brasil, de Oliveira Lima. A resenha encontra-se em Introdução ao Brasil - Um banquete no trópico, volume II, livro organizado por Lourenço Dantas Mota, nas páginas 143 a 166. A primeira edição do livro data do ano de 1909 e é a grande referência da historiografia brasileira sobre o tema.

No volume II, a resenha de D. João VI no Brasil.

O resenhista começa o seu trabalho nos apresentando uma ideia geral do livro, cuja primeira edição surgiu em 1909. A terceira edição, de 1996, tem 30 capítulos e quase 800 páginas. Oliveira Lima caracteriza D. João VI como um rei popular, que D. Pedro I se impunha pela energia e pela bravura e que D. Pedro II inspirava veneração e fervor. Wilson Martins, no prefácio da segunda edição, de 1945 afirma ser o livro "um clássico da historiografia brasileira", sendo reconhecido também como o melhor livro sobre o tema do estabelecimento da família real no Brasil e a sua permanência ao longo de 13 anos. São os antecedentes de nossa emancipação política. As suas fontes são os arquivos oficiais.

Após essa primeira visão do livro, o resenhista nos apresenta o seu autor.  Oliveira Lima nasce em Recife no ano de 1867. Após rápido enriquecimento com o comércio, sua família retorna a Portugal, onde ele então viverá os seus anos de formação. Profissionalmente ele dedicará sua vida à diplomacia, estabelecendo-se em Washington, após a aposentadoria. Ali morre em 1928, deixando a sua biblioteca de quarenta mil volumes para a universidade católica local. Em sua lápide pediu que se firmasse a seguinte inscrição: "Aqui jaz um amigo dos livros". Era tido como um diplomata muito competente.

O resenhista segue a sua análise sob o título: "A obra: a dimensão política e diplomática". Ela é apresentada em sequência cronológica. O que impressiona é a conjuntura ou a contextualização em que os fatos aconteceram. É o mundo moderno, que tomou formas, após a paz de Westfália (1648), quando começaram a se formar os estados nacionais, quando, na sequência, ocorreram enormes transformações nos transportes e nas comunicações, quando ocorreu a Revolução Francesa e as guerras napoleônicas. O mundo ganhou a sua configuração com a qual chegou até à Segunda Guerra. 

Desde a Restauração do Império Português (1640) Portugal sempre vivera a situação de um país periférico aos países centrais da Europa e que ganhou alguma proeminência sob Pombal. Formou um enorme Império colonial, sempre vulnerável e sempre assolado pelo temor dos ideais libertários que assolavam o mundo, especialmente os ideais revolucionários dos franceses. A Espanha sempre foi a mais temida. 

Com Napoleão, os acontecimentos se precipitam. Em sua obsessão por isolar a Inglaterra, avança sobre Portugal. Oliveira Viana assim descreve a Europa sob as ameaças de Napoleão: "O rei da Espanha mendigando em solo francês a proteção de Napoleão; o rei da Prússia foragido da sua capital ocupada pelos soldados franceses; o Stathouder, quase rei da Holanda, refugiado em Londres; o rei das Duas Sicílias exilado da sua linda Nápoles; as dinastias da Toscana e Parma, errantes; o rei do Piemonte reduzido à mesquinha corte de Cagliari [...];  o Doge e os X enxotados do tablado político; o czar celebrando entrevistas e jurando amizade para se segurar em Petersburgo; a Escandinávia prestes a implorar um herdeiro dentre os marechais de Bonaparte; o imperador do Sacro Império e o próprio Pontífice Romano obrigados de quando em vez a desamparar seus tronos que se diziam eternos e intangíveis" Nessas condições, que decisão deveria tomar a corte portuguesa? Vejamos o resenhista:

"Nessas condições, após sucessivas tentativas de apaziguar a França, que abalaram a aliança inglesa, a decisão de partir para o Brasil, com raízes no passado remoto, e longamente ponderada, revelou-se muito mais 'como uma inteligente e feliz manobra política do que como uma deserção covarde'". Assim se formou um novo império, o império luso-brasileiro. As antinomias do período foram os antecedentes de 1822. Com a corte instalada no Rio de Janeiro Dona Carlota Joaquina já sonhava em ser uma Isabel ou uma Catarina. Quis estender as fronteiras até o Prata e comprou brigas com a Espanha. Essa contextualização é o cerne do livro, segundo o resenhista: "Trata-se, em suma.  de analisar a posição da monarquia sediada no Rio de Janeiro em relação ao cenário internacional, após a paz na Europa, e de verificar o complexo xadrez de interesses, que a transmigração de 1808 produzira no interior do império luso-brasileiro". Ainda faria sentido, no pós Napoleão, manter a corte no Brasil? D. João já poderia regressar? Que posições defender no Congresso de Viena?

Em Viena, Portugal tinha três interesses especiais: ocupar o Uruguai, disputar com a Espanha a região de Olivença e, de maneira toda especial, a manutenção do tráfico negreiro. Uma reaproximação com a Áustria marcou o casamento de D. Pedro com a princesa Leopoldina (coitada dela!). No Congresso, Portugal obteve relativos êxitos. Quando tudo indicava pela permanência de D. João no Rio de Janeiro, ocorre a revolução no Porto e a exigência da volta. O abatimento tomou conta do rei, que queria se manter à frente do Império, mas a "discórdia criada entre as duas metades da monarquia, das quais uma reclamava a sua dinastia, sob pena de fazer voar o trono em estilhaços, e a outra timbrava em conservar a investidura recebida de cabeça do império". Assim, 1821 foi um ano português e 1822, um ano brasileiro. Não houve como conciliar.

Depois segue a análise da obra, agora em sua dimensão social e cultural. Esta é considerada como a melhor parte, aquela que lhe dá densidade. Vejamos a descrição da chegada da corte: "O desembarque da família real portuguesa no Rio de Janeiro, aos 8 de março de 1808, foi mais do que uma cerimônia oficial: foi uma festa popular. Os habitantes da capital brasileira corresponderam bizarramente às ordens do vice-rei conde dos Arcos e saudaram o príncipe regente, não simplesmente como o estipulavam os editais, respeitosa e carinhosamente, mas com a mais tocante efusão. D. João pode facilmente divisar a satisfação, a reverência e o amor que animavam seus súditos transatlânticos nos semblantes daqueles que em aglomeração compacta se alinhavam desde a rampa do cais até a Sé, que então era a igreja do Rosário; os sacerdotes paramentados de pluviais de seda e ouro, incensando-o, ao saltar da galeota, com hissopes de ouro, tanto quanto os escravos humildes que de precioso só podiam ostentar num riso feliz as suas dentaduras nacaradas".

A essa contradição entre o fausto da corte e a miséria dos escravos, uma herança que nos foi legada por Portugal, Oliveira Lima a atribuía a uma fragilidade da civilização ocidental. Atenta também para o fato dos enormes melhoramentos culturais trazidos pela corte, a começar pelo tratamento dado aos estrangeiros. Eles se sentiam como "cidadãos do mundo". O Estado praticava uma espécie de socialismo, uma vez que os indivíduos sozinhos não davam conta de tão gigantescas tarefas. Em 1808 o Brasil se abria para o mundo. A cultura, paralisada desde 1759 com a expulsão dos jesuítas, teve uma grande retomada. Não vingou a ideia da criação de uma universidade, mas vingou a criação da imprensa régia, de vários periódicos, de escolas profissionalizantes, do incremento do comércio de livros, teatro, música, que, mais desvinculados do caráter religioso promoveram uma verdadeira emancipação intelectual.

Os capítulos sobre os indígenas e a escravidão não apresentam novidades. Repetem os preconceitos da época. Ressalta também a contribuição da corte com a interiorização do país, destacando porém as mazelas dessa colonização. Vejamos uma citação que o autor toma de Euclides da Cunha sobre essa colonização: "Dom João VI a encontrou e a deixou sob a forma de um desbravar empírico, exercido a ferro e fogo, sem o aparelho apropriado nem sombra de fundamento científico. Traduzia-se, como hoje ainda, pelas derrubadas e queimadas que, a pretexto de alargarem a zona de cultivação, estendiam, com a supressão das matas, a área das secas para nela vegetar, sobre um solo que de fértil passava a estéril, 'e decaída pelo impaludismo, tão característico das regiões incultas, uma população de mestiços lamentáveis, agitantes num quase deserto'". Antecipou assim, considera o resenhista, Sérgio Buarque de Holanda que  afirmou que "o português é por temperamento muito mais um explorador do que um colonizador".

Já o 1817 pernambucano merece do historiador uma descrição, tida como sóbria, do afloramento de um sentimento impulsivo de liberdade, que somou frades democratas com senhores de engenho, rebelados contra os "mascates" portugueses. O movimento carecia de base popular. Quando as forças opressoras do império chegaram, a rebelião já havia sido debelada.

Dois capítulos são dedicados à descrição das festas da corte. De novo ganha destaque a desproporção entre a corte e as ruas. Vejamos o resenhista citando o autor:  era "sobretudo a população de cor que emprestava à capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves o seu aspecto estranho e único na monarquia". Estes davam "uma ideia bastante precisa do que era o carnaval perpétuo dessa cidade sob muitos aspectos ainda colonial, sob outros, não menos abundantes, exótica e apenas cortesã por algumas, mais raras, feições. E após descrições precisas de quem e como se movimentava a população na busca pela sobrevivência o historiador ainda acrescenta "as mulatas da vida airada" e as "sacerdotisas do amor fusco, fornecendo ocasião e pretexto para as elegâncias femininas e as pompas das irmandades". Segue a descrição de uma procissão de Corpus Christi, uma verdadeira coisa do outro mundo, no pleno sentido da expressão. Se via o fausto europeu nas ruas do Rio de Janeiro. O casamento de D. Pedro com a princesa Leopoldina deve ter feito inveja às festas de Viena.

As últimas duas páginas da resenha são dedicadas à atualidade da obra. Vejamos o resenhista: "Oliveira Lima não escreveu a biografia de um rei, mas compôs, sob a forma de um drama, o retrato de uma época, em que o monarca assumiu o papel de protagonista. Na 'essência um rei absoluto, mas na forma um rei constitucional'. D. João". Destaca que Oliveira Viana demonstrou grande humanidade no julgamento de seu personagem, fato que é um bônus para o historiador. Vejamos ainda o seu parágrafo final:

"Ou seja, esse livro de um pensador notável pela inteligência curiosa, penetrante e compreensiva, escondido sob a figura de um historiador minucioso, oferece a possibilidade de repensar, como é próprio às grandes obras de história, as tradições das quais brotamos. Em particular, de um ponto de vista mais estritamente histórico, ele nos faz indagar por que o Brasil não nasceu, em 1822, das reivindicações de um sentimento compartilhado pela maioria da população, mas, sim, de uma série de circunstâncias e de acontecimentos fortuitos, manipulados por interesses restritos, sob a égide de um anjo torto, desses que vivem na sombra, vaticinando que a nação haveria de ser gauche na vida". Deve ser um livro muito precioso. Cheguei a pô-lo no carrinho de compras da Amazon, a um custo de R$ 72,68. E como de hábito, a resenha anterior, Vida e morte do bandeirante, de Alcântara Machado.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/05/um-banquete-no-tropico-24-vida-e-morte.html  

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