quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Juventude sem Deus. 1938. Ödön von Horváth. Prefácio. Uma contextualização.

Este post tem por objetivo apresentar o prefácio da edição brasileira do livro Juventude sem Deus, do escritor croata (Na época a Croácia pertencia ao Império austro-húngaro), Ödön von Horváth. A sua publicação original data do ano de 1938. O livro apresenta os dramas de consciência de um jovem professor alemão diante da imposição de valores apregoados pelo Terceiro Reich e os valores humanos dos quais ele era portador. Apesar dos êxitos imediatos do livro, ele, na época, não teve uma tradução para a língua portuguesa. O livro tem agora, em 2024 a sua primeira publicação no Brasil. As razões para isso parecem óbvias: a virulência com que os ideais fascistas estão ressurgindo. Deixo a resenha do livro:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/11/juventude-sem-deus-odon-von-horwath-1938.html

O prefácio da edição brasileira, escrito pela professora Michele Gialdroni, graduada em literatura alemã e com especial foco na literatura do entre guerras, é algo precioso. Uma contextualização da época, fato que nos permite estabelecer paralelos. 

Juventude sem Deus. Ödön von Horwáth. Todavia. 2024. Tradução: Sérgio Tellaroli.

A professora retrata o jovem dramaturgo aos 36 anos, agora radicado na Alemanha nazista. É bem sucedido em sua carreira mas sofre os seus próprios dramas de consciência. O regime não permite o exercício da liberdade em expressar a sua arte e também sente que não tem mais público que aprecie as suas manifestações. Radicaliza em não condescender com o sistema. Os seus próprios dramas, vividos entre a adesão e o manifestar seus conflitos interiores, seus dramas de consciência o levaram ao livro Juventude sem Deus. Sobre o livro, assim se expressa a um amigo afirmando que "a grande novidade da obra era esta: ter dado voz ao ser humano fascista, ou melhor, se corrige, 'ao ser humano na época do fascismo"'(página 10). Aderir ao sistema seria ajudar a criar monstros. 

Qual seria então a missão do professor diante dessa realidade? A mesma que o escritor dá à sua literatura: "O sofrimento do narrador, o professor, que, embora movido por uma incontestável moralidade e por sentimentos de solidariedade humana, não consegue tomar posição, não consegue mudar, é também o sofrimento de Horváth. Quando o professor conseguir sair do isolamento de sua condição de espectador, será outro vivisseccionador da realidade a morrer: o estudante insuspeito, aquele com olhos de peixe, o garoto que, como o próprio professor, quer ver a realidade até o momento derradeiro, que transforma a curiosidade e o desejo de conhecimento em desprezo e sadismo. Essa dicotomia entre realidade e verdade é bem presente nas obras  de Horváth. Os fanáticos do realismo são os carrascos, os algozes, aqueles que afirmam que nada pode ser feito, porque as coisas são como são" (páginas 10-11). Semear a utopia. Um não ao conformismo.

O Juventude sem Deus começa altamente provocativo. Já no primeiro capítulo, sob o título Os negros, encontramos o professor a corrigir redações. O aluno N escrevera: "Todos os negros são traiçoeiros, covardes e vagabundos". "Generalização absurda" corrige o professor. Foi o suficiente para lhe causar problemas. Mas ele se afirma diante dessa realidade. A sua consciência triunfa sobre a adesão.

A prefaciadora em sua análise da obra vê no livro um manifesto contra todas as sociedade "liberticidas e militarizadas" que tiveram ampla adesão "pelo oportunismo das velhas gerações de diretores de escola, grandes industriais e pequenos comerciantes, mas também o entusiasmo das novas gerações"(página 11). E num passo magnífico ela apresenta as denúncias contra uma escola autoritária, que aparecem na literatura, já antes das grandes guerras. Me permitam uma transcrição um pouco mais longa. São indicações preciosas e necessárias:

"Na literatura alemã das primeiras décadas do século XX, iniciando-se com O anjo azul, de Heinrich Mann, de 1905, o professor tinha sido representado por antonomásia - pensemos também no oprimente convento de Maulbronn em Unterm Rad  [Debaixo de rodas], de Hermann Hesse, ou no claustrofóbico colégio militar de O jovem Törless, de Robert Musil, ambos publicados em 1906" (Páginas 11-12). E agora as reflexões e as decisões a serem tomadas 

"Aquele que era o opressor, o representante do sistema que deve educar  seus alunos à obediência, torna-se agora nas mãos de Horváth, com todas as incertezas, o alter ego do escritor (e figura de identificação do leitor), que se depara com uma geração de jovens cegados pela fúria coletivista. Uma sociedade que exclui definitivamente aqueles que não são considerados parte integrante do corpo compacto da nação, por nascimento, por escolha, às vezes por necessidade. Ou seja, não só judeus, negros e ciganos, não só comunistas e sindicalistas, mas também pessoas com deficiência e doentes, também os míseros trabalhadores que em Juventude sem Deus vivem nos velhos casebres acinzentados do povoado, os moleques inconformados que se escondem nos bosques e roubam para sobreviver. Enfim, uma sociedade que não tolera os professores que se rebelam contra o regime e têm de escolher a via do exílio para poder viver uma vida digna, para redimir-se das maldades justo ali onde mais cruelmente foram cometidas, no contexto colonial" (Página 12).

Depois a prefaciadora se detém em dados mais pessoais da biografia do escritor, um permanente exilado em seus países de origem. Teve uma morte prematura trágica, quando tencionava vir morar na Califórnia, para se aproximar de Hollywood. Do trágico acidente que ceifara a sua vida (a queda do galho de uma árvore em um temporal, na proximidade dos Champs Élysée) sobraram duas estrofes de um poema seu:

"E as pessoas dirão // Em longínquos dias azuis // Quando finalmente se distinguirá // O falso do verdadeiro // Que aquilo que é falso ruirá // Embora hoje reine // E o verdadeiro triunfará // Embora hoje deva morrer" (Página 15).

Uma bela oportunidade para profundas e reflexões e atitudes a tomar frente a nova onda autoritária, fascista que nos assola. E, para aprofundar as reflexões sobre um fascismo latente e iminente, vejamos algumas constatações de Humberto Eco, uma radiografia:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/03/fascismo-eterno-umberto-eco.html

E a terrível e marcante frase: "Aderir ao sistema seria ajudar a criar monstros". Também estamos permanentemente diante de escolhas.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

JUVENTUDE SEM DEUS. Ödön von Horwáth. 1938.

Antes de mais nada, devo dizer que o romance Juventude sem Deus, do croata (então Império Austro-Húngaro) Ödön von Horwáth (1901-1938), reflete os dramas de consciência de um professor alemão, diante da ascensão do regime nazifascista na Alemanha de então. Sob este regime, o professor perde completamente a autonomia em sala de aula e passa a ser uma engrenagem da máquina publicitária na transmissão dos valores pregados pelo sistema. É a chamada "Guerra Total" em que todos os instrumentos culturais são colocados a serviço do regime. Ao professor caberia a adaptação, ou a resistência. Um horror!

Juventude sem Deus. Ödön von Horwath. Todavia 2024. Tradução: Sérgio Tellaroli.

Horwáth é um jovem escritor, também envolvido com teatro e cinema, morto precocemente em Paris, nas proximidades da Champs-Élysées, atingido pelo galho de uma árvore, caído numa tempestade. Ele encontrou enormes dificuldades em viver livremente na conturbada Europa desse período. Sendo filho de diplomatas, acompanhou os pais por vários países, encontrando dificuldades de se estabelecer em todos eles. A sua morte ocorreu quando, em Paris, estava negociando os direitos autorais de Juventude sem Deus para o cinema.  Mas vamos ao livro.

Juventude sem Deus, por óbvio, não pode ser publicado na Alemanha, sob o Terceiro Reich. Foi então publicado na Holanda em 1938 e imediatamente foi traduzido para várias línguas. Mas não para o português. Assim o livro ficou praticamente desconhecido no Brasil. O personagem do romance é um professor e o tema é a relação desse professor com os valores que a escola deveria transmitir aos alunos, como engrenagem da máquina publicitária formadora de consciências sob o domínio do Reich. Como esses valores se contrapõem aos seus, eles geram os dramas de consciência. Mas, vamos a orelha do livro para uma contextualização:

"Todos os negros são traiçoeiros, covardes e vagabundos." Ao ler essa frase na redação de um aluno, o professor reage: "Os negros também são seres humanos." É esse o ponto de partida desta pequena joia da literatura em língua alemã, escrita em 1937, em plena vigência do Terceiro Reich.

O livro acompanha a crise de consciência desse professor, em meio ao ambiente sufocante do regime racista e colonialista imposto pelo governo de Hitler. A atitude do professor em defesa dos negros soa revoltante para a casta que apoia o regime: burocratas acomodados, como o diretor da escola, ou industriais e comerciantes, como os pais de alguns alunos. Sem falar nos próprios adolescentes, entusiasmados com o patriotismo que a política oficial lhes impinge e cegos para a desumanização a que são submetidos diariamente (O mal se banaliza).

Mais adiante, o professor vai com a turma para um acampamento destinado à realização de treinos militares. E ali se envolve num episódio trágico que lhe custará o emprego, já em risco depois que ousara confrontar as afirmações racistas de seu aluno.

A "Guerra total", o rádio e o cinema como instrumentos de propaganda, os livros proibidos, a moralidade pública, a educação para a guerra e a 'regeneração' da juventude - todos esses elementos mobilizados na obra reconstroem o clima político do nacional-socialismo, cristalizado na impotência de um protagonista em crise e numa linguagem de simplicidade desconcertante.

Proibido na Alemanha, Juventude sem Deus foi publicado na Holanda, em 1938, ano da morte precoce do autor - Horwáth morreu após a queda de um galho em sua cabeça, em Paris, em plena ascensão como escritor e dramaturgo.

Recebido com entusiasmo por Hermann Hesse, Thomas Mann e Joseph Roth, admirado por Natalia Ginsburg e Peter Handke, adaptado para o teatro e o cinema, Juventude sem Deus é um clássico ainda pouco conhecido no Brasil - e sua publicação se torna mais premente numa época em que os fascismos insistem em mostrar que não morreram".

Este último parágrafo nos leva à atualidade do livro. Nos leva a uma análise do quadro educacional do Brasil, neste momento tão delicado da vida nacional. A serpente do fascismo está mais do que visível em seu ovo. E este ovo está sendo cuidadosamente chocado. Os controles sobre a escola praticamente não tem precedentes (até o macarthismo foi fichinha), especialmente após o golpe de 2016. Temos os movimentos do Escola sem Partido, do Novo Ensino Médio (escola dual), da censura a livros (O avesso da pele, de Jeferson Tenório), do reforçar dos elementos de vigilância sobre os professores, da militarização e privatização das escolas, da negação da diversidade cultural e da uniformização dos conteúdos, dos controles desses conteúdos pela avaliação padronizada e pelo massivo uso de plataformas de aulas prontas, sem a autoria (donde deriva autoridade) do professor e, acima de tudo, pela sua desvalorização como um profissional, reduzindo-o a um burocrata que meramente aplica aulas. E ai dele se não o fizer! Os meios de controle hoje estão muito mais sofisticados, praticamente ocorrem em tempo real.

Daí a atualidade do livro e a premência de sua publicação, mesmo que, mais de oitenta anos após a sua publicação original. A história se repete, agora como farsa. Além desse drama de consciência do professor, o romance também possui um valor literário extraordinário, especialmente pela sua força narrativa e linguagem envolvente e precisa. Tudo é narrado em pequenos capítulos de duas a três páginas (44 no total, abrangendo 173 paginas).

Um suspense acompanha a narrativa, especialmente após o acampamento para a realização de treinamentos militares. Vejam bem, treinamentos militares. Creio que a militarização de nossas escolas ainda não chegou a tanto. E, algo fantástico e maravilhoso. A dialética (A denúncia precede o anúncio - nos lembra Paulo Freire). Alguns alunos, motivados pelo exemplo do professor e inconformados com os valores desumanizadores, formam um clube de leituras onde se examina, não o real, pregado pelo sistema, mas o como este real deveria ser, para não ser o elemento desumanizador da sociedade. Também vale muito o precioso prefácio de contextualização da época, escrito pela professora Michele Gialdroni, especialista em literatura alemã e com foco voltado para o período entre guerras. Este prefácio merecerá um post especial. A tradução é de Sérgio Tellaroli e a editora é a Todavia. A publicação é do ano de 2024.

E ainda, um ponto alto do livro a destacar: A ligação existente entre o colonialismo e o racismo. A justificativa da existência de colônias necessariamente leva ao racismo. É uma cultura superior dominando uma inferior. Daí a hierarquia das raças e a ideologia que justifica o colonialismo. Levar o progresso aos continentes, povos e raças atrasados. Observem a linguagem. Para este tema é fundamental o livro de Frantz Fanon, Os condenados da terra. Deixo a resenha:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/03/os-condenados-da-terra-frantz-fanon.html



quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Simpósio do Barreado. Dante Mendonça.

Domingo 10 de novembro de 2024. Recebi um agradável convite do meu amigo Valdemar para um almoço no Sarau do Oba. Além do almoço, cujo cardápio era um baião de dois, haveria um show de "Moda de viola", com Ana Decker e Júnior Bier. Como sempre estou disposto para festas, não titubiei e fui. O dia foi para muito além do imaginado e do esperado. Comida boa, ambiente agradável e o show então, nem falar. Conseguem imaginar um show de vila caipira! E a Ana Decker e o Júnior, simplesmente maravilhosos.

Simpósio do Barreado. Dante Mendonça. Ed. Senac. 2023.

Ao final, ainda fomos brindados pelo anfitrião, o senhor Orlando, com um livro maravilhoso Simpósio do Barreado - Origens e receita do prato típico paranaense. A autoria é do jornalista, aquarelista e escritor Dante Mendonça. Na contracapa do livro estão os objetivos do tal do simpósio. - Afinal, o Barreado nasceu em Morretes, Antonina ou Paranaguá? Na antiga Grécia, durante um sympósion os convivas discutiam, comiam, bebiam e cantavam. No Simpósio do Barreado, especialistas se reuniram em Porto de Cima para um banquete na história do prato mais típico do Paraná.

O livro é uma grande obra de arte e uma peça de humor inigualável, além das aquarelas do autor. O livro também contém valiosos dados históricos das três cidades do litoral paranaense. A história do barreado tem os seus registros já a partir de 1820, quando Saint Hilaire, foi de Curitiba para o litoral e atendendo a pedido seu sobre a indicação de algum prato típico, lhe indicaram o barreado. A partir de então está viva a disputa sobre a origem e a receita ortodoxa do famoso prato. 

Para estabelecer a verdade, num sábado, dia 15 de agosto, dia de Na. Sa. da Guia, reuniu-se no Porto de Cima o tal do simpósio. O local era considerado neutro, uma vez que recebia as cargas vindas de Curitiba e se fazia o transbordo das cargas para os diferentes portos. O simpósio, na abertura, foi abrilhantado pela banda euterpina morretense, que, embora um vento venenoso vindo da Ilha das Cobras fizesse voar as partituras, o Guarani de Carlos Gomes foi magistralmente executado. A banda é o orgulho da cidade de Morretes.

Foram compostas a mesa que presidiu os trabalhos e a dos convidados ilustres. Entre eles estavam Jaime Lerner, o folclorista Luiz da Câmara Cascudo, o chef estadunidense Anthony Bourdain, o escritor Alexandre Dumas (autor de Memórias gastronômicas e Pequena história da culinária) e o naturalista Auguste de Saint-Hilaire. Mesa de muito respeito.

No simpósio, ao narrar a origem do prato, também são narradas as origens das cidades e apresentados usos e costumes dos povos fundadores e da população caiçara, já com vistas para a argumentação em defesa desta ou daquela cidade. Colonização portuguesa e espanhola e a chegada dos italianos em Alexandra. Entre as argumentações, os defensores das diferentes causas falavam do bom gosto originário das populações, dos maus hábitos alimentares dos adversários, do só comer peixes, outros apenas charque, dos bons restaurantes dos países originários. Alta erudição e muitas digressões, como o uso ou não do tomate, do qual resultou a horrível praga mundial do ketchup. O representante de Antonina faz uma bela referência às festas do entrudo e carnaval, ligando-os aos festejos da Capela, em louvor à virgem do Pilar. Morretes foi acusada de servir um barreado pouco ortodoxo, adaptado ao gosto dos turistas. Componentes e modos de preparo também mereceram longas discussões, especialmente o cuentro.

O simpósio teve três sessões ao longo do dia mas a decisão foi adiada para o dia seguinte. Nela, os jurados seriam isolados e comeriam dos três diferentes púcaros, estes, sem a identificação da cidade de origem. Rafael Greca coordenou estes trabalhos. Ernani Buchman foi nomeado o porta voz dos jurados e, depois de lavar as mãos  nas águas do Nhundiaquara, proferiu o veredito final:  "O Barreado nasceu com a fome e a vontade de comer, da cabeça e imaginação de algum índio carijó do litoral paranaense. Revogam-se disposições em contrário, e elegemos, como fórum do próximo Simpósio do Barreado, a Ilha do Mel".

Coube ao escritor Domingos Pellegrini escrever a orelha de capa, num belíssimo texto: "Este é, antes de tudo, um livro de amor e arte.

Pois só quem, como Dante Mendonça, ama a cozinha e a arte consegue reunir as duas tão amorosamente.

E só quem ama a História consegue transformá-la em história como aqui, casando também dimensão histórica e narrativa literária humana e envolvente.

É, por isso, um livro de quem e para quem sabe que mais humano que viver numa terra é viver a terra, conhecendo e amando sua gente, seus mestres e seus costumes.

Também é livro de arte nas aquarelas de Dante, que chegaram ao que mais pode almejar o artista, ter sua arte reconhecível à primeira vista, pois basta bater os olhos na sua lev1eza e expressividade para saber: é coisa do Dante.

Com tudo isso, este livro de arte e de amor à terra e sua história, sua gente e seu jeito de ser, consegue ainda ser também um gostoso livro de culinária! Que, além da autêntica receita do barreado, tem toda página como convite aberto para olhar e ver, pensar e rir, sentir e amar a vida, tornando este Simpósio do Barreado um livro muito vivo!"

A edição é de 2023, da Editora Senac. E o nosso domingo só terminou com a quase chegada da segunda feira! Maravilhoso.





quinta-feira, 14 de novembro de 2024

AINDA ESTOU AQUI. O filme.

Dia 11 de novembro fui ao Shopping Barigui, para assistir a uma das maravilhas do cinema mundial, Ainda estou aqui, filme dirigido por Walter Salles e tendo como protagonistas Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Selton Mello. O roteiro do filme é uma adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva, do mesmo nome, e que foi publicado no ano de 2015. A adaptação do roteiro ficou a cargo de Murilo Hauser e Heitor Lorega. O filme é sobre Eunice Paiva, uma mulher monumental. O filme teve  sua pré estreia no Festival de Veneza, onde foi aplaudido de pé, por dez minutos.

Cartaz de divulgação do filme Ainda estou aqui.

Vou situar brevemente e, em primeiro lugar, Marcelo Rubens Paiva, o autor do livro. Ele se tornou conhecido pelo seu Feliz Ano Velho, livro em que relata seu acidente, ocorrido na cidade de Campinas no ano de 1995 e que o deixou tetraplégico. O Ainda estou aqui, é o seu livro do ano de 2015 e que eu li no ano de 2017, depois de ganhá-lo de presente do meu filho Iuri. O livro tem o foco em seus pais Rubens e Eunice Paiva. O que esta família tem de singular? Vamos então aos seus personagens. Antes, deixo a resenha do livro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/04/ainda-estou-aqui-marcelo-rubens-paiva.html

Rubens Paiva foi um deputado federal, eleito pelo PTB de São Paulo, no ano de 1962. Já em 1964 teve o seu mandato cassado pela recém instaurada ditadura militar. Então, depois de inúmeros percalços e, na condição de engenheiro, se estabelece na construção civil, no Rio de Janeiro. Já Eunice Paiva cursou Letras na aristocrática e conservadora Universidade Mackenzie, onde conviveu com pessoas do mundo das letras. Fixaram residência no Rio de Janeiro, no bairro do Leblon. Talvez um dado interessante precise ser mencionado. A família de Rubens Paiva tinha propriedades no Vale do Ribeira, onde ocorreram as guerrilhas de Lamarca. Isso lhe atraiu uma constante vigilância. No Leblon viviam a típica vida de classe média alta, com cinco filhos, quatro meninas e o caçula Marcelo Rubens.

Em janeiro de 1971 a família recebe uma correspondência vinda do Chile e, a partir dela, a família passa a viver o verdadeiro estado de terror de um regime cruel e assassino. Rubens é detido (preso, como mais tarde será provado) e torturado até a morte, mas será dado como desaparecido. Eunice também foi presa, por 12 intermináveis dias de tortura psicológica. Uma das filhas, então com apenas 15 anos também passou pela prisão. Aí já entramos na narrativa ou no roteiro do filme, e Eunice passa a ser a grande protagonista. Imaginem a situação!

Sem marido, sem rendas, cinco filhos para criar (isso a obriga a disponibilizar patrimônio) e com o nome da família enlameado, uma vez que a mídia, além de outras instituições, transformaram o golpe militar na "Revolução Redentora", que livrara o Brasil dos "facínoras comunistas". Eunice assume o comando! Muda-se para São Paulo, volta para a Mackenzie, agora no curso de Direito, e se torna uma conceituada e prestigiada advogada. Além dos cuidados com os filhos, ela assume duas grandes causas: desvendar a morte do marido e assumir a defesa das causas indígenas. (Junto com Manuela Carneiro da Cunha, autora do livro Índios no Brasil: história, direitos e cidadania, conseguiram que figurasse na Constituição de 1988, o seu artigo 231).

Com relação ao marido, em 1996 (sob FHC) consegue, pela Lei dos Desaparecidos, o seu Atestado de Óbito, sem, no entanto saber sobre o paradeiro do corpo. Mais tarde, com a instituição da Comissão Nacional da Verdade (Dilma Rousseff), foi confirmada a sua morte no Doi-Codi, órgão submetido ao exército, sob tortura, bem como a identificação dos assassinos torturadores. Estes, no entanto, nunca sofreram qualquer tipo de punição, conforme depoimento de Marcelo Rubens, ao jornalista Juca Kfouri, no TVT. A impunidade favorece a repetição dos fatos, triste constatação.

Aos 72 anos Eunice é acometida pelo mal de Alzheimer, que a consumirá ao longo de 14 anos. Ela veio a falecer em dezembro de 2018, aos 86 anos. A interpretação de Eunice foi confiada a duas atrizes de primeira grandeza e - nem poderia ser diferente. Fernanda Torres representa a Eunice, como chefe da família e da grande batalhadora, cabendo a Fernanda Montenegro, por sete ou oito minutos memoráveis, sem uma única palavra, representar os seus momentos finais. Interpretações dignas da vida de lutas de uma grande mulher. A atuação de Selton Mello é destacada por Marcelo Rubens, na mesma entrevista concedida a Juca Kfouri, como a expressão fiel do caráter bondoso, gentil e brincalhão de seu pai. 

E o momento do filme! Não poderia haver melhor e mais oportuno. Após o golpe de 2016, a instável democracia brasileira vive sob o estado de cio dos remanescentes facínoras desse período triste de nossa história. Passamos por um governo horroroso e pela tentativa de golpe do 8 de janeiro e agora, pelo movimento de concessão de anistia para os bandidos depredadores desse mesmo 8 de janeiro (Escrevo no dia 14 de novembro, dia posterior a um novo ato terrorista em Brasília, que provavelmente sepultou esse movimento pela anistia). Foi lançado num momento em que precisamos brigar pela democracia. Walter Salles, com este seu filme, usa do cinema para cultivar a memória nacional e, pelo recurso da arte, nos provoca o horror diante dos fatos que tanto nos envergonham. O filme representa um grande movimento em favor da democracia, do horror às ditaduras com as suas costumeiras torturas, e da permanente luta em favor de um mundo que não perca a sua dimensão de alegria (o sorriso nas fotos), da riqueza das relações e dos ideais de humanidade. 

Um filme, que no dizer de Juca Kfouri, deveria ser passado em praça pública. É um dever de cidadania e humanidade assistir e divulgar este filme. Ele ainda dará muito o que falar por ocasião das festas do Oscar. E - juntos devemos bradar em alto e bom som - Ainda estou aqui. Mesmo porque eles (os facínoras) também ainda estão. E - precisam ser combatidos.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O Morro dos Ventos Uivantes. Emily Brontè. 1847.

Quando tomei em mãos O Morro dos Ventos Uivantes para a sua leitura, apareceu em meu facebook, uma resenha do livro e, em um comentário, alguém escreveu que, mal começara a sua leitura, já o largou após as primeiras páginas. Quando eu a comecei, logo me indaguei se não aconteceria o mesmo comigo. Eu explico. O livro é muito sombrio e isso ocorre já a partir das primeiras páginas. Senão vejamos o diálogo que se estabelece entre o sr. Lockwood, um locatário, com o sr. Heathcliff, o proprietário da locação. Depois de falar da beleza do local, se trava o seguinte diálogo:

O Morro dos Ventos Uivantes. Abril. 1971. Tradução: Oscar Mendes.

"- Sr. Heathcliff! -  disse eu. 

Respondeu com um aceno de cabeça. 

- Sou Lockwood, seu novo inquilino. Dei-me a honra de visitá-lo, logo depois que cheguei, para exprimir-lhe a esperança de não me ter tornado impertinente, ao insistir em ocupar Thrushcross Grange. Ouvi dizer ontem que o senhor tinha certas intenções...

- Thrushcross Grange - interrompeu ele, retraindo-se - é propriedade minha. Não permito que ninguém me aborreça quando posso a isso me opor... Entre! 

O "entre" foi dito de dentes cerrados e soava como se fosse um "vá para o diabo!" A própria porteira, sobre que se apoiava, não revelava nenhum movimento em acordo com o convite. Foi esta circunstância, creio, que me impeliu a aceitá-lo. Sentia-me interessado por um homem cuja reserva parecia mais exagerada do que a minha".

Essa péssima recepção é prenúncio do comportamento de Heathcliff, que, seguramente, eu apontaria como um dos mais sombrios personagens da literatura universal. Bem! Ao contrário do comentário lido, eu continuei persistente. E creio que esse diálogo inicial também nos dá a primeira abertura para situar o romance de Emily Brontè, datado de 1847. Nele aparece o sr. Heathcliff, o protagonista da obra. Aparece também o nome de uma das propriedades rurais, Thrushcross Grange, local dos acontecimentos, junto com a outra, que dá o nome ao romance O Morro dos Ventos Uivantes.

O Morro dos Ventos Uivantes, para continuar a apresentação do romance, pertence à família Earnshaw, composta pelo sr. e sra. Earnshaw e Hindley e Catarina, os filhos. Já a Thrushcross Grange pertence à família Linton, da qual são retirados como personagens os irmãos Edgar e Isabela. Da família Earnshaw surge outro personagem, Heathcliff, que, como já vimos, será o protagonista. Ele é trazido pelo patriarca da família, de uma viagem que ele fizera a Liverpool. Ele o recolheu na qualidade de um menino indigente, franzino, sujo e sobretudo faminto. Sua cor é um pouco mais escura, fato imediatamente percebido por todos. O senhor Earnshaw lhe dedica grandes afeições e atenções, logo sentidas por Hindley, que passa a hostilizá-lo. Já Catarina lhe lança olhares furtivos no começo, que logo a seguir, se tornaram afoitos. Tudo indica que nascera um grande amor! Será?

Esses são os ingredientes em que o leitor precisa ter atenção para não se perder nos labirintos da história. A narradora dessa história será Nelly Dean, uma empregada, meio governanta, que trabalhara nas duas propriedades. Essa história sinistra é contada ao longo de 34 capítulos, no decorrer de 313 páginas. Ela a conta para o sr. Lockwood, o locatário. Ela tem como mote principal a vingança de Heathcliff, pelos maus tratos recebidos por Hindley e pela pouca atenção de Catarina. Como resultado, todas as relações estabelecidas entre eles se tornam diabolicamente envenenadas, fechando todas as possibilidades de humanidade e de um final feliz. Todos são enlouquecidos por um ódio infernal. Heatcliff dominará a todos. Será rico, poderoso e proprietário das duas herdades, adquiridas ou por dinheiro, ou por herança. Dá para sentir o enredo!

Como vimos, o romance, que é a única obra da escritora, apareceu no ano de 1847, ano ainda pertencente ao romantismo. Dez anos depois, Gustave Flaubert inaugurará o realismo com o seu Madame Bovary. A escritora viveu apenas por 30 anos. Nasceu no Reino Unido em 1818 e, também nele, veio a falecer em 1848, um ano após o lançamento de seu livro. 

A edição que eu li é da coleção Os Imortais da Literatura Universal (Abril, 1971) e, no livro de minibiografias que a acompanha, lemos o que segue sobre a obra: 

"... O enredo gira em torno de Heathcliff, um coração livre que se endurece por ter sido vítima de maldades. Abandonado pela jovem que ele ama, emprega toda a sua força para se vingar das pessoas que provocaram a separação. Num clima de ódio e revolta, Heathcliff vai aniquilando, um por um, todos aqueles que considera seus inimigos. Ninguém é poupado, nem o próprio algoz. Pela primeira vez na literatura romântica, as personagens não são rigidamente classificadas como boas ou más. Vícios e virtudes nelas se mesclam, como nas criaturas reais. Entre os protagonistas - Heathcliff e Cathy - existe um amor torturado, levando antes à destruição que à felicidade. As personagens mais próximas dos tipos virtuosos são fracas e suscitam pena. A autora se abstém de apresentar juízos morais e, pela maneira que descreve as figuras principais, percebe-se que sua simpatia se volta para os que sofrem. A intensidade das paixões, a densidade das sombras que pairam sobre as personagens, a violência do amor e do ódio constituem os elementos característicos do livro e entremostram a riqueza de sentimentos que Emily guardava dentro de si. O clima tenso da obra não impede, todavia, a presença de um lirismo estranho e comovente, em que as misérias e as paixões humanas são tratadas de maneira incisiva".

Creio que O Morro dos Ventos Uivantes é a mais sombria das obras que eu já li. Todas as pessoas estão profundamente contaminadas pelo ódio, interessadas em fazer mal às pessoas e provocar mal-estar. E, como conseguem!... E como as relações fazem mal, muitas se refugiam na solidão e no isolamento, fatores que não são estranhos à biografia da escritora. Agora, o que é de estranhar é a força com que ela  apresenta os personagens em sua complexidade psicológica. Em seus poucos anos de vida sempre fora uma leitora exímia, fato que expandiu enormemente a sua mente. Outro elemento extraordinário em sua obra é o panorama traçado da Inglaterra dos meados do século XIX, especialmente o de seu meio rural, interiorano. Grande obra! 

Quero destacar ainda um fato. Ele é narrado nas páginas finais da obra. Nele Heathcliff está à beira da morte e ainda não elaborara o seu testamento. Para quem deixar a sua herança? Vejamos:

"Quando amanhecer, mandarei buscar Green (o homem da lei) - disse ele. - Gostaria de esclarecer com ele algumas questões jurídicas, enquanto estou em condições de emprestar um pensamento a esses negócios e agir com calma. Não fiz ainda meu testamento e não consegui chegar a uma decisão, a respeito da maneira de dispor de meus bens. Gostaria de suprimi-los da face da terra." (páginas 308-309). Talvez isso tenha me tocado particularmente porque conheço pessoas inconformadas por terem que deixar seus a bens a pessoas que eles julgam não merecedoras dos mesmos. Que horror!


terça-feira, 5 de novembro de 2024

A condição humana (1933). André Malraux.

A minha próxima leitura seria um dos livros da coleção Os Imortais da Literatura Universal (Abril - 1972) que eu ainda não tivesse lido. Creio que ainda me sobra algo em torno de uma meia dúzia. Entre eles estava o livro de André Malraux (1901-1976), com o belo e provocativo título de A condição humana. Confesso que não é um livro de leitura fácil, pois se trata de um tema bem datado, como o é o da Revolução Chinesa de 1927. Na ocasião, ela implodiu dentro da aliança formada por nacionalistas e comunistas para combater os países europeus em busca de autonomia nacional. Essa implosão opôs os nacionalistas aos comunistas.

A condição humana. André Malraux. Abri. 1972. Tradução: Jorge de Sena

Os nacionalistas eram comandados por Chiang Kai-shek e os comunistas chineses, que obedeciam as ordens da Terceira Internacional, sob o comando da União Soviética. Os desentendimentos levaram ao golpe dos nacionalistas. A luta foi violenta e sangrenta e terminou com a vitimização dos comunistas e a implementação de uma ditadura por Chiang Kai-shek. Estes fatos ocorreram, como já vimos, no ano de 1927 e a narrativa de Malraux é de 1933. Este é o ano da publicação de seu mais importante livro. O local das rebeliões ocorre em Xangai e na cidade industrial de Hankow.

Para facilitar a leitura, passo alguns dos personagens que precisam ser atentamente observados para não se perder na narrativa. São eles: Tchen, um terrorista, sempre pronto a morrer pela causa; Katow, experiente revolucionário e um dos comandantes dos comunistas; Kyo e o seu pai Gisors, este um intelectual e professor de arte e aquele, junto com Katow, um dos chefes comunistas; Clappique, um divertido boêmio e traficante, especialmente de armas e de ópio; e mais Ferral, o representante de uma companhia francesa e os seus interesses econômicos.

A narrativa começa no dia 21 de março de 1927, meia-noite e meia, e se estende até meados de abril, quando os personagens diretamente envolvidos com a revolução já estão todos mortos. Essa narrativa ocupa seis capítulos e, um sétimo, se volta para Paris, já em julho, e para Kobe. Em Paris se encontra Ferral, negociando em nome da companhia e em Kobe, Gisors pai e May, sobreviventes aos acontecimentos. São 301 páginas com letras, quase de necessidade de lupa. É, com certeza, um romance de muita ação e profundamente entremeado de reflexões filosóficas sobre A condição humana: sentido da vida, valores éticos, perspectivas diante da morte, o abraçar e se dedicar cegamente a causas, obediência, lealdade, rebelião diante de injustiças e por aí vai.

Como se trata de um romance bem datado e com muitos dados históricos já distantes, eu recorro ao livro de mini biografias que acompanha a  coleção para, primeiramente, falar um pouco de Malraux, do seu gosto pelos temas do oriente, para onde viajou já em 1923, para observar de perto os acontecimentos que ali se desenvolveram e, em segundo, para dar a contextualização em que o livro foi escrito. Primeiro sobre a contextualização: 

"A maior parte do continente asiático achava-se então sob controle econômico e político de potências europeias. E em certos países começavam a tomar impulso os primeiros movimentos de revolta contra as metrópoles do Ocidente. Tal era o caso da China e da Indochina [...]. Revolucionários chineses de todas as tendências reuniram-se sob a bandeira do Kuomintang, partido nacionalista, dirigido por Chiang Kai-shek [...]. Em 1927, uma reviravolta nas alianças políticas leva a China a um banho de sangue: Chiang Kai-shek dá um golpe de Estado e inicia o massacre de seus ex-aliados, comunistas".

E, agora sobre o tema e as reflexões: "A tragédia profunda do homem encontraria novamente expressão política em A condição humana (1933).  O cenário é a China. O tema, a revolução fracassada de Xangai, à qual o escritor assistira em 1927. Por essa razão, nenhuma outra obra de Malraux é tão impregnada de realidade e vida.

Mais uma vez vem à tona a contradição insolúvel da revolução, levada a cabo simultaneamente pela burguesia nacionalista e pelos sindicatos comunistas. A fragilidade dessa aliança é ressentida, em toda a sua extensão, pelas personagens de Malraux, que, no entanto, obedecem às ordens da Internacional stalinista e caminham como bonecos até a morte. (Sobre essa Internacional, a terceira, segue o link: 

O drama dos revolucionários está no papel que representam: meras peças de um jogo político sobre o qual não possuem o direito de opinar. Apenas o fim importa. O homem não tem controle sobre o seu destino, não tem outra alternativa senão procurar realizar-se e encontrar a si mesmo dentro dos limites traçados pelos outros.

Assim, a personagem Kyo Gisors faz da revolução sua própria vida, e a ela cede corpo e alma. Tchen é um fanático, feito terrorista por um mecanismo de compensação, para lavar no sangue a sua própria humilhação e a das massas miseráveis. Hemmelrich é levado por sua impotência a participar da ação: para ele, o combate final aparece como uma porta aberta em direção à liberdade. E Ferral é o capitalista poderoso contra o qual virá chocar-se a revolução.

Seja qual for o campo em que combatem, as personagens são pessoas reais, descritas tal como o autor as conhecera na China. A coragem, mas também o medo, a revolta e a traição constituem sempre hipóteses possíveis para cada uma delas. Independentemente da capacidade e da fidelidade de um indivíduo, ele pode falhar e perder o caminho.

Não há nada mais elevado e ao mesmo tempo mais baixo que o homem, parece dizer Malraux em sua obra. Tudo se encontra em todos os homens: as grandezas e as misérias. Esse o sentido da 'condição humana'. Cada personagem se acha mergulhada na lama de sua condição: por mais que procure, não pode escapar a esse destino.

Verdadeiro centro da obra de Malraux, A condição humana nada mais é que uma etapa da busca apaixonada da liberdade, que parece constituir a razão de ser do escritor. Recebido com entusiasmo pelo público, aplaudido pela crítica e laureado com o Prêmio Goncourt, o livro projeta na cena literária internacional o nome de seu autor.

A França descobre, estupefata e ao mesmo tempo um tanto constrangida, um intelectual de 32 anos que pretende derrubar a ordem estabelecida. Durante alguns meses, Malraux é o herói festejado por toda a imprensa, da extrema-direita à extrema-esquerda. Independentemente das posições políticas, todos reconhecem seu prodigioso talento".

E, para situar historicamente. Em 1946 Mao Tsé-Tung inicia uma nova fase de combates e em 1949, na qualidade de vencedor, proclama a República Popular da China, sob o comando comunista. Chiang Kai-shek ainda fica no poder, mas em Taiwan. Coisas da geopolítica. Fundamental para se compreender a China de nossos dias.