Este post tem por objetivo apresentar o prefácio da edição brasileira do livro Juventude sem Deus, do escritor croata (Na época a Croácia pertencia ao Império austro-húngaro), Ödön von Horváth. A sua publicação original data do ano de 1938. O livro apresenta os dramas de consciência de um jovem professor alemão diante da imposição de valores apregoados pelo Terceiro Reich e os valores humanos dos quais ele era portador. Apesar dos êxitos imediatos do livro, ele, na época, não teve uma tradução para a língua portuguesa. O livro tem agora, em 2024 a sua primeira publicação no Brasil. As razões para isso parecem óbvias: a virulência com que os ideais fascistas estão ressurgindo. Deixo a resenha do livro:
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/11/juventude-sem-deus-odon-von-horwath-1938.html
O prefácio da edição brasileira, escrito pela professora Michele Gialdroni, graduada em literatura alemã e com especial foco na literatura do entre guerras, é algo precioso. Uma contextualização da época, fato que nos permite estabelecer paralelos.
Juventude sem Deus. Ödön von Horwáth. Todavia. 2024. Tradução: Sérgio Tellaroli.A professora retrata o jovem dramaturgo aos 36 anos, agora radicado na Alemanha nazista. É bem sucedido em sua carreira mas sofre os seus próprios dramas de consciência. O regime não permite o exercício da liberdade em expressar a sua arte e também sente que não tem mais público que aprecie as suas manifestações. Radicaliza em não condescender com o sistema. Os seus próprios dramas, vividos entre a adesão e o manifestar seus conflitos interiores, seus dramas de consciência o levaram ao livro Juventude sem Deus. Sobre o livro, assim se expressa a um amigo afirmando que "a grande novidade da obra era esta: ter dado voz ao ser humano fascista, ou melhor, se corrige, 'ao ser humano na época do fascismo"'(página 10). Aderir ao sistema seria ajudar a criar monstros.
Qual seria então a missão do professor diante dessa realidade? A mesma que o escritor dá à sua literatura: "O sofrimento do narrador, o professor, que, embora movido por uma incontestável moralidade e por sentimentos de solidariedade humana, não consegue tomar posição, não consegue mudar, é também o sofrimento de Horváth. Quando o professor conseguir sair do isolamento de sua condição de espectador, será outro vivisseccionador da realidade a morrer: o estudante insuspeito, aquele com olhos de peixe, o garoto que, como o próprio professor, quer ver a realidade até o momento derradeiro, que transforma a curiosidade e o desejo de conhecimento em desprezo e sadismo. Essa dicotomia entre realidade e verdade é bem presente nas obras de Horváth. Os fanáticos do realismo são os carrascos, os algozes, aqueles que afirmam que nada pode ser feito, porque as coisas são como são" (páginas 10-11). Semear a utopia. Um não ao conformismo.
O Juventude sem Deus começa altamente provocativo. Já no primeiro capítulo, sob o título Os negros, encontramos o professor a corrigir redações. O aluno N escrevera: "Todos os negros são traiçoeiros, covardes e vagabundos". "Generalização absurda" corrige o professor. Foi o suficiente para lhe causar problemas. Mas ele se afirma diante dessa realidade. A sua consciência triunfa sobre a adesão.
A prefaciadora em sua análise da obra vê no livro um manifesto contra todas as sociedade "liberticidas e militarizadas" que tiveram ampla adesão "pelo oportunismo das velhas gerações de diretores de escola, grandes industriais e pequenos comerciantes, mas também o entusiasmo das novas gerações"(página 11). E num passo magnífico ela apresenta as denúncias contra uma escola autoritária, que aparecem na literatura, já antes das grandes guerras. Me permitam uma transcrição um pouco mais longa. São indicações preciosas e necessárias:
"Na literatura alemã das primeiras décadas do século XX, iniciando-se com O anjo azul, de Heinrich Mann, de 1905, o professor tinha sido representado por antonomásia - pensemos também no oprimente convento de Maulbronn em Unterm Rad [Debaixo de rodas], de Hermann Hesse, ou no claustrofóbico colégio militar de O jovem Törless, de Robert Musil, ambos publicados em 1906" (Páginas 11-12). E agora as reflexões e as decisões a serem tomadas
"Aquele que era o opressor, o representante do sistema que deve educar seus alunos à obediência, torna-se agora nas mãos de Horváth, com todas as incertezas, o alter ego do escritor (e figura de identificação do leitor), que se depara com uma geração de jovens cegados pela fúria coletivista. Uma sociedade que exclui definitivamente aqueles que não são considerados parte integrante do corpo compacto da nação, por nascimento, por escolha, às vezes por necessidade. Ou seja, não só judeus, negros e ciganos, não só comunistas e sindicalistas, mas também pessoas com deficiência e doentes, também os míseros trabalhadores que em Juventude sem Deus vivem nos velhos casebres acinzentados do povoado, os moleques inconformados que se escondem nos bosques e roubam para sobreviver. Enfim, uma sociedade que não tolera os professores que se rebelam contra o regime e têm de escolher a via do exílio para poder viver uma vida digna, para redimir-se das maldades justo ali onde mais cruelmente foram cometidas, no contexto colonial" (Página 12).
Depois a prefaciadora se detém em dados mais pessoais da biografia do escritor, um permanente exilado em seus países de origem. Teve uma morte prematura trágica, quando tencionava vir morar na Califórnia, para se aproximar de Hollywood. Do trágico acidente que ceifara a sua vida (a queda do galho de uma árvore em um temporal, na proximidade dos Champs Élysée) sobraram duas estrofes de um poema seu:
"E as pessoas dirão // Em longínquos dias azuis // Quando finalmente se distinguirá // O falso do verdadeiro // Que aquilo que é falso ruirá // Embora hoje reine // E o verdadeiro triunfará // Embora hoje deva morrer" (Página 15).
Uma bela oportunidade para profundas e reflexões e atitudes a tomar frente a nova onda autoritária, fascista que nos assola. E, para aprofundar as reflexões sobre um fascismo latente e iminente, vejamos algumas constatações de Humberto Eco, uma radiografia:
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/03/fascismo-eterno-umberto-eco.html
E a terrível e marcante frase: "Aderir ao sistema seria ajudar a criar monstros". Também estamos permanentemente diante de escolhas.