sexta-feira, 22 de novembro de 2024

JUVENTUDE SEM DEUS. Ödön von Horwáth. 1938.

Antes de mais nada, devo dizer que o romance Juventude sem Deus, do croata (então Império Austro-Húngaro) Ödön von Horwáth (1901-1938), reflete os dramas de consciência de um professor alemão, diante da ascensão do regime nazifascista na Alemanha de então. Sob este regime, o professor perde completamente a autonomia em sala de aula e passa a ser uma engrenagem da máquina publicitária na transmissão dos valores pregados pelo sistema. É a chamada "Guerra Total" em que todos os instrumentos culturais são colocados a serviço do regime. Ao professor caberia a adaptação, ou a resistência. Um horror!

Juventude sem Deus. Ödön von Horwath. Todavia 2024. Tradução: Sérgio Tellaroli.

Horwáth é um jovem escritor, também envolvido com teatro e cinema, morto precocemente em Paris, nas proximidades da Champs-Élysées, atingido pelo galho de uma árvore, caído numa tempestade. Ele encontrou enormes dificuldades em viver livremente na conturbada Europa desse período. Sendo filho de diplomatas, acompanhou os pais por vários países, encontrando dificuldades de se estabelecer em todos eles. A sua morte ocorreu quando, em Paris, estava negociando os direitos autorais de Juventude sem Deus para o cinema.  Mas vamos ao livro.

Juventude sem Deus, por óbvio, não pode ser publicado na Alemanha, sob o Terceiro Reich. Foi então publicado na Holanda em 1938 e imediatamente foi traduzido para várias línguas. Mas não para o português. Assim o livro ficou praticamente desconhecido no Brasil. O personagem do romance é um professor e o tema é a relação desse professor com os valores que a escola deveria transmitir aos alunos, como engrenagem da máquina publicitária formadora de consciências sob o domínio do Reich. Como esses valores se contrapõem aos seus, eles geram os dramas de consciência. Mas, vamos a orelha do livro para uma contextualização:

"Todos os negros são traiçoeiros, covardes e vagabundos." Ao ler essa frase na redação de um aluno, o professor reage: "Os negros também são seres humanos." É esse o ponto de partida desta pequena joia da literatura em língua alemã, escrita em 1937, em plena vigência do Terceiro Reich.

O livro acompanha a crise de consciência desse professor, em meio ao ambiente sufocante do regime racista e colonialista imposto pelo governo de Hitler. A atitude do professor em defesa dos negros soa revoltante para a casta que apoia o regime: burocratas acomodados, como o diretor da escola, ou industriais e comerciantes, como os pais de alguns alunos. Sem falar nos próprios adolescentes, entusiasmados com o patriotismo que a política oficial lhes impinge e cegos para a desumanização a que são submetidos diariamente (O mal se banaliza).

Mais adiante, o professor vai com a turma para um acampamento destinado à realização de treinos militares. E ali se envolve num episódio trágico que lhe custará o emprego, já em risco depois que ousara confrontar as afirmações racistas de seu aluno.

A "Guerra total", o rádio e o cinema como instrumentos de propaganda, os livros proibidos, a moralidade pública, a educação para a guerra e a 'regeneração' da juventude - todos esses elementos mobilizados na obra reconstroem o clima político do nacional-socialismo, cristalizado na impotência de um protagonista em crise e numa linguagem de simplicidade desconcertante.

Proibido na Alemanha, Juventude sem Deus foi publicado na Holanda, em 1938, ano da morte precoce do autor - Horwáth morreu após a queda de um galho em sua cabeça, em Paris, em plena ascensão como escritor e dramaturgo.

Recebido com entusiasmo por Hermann Hesse, Thomas Mann e Joseph Roth, admirado por Natalia Ginsburg e Peter Handke, adaptado para o teatro e o cinema, Juventude sem Deus é um clássico ainda pouco conhecido no Brasil - e sua publicação se torna mais premente numa época em que os fascismos insistem em mostrar que não morreram".

Este último parágrafo nos leva à atualidade do livro. Nos leva a uma análise do quadro educacional do Brasil, neste momento tão delicado da vida nacional. A serpente do fascismo está mais do que visível em seu ovo. E este ovo está sendo cuidadosamente chocado. Os controles sobre a escola praticamente não tem precedentes (até o macarthismo foi fichinha), especialmente após o golpe de 2016. Temos os movimentos do Escola sem Partido, do Novo Ensino Médio (escola dual), da censura a livros (O avesso da pele, de Jeferson Tenório), do reforçar dos elementos de vigilância sobre os professores, da militarização e privatização das escolas, da negação da diversidade cultural e da uniformização dos conteúdos, dos controles desses conteúdos pela avaliação padronizada e pelo massivo uso de plataformas de aulas prontas, sem a autoria (donde deriva autoridade) do professor e, acima de tudo, pela sua desvalorização como um profissional, reduzindo-o a um burocrata que meramente aplica aulas. E ai dele se não o fizer! Os meios de controle hoje estão muito mais sofisticados, praticamente ocorrem em tempo real.

Daí a atualidade do livro e a premência de sua publicação, mesmo que, mais de oitenta anos após a sua publicação original. A história se repete, agora como farsa. Além desse drama de consciência do professor, o romance também possui um valor literário extraordinário, especialmente pela sua força narrativa e linguagem envolvente e precisa. Tudo é narrado em pequenos capítulos de duas a três páginas (44 no total, abrangendo 173 paginas).

Um suspense acompanha a narrativa, especialmente após o acampamento para a realização de treinamentos militares. Vejam bem, treinamentos militares. Creio que a militarização de nossas escolas ainda não chegou a tanto. E, algo fantástico e maravilhoso. A dialética (A denúncia precede o anúncio - nos lembra Paulo Freire). Alguns alunos, motivados pelo exemplo do professor e inconformados com os valores desumanizadores, formam um clube de leituras onde se examina, não o real, pregado pelo sistema, mas o como este real deveria ser, para não ser o elemento desumanizador da sociedade. Também vale muito o precioso prefácio de contextualização da época, escrito pela professora Michele Gialdroni, especialista em literatura alemã e com foco voltado para o período entre guerras. Este prefácio merecerá um post especial. A tradução é de Sérgio Tellaroli e a editora é a Todavia. A publicação é do ano de 2024.

E ainda, um ponto alto do livro a destacar: A ligação existente entre o colonialismo e o racismo. A justificativa da existência de colônias necessariamente leva ao racismo. É uma cultura superior dominando uma inferior. Daí a hierarquia das raças e a ideologia que justifica o colonialismo. Levar o progresso aos continentes, povos e raças atrasados. Observem a linguagem. Para este tema é fundamental o livro de Frantz Fanon, Os condenados da terra. Deixo a resenha:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/03/os-condenados-da-terra-frantz-fanon.html



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