A curiosidade maior para ler Frantz Fanon me foi instigada ou provocada pela obra de Paulo Freire. Também por obras que abordam o colonialismo e o racismo. O gosto pelas fontes me levou à compra e leitura do livro. Impressionante. A leitura me levou a uma viagem no tempo, em retrospectiva. Me levou a meus anos de formação. Isso me possibilitou uma recontextualização dos principais fatos históricos e me mostrou o quanto eu estava afastado da realidade e dos debates acadêmicos. Foi na década de 1960 que ocorreu a minha formação escolar, ensino ginasial, uma mistura de clássico e científico e a faculdade de filosofia. Tudo isso, nos seminários de Gravataí e Viamão. Terminei a filosofia no enigmático ano de 1968. Para mim, nesse tempo era inimaginável a compra de algum livro. Muitos, também não chegavam. Afinal, entrávamos no segundo tempo da ditadura militar, os anos de chumbo. Violência em estado puro.
Os condenados da Terra. Frantz Fanon. Zahar, 2022.Bem, mas vamos falar do livro. Ele é uma colocação do colonialismo no contexto mundial. É um clamor pela descolonização total. Colonialismo é violência. É o estabelecimento de uma hierarquização absoluta entre os homens, entre os colonizadores e os colonizados, estes como as vítimas dos colonizadores. Ao longo do humanismo e do iluminismo, movimento desencadeado na Europa, muito se falou da dignidade do ser humano, de direitos, de liberdade, de igualdade e até de relações fraternas. O colonialismo e o seu agregado, o racismo, são a negação de tudo isso, de tudo o que a Europa apresentava para o mundo como sendo a Modernidade. Para dar legitimidade ao colonizador, os colonizados precisariam ser inferiorizados. O racismo foi a grande arma dessa afirmação de inferioridade.
O livro de Frantz Fanon fala de descolonização, de descolonização total. O pano de fundo da obra é a guerra da independência da Argélia, uma das guerras mais cruéis da história da humanidade (1954 -. 1962). Novos experimentos de tortura foram ali testados. O livro foi lançado em 1961 e foi prefaciado por ninguém mais, ninguém menos do que Jean Paul Sartre. E, convenhamos, Sartre caprichou. Frantz Fanon, com este livro, também fez a sua despedida desse mundo. Morreu neste mesmo ano de 1961, aos 36 anos, vítima, não de seu envolvimento na guerra, como participante ativo da Frente de Libertação Nacional, mas da luta contra a leucemia. É uma obra explicitamente revolucionária. Vou apresentar a estrutura básica do livro, primeiramente.
São cinco capítulos: 1. Sobre a violência. Sobre a violência no contexto internacional; 2. Grandeza e fraquezas da espontaneidade; 3. Desventuras da consciência nacional; 4. Sobre a cultura nacional. Fundamentos recíprocos da cultura nacional e das lutas de libertação; 5. Guerra colonial e distúrbios mentais (distúrbios de quatro origens, com casos de praticantes da violência e de sofredores da mesma). Fanon era psiquiatra. Sobre a impulsividade criminosa do norte-africano na guerra de libertação nacional (as teorias da escola de psiquiatria de Argel). O livro termina com um texto de conclusão. Apenas um pequeno complemento. A violência é implícita ao colonialismo. A espontaneidade é uma referência à organização dos movimentos de libertação. A questão da consciência nacional é uma teoria insuficiente na libertação e humanização do colonizado. Tudo analisado com muita propriedade e profundidade. O mais impactante é a exposição de sua prática profissional no atendimento às vítimas, tanto dos colonizadores, quanto dos colonizados, estes geralmente vítimas de tortura.
Eu tenho em mãos a edição da Zahar do ano de 2022. É uma edição primorosa. Ela mantém o prefácio original de Sartre, da primeira edição francesa. Tem uma introdução à edição norte-americana de 2021, assinada pelo ativista dos direitos humanos Cornel West. Estes textos são apresentados como anexos. Tem também uma notável introdução, sob o título A linguagem da revolução: Ler Frantz Fanon desde o Brasil, assinado por Thula Rafaela de Oliveira Pires, Marcos Queirós e Wanderson Flor do Nascimento. Deixo um pequeno trecho do primeiro parágrafo do prefácio de Sartre:
"Não faz muito tempo, a Terra contava com 2 bilhões de habitantes, dos quais 500 milhões de homens e 1,5 bilhão de nativos. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros tomavam-no emprestado. Entre uns e outros, serviam de intermediários reizinhos vendidos, donos de feudos e uma falsa burguesia inteiramente forjada. Nas colônias, a verdade se mostrava nua e crua; as metrópoles preferiam-na vestida; o nativo devia venerá-las. Como se veneram as mães, de certo modo. A elite europeia empenhou-se em fabricar um indigenato de elite; selecionava adolescentes, gravava-lhes na testa, com ferro em brasa, os princípios da cultura ocidental...". Já na apresentação brasileira dessa edição lemos o que segue:
"Frantz Fanon insistiu na ideia de que cada geração deveria descobrir sua missão. Cumpri-la ou traí-la. Na sua intensa, breve e extraordinária vida, fez da destruição do colonialismo tarefa primordial, juntando-se ao destino da maioria do mundo que buscava romper com os sustentáculos da dominação. Dedicou textos, lágrimas, suor, discursos, tratamentos clínicos, armas, livros e a própria saúde a esse fim. Os condenados da terra, publicado poucos dias antes de sua morte, em 1961, é a síntese do conhecimento acumulado de alguém que viveu pela e para a revolução".
Vamos, ainda no ensejo de despertar para a leitura, a apresentações do livro, como a da contracapa. Nela lemos: "Ao analisar a situação colonial, Frantz Fanon tensiona política, sociedade e indivíduo, demonstrando as estratégias e os efeitos do poder dominante. O psiquiatra e revolucionário martinicano desmonta a lógica imperialista europeia - branca, brutal e racista - e propõe uma "descolonização do ser". Só assim é possível criar um mundo realmente humano, onde a massa deserdada de homens e mulheres dos países colonizados e pobres - os condenados da terra - sejam os inventores de sua própria vida.
Publicado em 1961, poucos dias antes da morte prematura do autor, Os condenados da terra é um tratado magistral sobre as relações entre colonialismo, racismo, insubmissão e trauma psicológico". Já nas orelhas do livro temos as seguintes informações:
"Escrito com urgência de quem tem pouco tempo de vida, Os condenados da terra é a suma do pensamento de Frantz Fanon e também a mensagem final de um dos maiores intelectuais revolucionários do século XX.
Em meio à Guerra de Independência Argelina, da qual participou como militante da Frente de Libertação Nacional, Fanon trata do conflito, mas estende seu olhar para a luta anti-imperialista na África negra e nos países colonizados de outros continentes. O resultado da opressão é sempre o mesmo: raiva, dor e loucura. Essa espécie de 'santíssima trindade' negativa é a herança do colonizado; é a isso que ele é reduzido pelo colonizador.
Não por acaso, Fanon inicia o livro com uma profunda discussão sobre violência - pois o colonialismo ' é a violência em estado puro, e só se curvará diante de uma violência maior' - e conclui com as desordens mentais decorrentes da guerra colonial. Em seu espectro amplo, a violência está tanto na dimensão física quanto em sua potência simbólica, que rege a linguagem e o arbítrio da colonização.
Com clareza e contundência, Fanon radiografa as condições e os efeitos sociais, políticos e culturais do imperialismo colonizador e apresenta os caminhos possíveis para a libertação dos povos dominados - os condenados da terra -, que é sobretudo uma libertação do indivíduo, uma 'descolonização do ser'. Para ele, é preciso 'desenvolver um pensamento novo, tentar criar um homem novo', um ser consciente de sua humanidade, livre de toda forma de colonização - social, política, mental e espiritual.
Mais que uma análise teórica do colonialismo, Os condenados da terra é um manual para a revolução, um programa de estratégia política em prol do humanismo radical defendido por Frantz Fanon. Escrito em seis meses, com o autor doente e desenganado, o livro custou a ser compreendido em sua real dimensão e importância. Ponto culminante de uma obra incontornável abreviada por uma vida curta, hoje é considerado um clássico absoluto, referência maior para o pensamento decolonial e para a luta antirracista e antimanicomial em todo mundo".
Temos ainda uma minibiografia: Frantz Omar Fanon foi médico, filósofo político e militante revolucionário. Nascido em Martinica em 1925, formou-se em psiquiatria na França e exerceu a profissão na Argélia, onde se tornou membro da Frente de Libertação Nacional, movimento insurgente pela independência argelina. Morto precocemente em 1961, aos 36 anos, foi um dos mais importantes pensadores e ativistas a tratar das questões antirracistas e anticoloniais, deixando uma obra breve e fundamental, em que se destacam livros como Pele negra, máscaras brancas e Por uma revolução africana, este último publicado pela Zahar".
É.... A tal da cultura ocidental. Capitalista e cristã. Um processo de dominação. Como não lembrar de Boaventura de Sousa Santos, O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do Sul. Para situar a violência é altamente recomendável ver o filme de Gillo Pontecorvo, A Batalha de Argel.
Quão necessária é manter Fanon....
ResponderExcluirObrigado pelo texto
Livro absolutamente imprescindível. O colonialismo é uma justificativa para o racismo. Agradeço a sua gentil manifestação.
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