terça-feira, 28 de março de 2023

Como funciona o fascismo. A política do "NÓS" e "ELES". Jason Stanley.

A leitura dos livros Como enfrentar um ditador - a luta pelo nosso futuro, da Nobel da Paz de 2021, Maria Ressa e A máquina do ódio - notas de uma repórter sobre fake news e violência digital, de Patrícia Campos Mello e uma série de estudos sobre o fascismo que estamos desenvolvendo em um círculo de leituras, me levou à leitura de Como funciona o fascismo - a política do "NÓS" e "ELES", do professor da Universidade de Yale, Jason Stanley. Trata-se de um livro referência para os estudos sobre este nebuloso tema. O livro teve a sua primeira edição em 2018. A edição que tenho em mãos é da L&PM, do ano de 2022. 8ª edição.

Como funciona o fascismo. A política do "NÓS" e "ELES".  Jason Stanley. L&PM.

Na introdução, o autor apresenta o seu envolvimento com o tema. Seus avós foram fugitivos da Alemanha nazista. Sua avó escreveu um livro em que relata as desventuras dessa fuga - para a vida - em The Unforgotten. O autor tem o seu encontro com o tema, um encontro mais próximo, com a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos no ano de 2016. O livro foi escrito num misto de dor e advertência, possivelmente mais advertência do que dor. É que nos dias de hoje, as práticas fascistas estão sendo naturalizadas por inúmeros governantes, mundo afora. Hannah Arendt tem muita razão quando escreveu sobre a banalidade do mal. Ele integra as prática burocráticas do cotidiano.

O fato que mais me chamou a atenção no decorrer da leitura é o quanto o fascismo está impregnado no cotidiano das pessoas, o quanto ele está embutido nas mais diferentes instituições em que estamos envolvidos e o quanto, por inúmeras vezes, ele está revestido com roupagens nobres e virtuosas, se apresentando como princípios de moralidade a serem assimilados e seguidos. As instituições envolvidas no processo de socialização contém inúmeros germens que tendem à aderência a tão despropositadas ideias, movedoras de comportamentos. O livro de Stanley nos coloca diante do espelho que nos lança a um profundo olhar sobre nós mesmos.

Depois da apresentação, que também nos remete ao significado próprio do termo fascismo, ligando-o às ideias e práticas do ditador italiano Benito Mussolini e a sua ascensão ao governo italiano ao longo da década de 1920, ideias que logo tiveram inúmeros seguidores e aprofundamentos em seus terríveis e temíveis métodos em inúmeros outros países. O livro nos dá a possibilidade de ver detalhadamente a radiografia de seu funcionamento, com a apresentação de dez conceitos onipresentes em todos os esboços de suas práticas. Eis os dez conceitos chave, as suas ideias indutoras e condutoras:

1. O passado mítico; 2. Propaganda; 3. Anti-intelectualismo; 4. Irrealidade; 5. Hierarquia; 6. Vitimização; 7. Lei e ordem; 8. Ansiedade sexual; 9. Sodoma e Gomorra; 10. Arbeit macht frei. Vou tentar apresentar um pequeno esboço de cada um desses conceitos. Então vamos, conceito por conceito:

1. O passado mítico está profundamente ligado ao nacionalismo, aos feitos históricos dos heróis fundadores. Essa concepção remete ao saudosismo, ao fazer de novo, ao culto aos valores e heróis do passado. América First ou o lema de Trump - Make America Great Again. Este passado glorioso exige a necessária "pureza", que fundamentou a "solução final" do nazismo e a política anti -imigrantes, mundo afora, nos dias de hoje. Remete ainda ao patriarcalismo, ao Pater famílias, ao pai provedor e ao Pai condutor - Führer - de todas as famílias, da grande Nação. 

2. A propaganda é a grande criadora de verdades. É ela a criadora de metas virtuosas. É ela a criadora de mitos e de demônios. Por ela se cria o "NÓS" e o "ELES" e os coloca em confronto. A luta do bem contra o mal. Por ela são criados os corruptos e os incorruptíveis. Será ela o grande instrumento que, pela emoção e não pela razão, impulsionará as massas a seguirem o seu Führer. A repetição da verdade produzida à exaustão será o grande instrumento para o convencimento. 

3. O anti-intelectualismo será a grande marca da desvalorização da educação e da cultura. É o ódio a todo o ato criativo e crítico. A adesão a valores se dará pela emoção e ao culto da tradição e jamais pela razão. Mais uma vez, o culto saudosista aos valores do passado. A Universidade precisa ser contida, assim como os seus professores. Lá se promovem estudos de raça e gênero, que podem quebrar as estruturas do patriarcalismo e da pureza racial. Além disso, ali se desenvolvem as subversivas teorias do "marxismo cultural". A "verdadeira" universidade deveria se dedicar a desenvolver habilidades, deveria estar voltada para a vontade e não para o intelecto, para o desenvolvimento de slogans, guias das massas. Por ela deveriam ser exaltados os valores cívico-patrióticos do primeiro item. Aqui eu devo intervir para sugerir uma leitura, um dos livros mais marcantes que eu já li: Antiintelectualismo nos Estados Unidos, de Richard Hofstadter, uma edição da Paz e Terra de 1967.

4. A irrealidade é a criação da verdade desejada. Ela será criada pela destruição ou controle dos centros de informação e pela afirmação da voz e da verdade desejada. Medo, ódio e intimidação serão práticas que ajudarão no alcance desse intento. Seria o fim da interrogação e da argumentação. A irrealidade se afirmará com as famosas "teorias da conspiração". Stanley faz uma impressionante análise das influências do livro Os protocolos dos sábios de Sião na afirmação das teorias do antijudaísmo. Apenas o inventado será tido como verdadeiro, como referência. Força para o emocional, para o mítico e não para o racional, intelectual e científico.

5. A hierarquia é para o fascista um valor supremo. Para ele a igualdade é um atentado contra a natureza. Seria igualar o que Deus criou desigual (Vejam aí também o papel da religião). Pela hierarquia é que criamos as separações, as distinções, as desigualdades. Ela está onipresente. É o grande instrumento do exercício do poder. Me permitam uma nova intervenção. Em minhas aulas sempre usei quatro palavras quando eu falava desses temas, como alienação, ideologia, dominação... Ei-las: divisão, hierarquia, naturalização e universalização. Um exemplo. Família. Divisão. Pai, mãe, filhos. Hierarquia. O Pater, o pai provedor, a mãe...., os filhos.... (nenhuma igualdade). Naturalização. É um princípio da própria natureza. É uma verdade natural, que não admite contestação. Universalização. Sempre foi e sempre será assim. É uma verdade atemporal, universal. Mais uma intervenção. A etimologia da palavra hierarquia. Do grego: hieros e arquia. Enquanto hieros nos remete ao sagrado, arquia nos remete a poder, a governo, à ordem. Um poder, uma ordem sagrada.

6. Vitimização. Os brancos e os cristãos representam a civilização. São os portadores do mérito. Eles constantemente tem que ceder na ordem hierárquica, ao "eles", não brancos e não cristãos, ao outro, ao diferente. Tem que ceder direitos, tem que pagar mais impostos, para que "outros" a eles sejam igualados. Vítimas do outro, do desigual, do estrangeiro, do imigrante, do refugiado, do inadaptado e inadaptável, que tantos sofrimentos causam aos que estão no topo da hierarquia, da sagrada ordem. 

7. Lei e ordem. É a construção de um discurso que divide entre os que cumprem e os que não cumprem a lei e a ordem. E... morte e reclusão aos que não a cumprem, mesmo quando todas as oportunidades lhes sejam negadas, mesmo que haja leis que necessariamente levam à exclusão social propositada, como o foi, a abolição da escravidão no Brasil. É um discurso que confere poder e que leva às politicas de encarceramento, em vez de políticas sociais inclusivas e afirmativas. A lei e a ordem também geram as pré-condenações ao "Eles", os indesejados e estigmatizados como criminosos.

8. Ansiedade sexual. A fragilidade sexual seria um atentado ao PAI da Nação, portanto, ao patriarcalismo. A força sexual, o mito do, me permitam, imbrochável, é uma ideia força. É o Pai provedor, o Pai que garante a pureza na sucessão da raça, que não fraqueja, que, em suma, permite a continuidade da pureza das raízes fundadoras e que deram identidade à Nação. Que livram os "puros" do estupro dos 'impuros", dos miscigenadores de raças.

9. Sodoma e Gomorra. É nas cidades, no cosmopolitismo, que reside a perversão. É no campo que reside a pureza primitiva e fundadora, do respeito às hierarquias e dos valores fundacionais. É na cidade que vivem os parasitas sustentados pelo campo. É no campo que moram as pessoas auto suficientes, que não precisam, que não dependem de subvenções do Estado. É no campo que vive a família tradicional, em que os papeis são bem definidos. Enquanto que a cidade é a fonte e o local das contaminações, perversões e digressões. É no campo que, com o esforço de trabalho, se provê a auto suficiência, a não dependência.

10. Arbeit macht frei. O trabalho duro encerra em si todas as virtudes. É por ele que você se tornará auto suficiente, responsável e cumpridor da lei e da ordem. Pelo trabalho duro, inclusive, será possível a própria regeneração da pessoa, como indicava a placa na entrada dos campos de concentração: Arbeit macht frei. Será também o trabalho importante divisor entre o "Nós" e o "Eles". Os "trabalhadores" e os "vagabundos", os parasitas, os dependentes. O trabalho leva à riqueza, e esta também é apresentada como um grande valor espiritual. Hitler pregava a organização do Estado, à semelhança da organização da empresa, sempre sob a direção de um líder. O trabalhador que trabalha duro também não necessita de sindicatos, instrumentos da massa e não do indivíduo.

No epílogo, Stanley nos lança uma advertência sobre os avanços do fascismo em nosso tempo presente. O maior perigo reside no fato da normalização. Ele já não nos choca, ele já não assusta. Convivemos com ele e a ele fazemos concessões diárias, sempre com justificativas, que sempre são encontradas com facilidade. O mal se torna normal, se torna banal. Não precisamos ser protagonistas para ajudar o fascismo a prosperar, basta não combatê-lo, ao nos adaptar aos seus trâmites burocráticos e não considerá-lo tão perverso como, de fato, ele o é. E o quanto ele está próximo de nós, e, inclusive, introjetado em nós.

"A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la". Adorno. Educação após Auschwitz em Educação e emancipação. Outro interessante estudo sobre o fascismo, de fácil compreensão, por estar didaticamente exposto em tópicos, é o de Umberto Eco, em seu pequeno livro O fascismo eterno. Veja e estabeleça as comparações ou as semelhanças:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/03/fascismo-eterno-umberto-eco.html



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