quinta-feira, 31 de julho de 2014

Temas Eleitorais. 3. Sobre o FMI e o Banco Mundial.

Após a Segunda Guerra, o mundo estava apavorado e temia que todos os horrores desta guerra pudessem se repetir e, ainda com maior intensidade. Diante deste horror, muitos dirigentes mundiais estavam dispostos a criar instituições que efetivamente poderiam acabar com esta situação. Dentro deste cenário foi criada a Organização das Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Na reunião de Bretton Woods - New Hampshire - , em 1944 foram criadas estas duas instituições que teriam por finalidade a construção de uma nova arquitetura econômica que evitasse o surgimento de novas crises e os consequentes desajustes políticos e sociais.

44 países fundaram estas duas instituições e, prontamente agiram no sentido de evitar novos choques e novas quebras.  O Banco Mundial faria os investimentos de longo prazo e estabeleceria os programas de combate à pobreza, especialmente nos países em vias de desenvolvimento. Ao FMI caberia a meta de reduzir as especulações financeiras e a volatilidade dos mercados. Faria os empréstimos necessários aos ajustes de contas, no cotidiano das economias. A sua meta estava mais ligada à estabilização.
As doutrinas neoliberais forma sendo impostas a todos os países em desenvolvimento. Choques de reformas estruturais que aprofundaram a acumulação capitalista.

John Maynard Keynes foi o grande articulador para a criação destas instituições, e, ao final do encontro, estava bastante esperançoso. Com o desenrolar da história, no entanto, aparece o professor Milton Friedman, da universidade de Chicago e o seu Liberdade de escolher, formando os garotos de Chicago. Estes garotos são recrutados entre jovens bolsistas latino americanos, preferencialmente oriundos de boas universidades, como a universidade católica do Chile e a PUC do Rio de Janeiro. Estes garotos serão fervorosos adeptos das ideias neoliberais do mestre.

Muitos destes garotos dirigirão as economias de seus países, assim que a eles retornaram, nos anos 1980 e 1990 e outros ainda, ocuparão os mais altos cargos nas duas poderosas instituições internacionais. Estes, e a crescente financeirização da economia, irão subverter completamente o espírito com o qual estas instituições haviam sido criadas.

Estas instituições, aproveitando o seu poder e força, não no sentido de que cada país membro tivesse direito a um voto, mas no sentido de que os países exercessem a força de acordo com o dinheiro depositado no fundo, obrigaram os países tomadores de empréstimos, a se submeterem a ortodoxia liberal imposta pelos grandes mantenedores destes fundos. Como já vimos, o final dos anos 1970 e a década de 1980, marca a implantação das doutrinas neoliberais nos países centrais da economia capitalista e o seu domínio absoluto mundo afora, já se dará na década de 1990.
Nos tempos de Fernando Henrique Cardoso, dos demo-tucanos, o Banco Mundial cuidava de tudo. Imaginem banco cuidando de educação.

Começa então o famoso período dos empréstimos condicionados. Os países tomadores de empréstimos deveriam aderir ao terrível receituário neoliberal, para receberem os seus financiamentos. Como estavam irremediavelmente condenados pelo seu endividamento, não lhes sobravam alternativas. Os pacotes com as condicionalidades foram sendo aceitos.

Estas condicionalidades se tornaram famosas através do chamado "Consenso de Washington", quando John Williamson o impôs a todos os países da América Latina.. Sobre o Consenso de Washington ainda falaremos em um post separado. O seu programa estava fundamentado num triunvirato doutrinário do qual faziam parte, as privatizações das empresas estatais, a desregulamentação/liberação do comércio e dos serviços financeiros em todo o mundo (globalização) e, ainda, a redução drástica dos gastos públicos, com quase nulos investimentos em saúde e em educação e na efetivação de reformas previdenciárias. Seria necessário fazer superávit primário.

FHC ao longo de seus 8 infindáveis anos de governo recorreu três vezes ao recursos do FMI. Como resultado alcançou as piores metas sociais e econômicas em toda a história deste mercado emergente, como ele costumava designar o Brasil, em vez de chamá-lo de Estado/Nação ou Pátria brasileira.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Temas Eleitorais. 2. O Estado de bem-estar ou a social democracia.

Os primeiros lances de um Estado positivo, de ações positivas em favor das pessoas mais necessitadas, surge dentro da própria ortodoxia liberal. Bentham, um dos mais ferrenhos defensores do livre mercado, já admitia abertamente que o Estado investisse dinheiro público na saúde e na educação. Stuart Mill, pouco tempo depois, será bem mais explícito, ao atribuir ao Estado funções que impliquem numa mais justa distribuição de renda.
Neste livro estão contidos os avanços em favor do cidadão. Uma longa história.

As doutrinas intervencionistas do Estado, de indução econômica, especialmente pela via do planejamento e de ações diretas em favor da cidadania, ganham força no período entre guerras, quando o mundo conhece as piores crises já vividas. Nos Estados Unidos estas políticas ficaram conhecidas como New Deal, ou seja, uma nova distribuição ou divisão da renda. O New Deal está associado ao nome do presidente Franklin Delano Roosevelt.

Na Europa o grande pensador do Estado de bem-estar será John Maynard Keynes, que além de tentar intervenções nas crises, visava também proporcionar alternativas ao socialismo soviético. O pensamento de Keynes é sustentado, em seu nível teórico, por dois pilares: o pleno emprego e a igualdade. O pleno emprego seria conquistado pela regulação da demanda, possível através dos gastos do Estado, como o auxílio desemprego, por exemplo. Os serviços sociais oferecidos pelo Estado passam a ser vistos como direitos inerentes à cidadania e, em contrapartida, como deveres do Estado.

As grandes ações pró cidadania do Estado de bem-estar contemplam programas de geração de emprego, políticas de assistência familiar, projetos habitacionais, sistemas de auxílio financeiro, programas de saúde e investimentos infraestruturais. O Estado de bem-estar social também exercia uma função primordial na articulação das demandas do capital e dos trabalhadores, atuando como mediador e estabelecendo a regulamentação pela via da legislação. Desta sua função surge toda a legislação em favor dos direitos, especialmente nos campos do trabalho e da previdência. Em função desta regulamentação, uma das palavras mais pronunciadas será a palavra desregulamentação, em favor do livre mercado.

A política em favor dos direitos avança em todas as áreas e tomam formas concretas através da legislação, preponderantemente no que se relaciona aos direitos sociais, como o direito à educação, à saúde, à previdência, à moradia, à cultura, ao lazer.... Com a aplicação destas políticas também se registraram grandes avanços nos direitos políticos, pois todas as práticas políticas incentivam uma grande expansão da participação popular. Destaque-se a experiência das audiências públicas e as reuniões sobre o orçamento participativo. O Estado de bem-estar é a antítese do Estado-Mínimo. Ele necessita de grandes estruturas para bem prover os cidadãos em seus direitos.

Uma vez que estas políticas não estão alinhadas com as políticas neoliberais e de seus agentes de execução como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, estes países também buscam caminhos novos, de ruptura com a ortodoxia liberal. Vejam os exemplos mais recentes como os programas de combate a fome e a miséria absoluta, aplicadas no Brasil. O Brasil tem uma longa história de ações intervencionistas.

Em síntese poderíamos dizer o seguinte sobre o que é a essência da social democracia ou do Estado de bem-estar. Se no neoliberalismo o Estado nada deve a ninguém, na social democracia se considera que o cidadão - ao nascer - é portador de direitos e estes direitos do cidadão se constituem nos deveres do Estado.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Temas Eleitorais. 1. O neoliberalismo.

Inicio hoje a série Temas eleitorais, que visam subsidiar e fomentar debates em torno das eleições. Ir além da superfície e do senso comum produzido em torno delas, especialmente pela mídia altamente comprometida e conservadora deste país. Espero assim dar uma contribuição importante ao processo. procurarei abordar os principais temas, ou teorias que permeiam estas eleições. Nem todos os candidatos tem coragem de explicitar as suas posições.
O clássico de Hayek, de 1944, onde estão anunciados os princípios neoliberais.

Vamos começar com o neoliberalismo. O grande marco teórico desta doutrina é marcado pela publicação do livro de Friedrich Hayek, O Caminho da Servidão, em 1944. Por caminho da servidão entende-se qualquer caminho trilhado fora dos parâmetros liberais, do livre mercado, da intervenção do Estado na economia e das políticas do Estado que visam o bem-estar. O mais importante discípulo de Hayek foi o professor de economia da universidade de Chicago, Milton Friedman.

Três anos depois os catequistas deste novo credo econômico se reúnem na Suíça e formam a chamada Mont Pèlerin Society. O Estado de bem-estar e as políticas do New Deal eram os seus alvos de ataque preferidos. Sem obterem êxitos imediatos, eles mantém os seus credos e os seus encontros, esperando uma crise maior do sistema capitalista, para então, iniciarem a sua ofensiva.

O Estado de bem-estar, segundo Hayek e seus seguidores, destruía a liberdade econômica dos cidadãos, bem como a vitalidade da concorrência, principais determinantes da prosperidade de todos. Esta doutrina ficou latente por mais de 20 anos, para se afirmar depois de 1973, com a chegada da grave crise econômica. Neste período se conheceu a simultaneidade da alta da inflação com as baixas taxas de crescimento econômico. Segundo Hayek, o poder dos sindicatos havia corroído as bases da acumulação capitalista e que assim, impediam a possibilidade de novos investimentos, provocando o fenômeno chamado de estaglafação.
O mais importante e influente discípulo de Hayek, foi Milton Friedman, da universidade de Chicago.

Perry Anderson, em texto magnífico, faz um balanço do neoliberalismo. Nele sintetiza os remédios que o neoliberalismo pretendia aplicar diante das crises. "O remédio, então, era claro: manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos com bem-estar, e a restauração da taxa "natural" de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava redução de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as rendas".

Estas doutrinas chegam ao poder no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, com Thatcher (1979), na Inglaterra, com Reagan (1980) nos Estados Unidos e com Kohl (1982), na Alemanha. Estas doutrinas também servirão de fundamento para as políticas econômicas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Em pouco tempo, o mundo inteiro aderiu ao credo neoliberal e os seus mentores tiveram muita pressa em anunciar o fim da história, querendo com isso dizer, que todos indistintamente deveriam aderir. Apenas dinossauros não entenderiam esta nova realidade. O máximo de perfeição a que o mundo poderia chegar, já fora alcançado, com as teorias do livre mercado.
Neste livro está o clássico balanço do neoliberalismo, feito por Perry Anderson.

Na América Latina ele chegou num efeito avalanche. Ao longo dos anos 1990 todos os países se orientaram por seus princípios. No Brasil as políticas mais duras de seu cerne doutrinário foram aplicadas pelo governo FHC. Estabilidade monetária, com os cortes dos investimentos sociais, reformas do Estado, indicando para a mesma direção e, mais, as privatizações que marcaram o seu governo, um dos mais impopulares em nossa história. O Estado nada deve a ninguém é um dos princípios máximos desta doutrina para explicar os baixos investimentos sociais, os altos índices de desemprego e o baixo crescimento ao longo deste governo.

No Brasil, embora o PSDB ostente ser o Partido da Social Democracia ele é o principal partido que professa a doutrina neoliberal.O DEM é o seu partido coadjuvante preferido. Sendo assim, a coligação dos demo tucanos representam os ideais neoliberais.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Zélia Gattai. Códigos de Família.

Li quase todos os livros da Zélia Gattai. Vendo a relação dos livros em promoção pela Companhia das Letras, constava o Códigos de Família, que ainda não lera. Com isso retomei a leitura de Zélia. É uma tarefa extremamente agradável ler esta autora. E ler este livro, em grande parte faz você se sentir, quase íntimo, destas pessoas fabulosas que foram Jorge Amado, Zélia Gattai, Paloma e João Jorge Amado. Códigos de família é a história, ou a memória daquelas pequenas expressões, geralmente carregadas de muito humor, pelas quais a família passou. Normalmente se fundam no inusitado da situação.
Desvelando os pequenos segredos dos motes usados pela família Amado/Gattai.

Zélia já não precisava mais provar para ninguém, a grande memorialista que ela era. Paloma conta as circunstâncias em que este livro foi escrito. Em grande parte ele se deve à insistência de Paloma. Vejam o relato dela: "Papai andava, havia muito, calado e triste, sabíamos que seu organismo estava muito frágil, era preciso um equilíbrio perfeito para que continuasse em frente, o que exigia uma química extremamente bem dosada. Mamãe se ocupava de tudo, não saía de seu lado, queria estar em casa todo o tempo. Como fazer para não cair em depressão também? nesses dois anos, ela escreveu e publicou Città di Roma e Jonas e a sereia. O computador era seu oásis, escrever permitia que tirasse a cabeça de tanta tristeza. E agora, o que fazer? J'éttoufe, poderia dizer, como papai dizia em Paris, abrindo as janelas em pleno inverno. Estava abafada, era necessário abrir mais uma janela".

Paloma ainda conta como surgiu o livro, em sua concepção. Ela falou para a mãe, que dizia estar sem assunto, para escrever um novo livro: "Mãe, io te do una cosa a te, tu me dai una cosa a me"! Decifrando este código, não da família, mas entre a filha e mãe, significa que "fizemos a troca de uma lista por um livro". Paloma listara os principais códigos usados pela família Gattai/Amado e Zélia os transformaria em livro. E que belo livro. Que leitura agradável.
Jorge com João Jorge e Paloma.

Estes esclarecimentos são prestados por Paloma no prefácio do livro. Nele, Paloma ainda explicita alguns códigos que a mãe não se atrevia contar. João Jorge  se encarrega do posfácio, este envolto em muita ternura, especialmente ao revelar um último código, o de que o Dragão da Maldade havia vencido o Santo Guerreiro. Vejam João Jorge falando sobre este código: "Desde que meu pai ficou doente, a cada crise superada, era dito, primeiro por Paloma, depois por todos nós, que são Jorge havia vencido o dragão". E continua.

"Foram anos muito sofridos, esses da doença de meu pai. Ver meu pai sujeito a todo tipo de limitações, não podendo viajar, não podendo comer o que queria, saindo muito pouco, foi terrível. [...] Faz cinco dias que meu pai morreu. Foi tudo muito confuso, no princípio não entendi. Pensei que, numa última batalha, o dragão da maldade tinha vencido o santo guerreiro. São Jorge havia sido derrotado. Só hoje, finalmente, entendi o que aconteceu. Cheguei a solução da adivinha. Não havia dragão nenhum, foi mais uma pilhéria de Carybé. Pintou Pituco (cachorrinho) com as cores do dragão para vir buscar são Jorge para a gaitada com os amigos". E encerra. "Esse código, o de são Jorge e do Dragão, acabou...não é mais utilizado".
Zélia Gattai e Jorge Amado e os códigos de família.

Códigos de família segue o estilo leve e bem humorado da grande memorialista. Um fato pitoresco, ou algo meio inusitado leva ao esclarecimento do ocorrido. O universo dos personagens é o mesmo dos outros livros de Zélia e de Jorge, do seu Navegação de cabotagem. O universo de seus amigos, diga-se de passagem, foram tantos e tão importantes. Paris, o castelo de Dóbris, a casa do rio Vermelho e as viagens mundo afora e os eternos amigos, Carybé, Pablo Picasso, Pablo Neruda e tantos outros, em geral deram origem a esses códigos que estão a sua espera para serem saborosamente decifrados.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

O Professor. Cristóvão Tezza.

Heliseu da Motta e Silva é um professor universitário, que aos setenta anos se prepara, na solidão de seu apartamento, para receber uma homenagem em sua universidade, na qual foi um dedicado professor da disciplina de filologia românica, com especialidade no século XV. Uma espécie de frase em epígrafe, na abertura do livro, nos dá uma ideia do teor da disciplina: "Nõ pode algue seer boa testimunha d'outre, se primeiro nõ for boa testimunha de sy meesmo". Vita Christi, 1495. (algue e d'outre também levam ~ mas não consegui colocar o ~ em cima do e). Ao longo do livro existem muitas frases do português desta época.
O novo romance de Cristovão Tezza. Rememorações de um velho professor.

O livro se ocupa do septuagenário professor, num acerto de contas com o sentido de sua vida. Os personagens reais do livro são o professor e Dona Diva, a eterna empregada da casa. O resto são personagens de sua vida, numa fantástica recriação em sua memória. Ele tem duas tarefas fundamentais para este dia. Se preparar para a homenagem e organizar o discurso para a solenidade. Entre o levantar-se, tomar um banho e acertar o nó da gravata, a sua memória anda em retrospectiva.

Esta atinge especialmente os seus familiares, do menino que fora no seminário, de ter tido um pai extremamente rígido, de Mônica, a sua esposa, de Úrsula, a amiga de Mônica, do filho Eduardo e de Therèze, a sua orientanda, ou doutoranda, de cama e de gabinete, como alfinetavam os colegas de plantão. Digamos, uma consciência cristã e profissional em retrospectiva, com os ingredientes comuns a estas situações. Culpas e desacertos em sua vida privada e as intrigas e a ciumeira entre colegas, especialmente os de seu departamento, o de linguística.
O Espírito da prosa. Uma autobiografia literária. A Bildung do grande escritor.

Quanto a Mônica, a esposa, uma vida aparentemente normal. Paixão no começo, esfriamento da relação, na sequência. A amizade com Úrsula soa à pós-modernidades estranhas ao velho e rígido professor. Ela chega até a fazer a proposta de um casamento aberto. A relação com o filho Eduardo, sempre protegido por Mônica, é complicada desde sempre. Mônica sofre um acidente fatal, numa queda. O comissário Maigret entra em sua vida. O livra de culpa perante a lei, o que lhe vale uma boa grana da companhia seguradora, mas não o isenta dos comentários maldosos dos colegas da universidade.

Therèze é uma aluna, que meio sem jeito, aparece numa aula do professor e lhe pede um encontro. Algo normal na vida acadêmica. Orientação de tese seria o grande tema. Mas a presença da moça, os seus rrs arrastados o impressionam e, além disso, o perturbam. E como já vimos, os comentários jocosos dos colegas diziam que era uma doutoranda de cama e de gabinete. Therèze foi realmente uma paixão escaldante na vida do correto professor, nos tempos em que seu casamento já fazia água.

Com o acidente mortal de Mônica, a relação com Eduardo se complica de vez. Eduardo termina morando nos Estados Unidos. Depois de uma infinidade de tempo ele liga comunicando que estava morando com Andrew e que tinham adotado uma menina afro-americana. A cabeça do velho professor pira, busca culpas e as encontra. Nunca mais houve aproximação, só agora e por desejo, em suas rememorações de acerto com a vida. Olha aí, temas da pós modernidade, povoando o romance.

A tese de Therèze, sobre O Sentido oculto na ironia do brasileiro, do dito e do não dito ganhou expressivos comentários da banca, como este, de um dos doutores: "Frise-se que a exposição da primeira parte, As raízes da ambiguidade - (a Therèze sempre foi boa em títulos) -, está simplesmente soberba, é a palavra que me ocorre, um primor de interpretação social aplicada aos mecanismos da linguagem". Uma parte da tese chegou a ser publicada numa universidade francesa, com uma homenagem ao professor Heliseu. Nas suas rememorações também entram os temas da política nacional, desde a ditadura militar, as diretas já, a inflação dos tempos de Sarney, o PT, Lula e Dilma. Estes temas quase sempre foram puxados pelo professor Veris.
Este é o grande livro do escritor. Inigualável e premiadíssimo.

O último e o mais longo dos capítulos do livro é bastante esclarecedor sobre o acidente que vitimou Mônica, após uma discussão familiar em que estiveram envolvidos. O romance desvenda ou desvela o que é a vida de um professor universitário, sobre o significado de sua profissão e acima de tudo, como está fortemente frisado na contracapa do livro, - o sentido da vida. Mais buscas do que respostas, obviamente. Tezza, com este seu novo romance, apenas confirma a sua condição de um grande escritor, já consagrado a partir de O filho eterno.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Prudentópolis. A mais ucraniana das cidades brasileiras.

No sábado passado, dia 4 de julho, trabalhei em Prudentópolis com um pequeno grupo de professoras (es), nos trabalhos de formação continuada, promovidos pela APP-Sindicato. Fui a convite do núcleo sindical de Irati. O tema que me foi proposto foi "Teoria e práxis na Educação". Começamos definindo o conceito de cultura, enveredando em seguida para conceito de práxis, a partir do livro de Marx e Engels A Ideologia Alemã. Para mostrar como funciona a filosofia da práxis na prática, trabalhamos um pequeno texto do livro de Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade. Trabalhamos o sábado inteiro, mas faltou tempo.  Esta é a força da escola pública. Em um pleno sábado, após jogo do Brasil, pessoas dedicam o seu tempo livre, à sua formação. Aliás, a categoria tempo livre também chegou a ser trabalhada.
Igreja de São Josafat, a igreja tipicamente ucraniana de Prudentópolis. Belíssima.
Mas não é disso que eu quero falar. Hoje eu vou me dedicar ao encantamento que a cidade me provocou. Em virtude do jogo, tomei um ônibus bem cedo, chegando à cidade por volta do meio dia. A minha curiosidade imediatamente me moveu pela cidade. A tarde não seria plena, pois às 17:00 horas haveria o jogo. Fui ao posto de informações turísticas e peguei um folheto com roteiros detalhados. A cidade é conhecida pelas suas cachoeiras e pela forte presença da tradição ucraniana, não necessariamente nessa ordem.
A maravilha da cúpula interna da igreja de São Josafat.
Visitei as três igrejas da cidade. A matriz, a igreja de Nossa Senhora das Graças e a inigualável igreja ucraniana de São Josafat, que apesar de todo o meu conhecimento hagiográfico, herdado dos tempos de seminário, eu não conhecia. É um santo tipicamente ucraniano. Tive a sorte de encontrar esta igreja aberta, em virtude da forte religiosidade do povo, que ali estava reunido para a adoração do Santíssimo Sacramento. Isto me permitiu várias fotografias muito bonitas. O entorno da igreja, com gruta e campanário também merecem destaque. Também me impressionou bastante o Colégio São José, pela beleza de sua construção e especialmente pela sua impecável conservação.

Junto à igreja de São Josafat se situa o Museu do Milênio. As datas referentes ao milênio são as de 988 e 1988. O ano de 988 se refere aos fundamentos da constituição da Ucrânia como Nação e, na outra ponta, 1988, uma referência às comemorações do milênio da existência da Ucrânia, realizadas na cidade A Ucrânia, tal como a Polônia, nunca tiveram vida fácil, uma vez que, geograficamente, ficam exprimidas entre as grandes potências europeias. Vejam o exemplo dos dias de hoje. Talvez esta dor e sofrimento torne este povo tão unido e tão religioso, ao menos, os que por aqui vivem.
Nave principal e altar mor da igreja de São Josafat.
No museu fui recebido pela dona Terezinha.  Poucas vezes em minha vida tive uma aula tão completa. A aula teve dois componentes fundamentais. O amplo conhecimento de dona Terezinha, conhecimento originário da vivência da cultura ucraniana, vivida com muita paixão e dedicação ao cultivo da tradição, mais o rico acervo do museu. Devo confessar que fiquei muito encantado com a riqueza do museu. Existem mapas da colonização, da distribuição dos lotes, da indumentária típica dos imigrantes, os paramentos das autoridades religiosas, dos seus instrumentos de trabalho e do mobiliário caseiro, bem como dos utensílios domésticos, além dos principais documentos históricos da colonização e imigração.

Museu do Milênio e o busto do poeta ucraniano Taras Chewtchenko. Um rico museu da cultura ucraniana e de sua imigração em Prudentópolis.

 O museu também mantém um rico intercâmbio com a Ucrânia. Visitantes ucranianos trazem lembranças que enriquecem o seu acervo, da mesma forma o fazem os descendentes, quando saudosos, visitam os seus ancestrais. O atendimento recebido no museu é algo a ser mencionado. Ele é feito, ao menos pelo que eu pude constatar, de trabalho voluntário. O atendimento se dá nos expedientes normais e pode ser agendado nos finais de semana. Isto é raro. O acervo é tão rico que o espaço para preservá-lo já está pequeno. Fiquei sabendo que o deputado federal Ângelo Vanhoni, sempre ligado à cultura, tem algum envolvimento ou preocupação com o museu e o seu acervo, mas existem problemas. A comunidade da igreja de São Josafat praticamente torna possível a viabilidade desta joia. O poeta ucraniano Taras Chewtchenko é muito reverenciado no museu e possui um busto na sua cobertura.
Manifestação da religiosidade do povo de Prudentópolis. Fé, esperança e caridade. Junto da igreja de Nossa Senhora das Graças.

O meu giro praticamente se encerrou com a compra de pêssankas, os tradicionais ovos coloridos, tão cheios de significados e tão típicos da cultura ucraniana. Dona Terezinha me deu material referente ao museu, sobre as novidades referentes à igreja católica ucraniana, com a elevação da cidade à eparquia e a construção da futura catedral da Imaculada Conceição, na vila Iguaçu. As designações são próprias da igreja ucraniana, algo semelhante à diocese, não definida por critérios geográficos, mas étnicos. Comprei ainda, numa livraria próxima, o livrinho A utilização do tempo pelos imigrantes ucranianos de Prudentópolis. 1940-1960. O livrinho é de autoria de Nelson Gilmar Zaroski e é uma monografia, um trabalho acadêmico do curso de história da universidade federal do Paraná. Existem livros sobre a colonização, mas suas edições encontram-se esgotadas.
Pêssankas. A da caixinha é do artesanato de Prudentópolis, legítima, pintura na casca do ovo e a outra é importada da Ucrânia, em madeira e simulando um ovo.

Ainda nas proximidades do museu existe uma bela e bem sortida loja do artesanato local, a Machula. Pêssankas e bordados são o essencial do rico artesanato ucraniano. Em torno de 70% da população  de 50.000 habitantes são descendentes de ucranianos. No cultivo à tradição, o grupo Irmandade dos Cossacos se destaca. A sua grande tarefa é guardar o santo sudário, nas comemorações da semana santa, especialmente na sexta feira santa. O grupo se apresenta regularmente e tem em seu currículo, inclusive apresentações no exterior. Cossacos são homens livres e armados, sempre dispostos à luta. Associem isto à história da Ucrânia para perceberem a sua importância e o seu significado.
Olhem aí a dona Terezinha, a minha cicerone no Museu do Milênio, segurando um tablet. Uma pequena lousa sobre a qual se escrevia. Eu cheguei a usar. Nós a chamávamos de Tafel, em alemão.

A festa mais típica da cidade é a festa do feijão preto, o produto de maior destaque da economia da cidade. Na primeira festa foi servida uma feijoada para mais de trinta mil pessoas. Na economia ainda merece destaque a produção da erva mate e o mel. A erva mate foi a sua primeira grande riqueza. Hoje o turismo também impulsiona a economia da cidade. As grandes cascatas são o grande atrativo natural que se soma aos atrativos culturais. Como não conheci as cachoeiras e nem mesmo o portal de entrada da cidade fiz uma promessa para mim mesmo e irei cumpri-la. Voltar à cidade. Para conhecer os seus atrativos e conviver um pouco com a sua cultura, são necessários, no mínimo dois ou três dias. A distância de Curitiba é de apenas 200 quilômetros.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Cerejeiras japonesas em Curitiba. Sua Florada e seus significados.

Antes de abraçar a minha nova carreira profissional de administrador de tempo livre, fui professor na universidade Positivo ao longo de treze anos. Uma das coisas mais belas desta universidade é o seu campus. Este se situa num antigo haras e teve um belo planejamento paisagístico. Tem um belo lago e algo de preservação. Em particular, eu tinha uma forte preferência por uma árvore específica, da qual nem o nome sei. Sempre me identifiquei muito com ela. Eu me sentia igual a ela, em muitas oportunidades. Ela se transfigurava completamente. De árvore de aparência totalmente morta, ela renascia com o todo o esplendor do seu verde brilhante. Também tinha o seu tempo cinza. Se eu fosse fotógrafo, ela seria objeto de um ensaio fotográfico. Nem todos viam esta árvore.
Assim como eu tenho os diferentes momentos em minha vida, aqui estão dois momentos da minha árvore preferida do campus da universidade Positivo.

Lembro das aulas de geografia, das árvores de folhas caducas. Agora leio sobre elas. São aquelas que perdem, a cada ano, todas as suas folhas, para, em seguida, receberem uma folhagem totalmente nova. A minha árvore preferida, do campus da universidade é uma árvores destas. No início de cada inverno de suas vidas, perdem totalmente as suas folhas e recebem a aparência de estarem totalmente mortas, para nos meses seguintes voltarem à vida, com muito esplendor. Creio que é fácil estabelecer relações e comparações.
Cerejeira florida da Praça do Japão, em Curitiba

Recentemente, por maravilhas do facebook, reencontrei o meu compadre em São Paulo e fui visitá-lo. A sua esposa me falou das cerejeiras de Curitiba e da sua florada, manifestando o desejo de ver esta florada. Confesso a minha cegueira. A gente raramente tem olhos para as coisas que nos são próximas, mesmo sendo elas muito belas. O olhar fica turvado pela contaminação da mesmice do cotidiano e isto nos torna cegos para o diferente. Voltando a Curitiba e, com os olhos bem abertos, fui ver as cerejeiras. Pareciam árvores mortas. Observando no detalhe, já havia botões, prenunciado as flores. Tomei informações. A florada ocorre em meados de julho e é muito rápida. Ela dura apenas uns 15 dias. Esta semana vi a florada em sua plenitude, primeiro na Praça do Japão e depois no Jardim Botânico.
As cerejeiras floridas, da entrada do Jardim Botânico, em Curitiba.
Como o meu compadre não podia vir, postei algumas fotografias. Lendo sobre as cerejeiras japonesas, consegui enquadrá-las entre as tais das árvores de folhas caducas. O fato da existência de sua transfiguração anual facilmente se presta a belas e ricas simbolizações. A mais bonita é a de um velho samurai, ela é nativa do Japão e de suas adjacências, que, já velho e enfraquecido, se recusava a morrer, enquanto a cerejeira não florisse ao menos mais uma vez. Quando ela atendeu o seu desejo, ele praticou o harakiri. Mas a árvore voltou a florescer a cada ano.
A beleza da flor, bem próxima da lente. Jardim Botânico de Curitiba.

No Japão as cerejeiras simbolizam uma deusa, Konohana Sakuya Hime, que mora no monte Fuji e que lhe impede novas erupções. A sua florada anuncia o fim dos rigores do inverno e ela também é invocada na proteção das colheitas. Suas folhas são secadas e servidas como chá em cerimônias de casamento, simbolizando a felicidade dos noivos. A sua florada anuncia muita luz e alegria ao final do inverno. Como o Brasil tem uma forte influência japonesa em sua colonização e especialmente aqui no Paraná, seus imigrantes trouxeram, junto com os seus poucos pertences, mudas desta árvore para os fortalecerem da aspereza e das dores do trânsito da imigração. Estas cerejeiras estão no Paraná há mais de 80 anos. São encontradas em várias ruas da cidade, na Praça do Japão e em maior quantidade, na entrada do Jardim Botânico.
As placas indicam a presença de dois tipos de cerejeira, no Jardim Botânico. A flor da primeira é mais viva e um pouco maior.

Olhar a sua florada tem ainda a forte significação da renovação, renovação da vida, especialmente. Conta-se que as primeiras mudas, teriam sido um presente do imperador do Japão e por ele pessoalmente trazidas. Isto é uma demonstração de sua força na cultura japonesa. A sua cor varia das tonalidades branca para um rosa mais acentuado. O seu culto junta milhares de pessoas no Japão. Aqui em Curitiba, percebi a presença de alguns perdidos fotógrafos. Hoje o horto florestal da prefeitura de Curitiba produz mudas. A sua fruta não é a cereja que conhecemos, aquela que enfeita bolos e, mais, as de Curitiba não chegam a produzir frutos.  Nesta época também ocorre a florada dos ipês roxos, com flores muito semelhantes. As árvores são maiores. Também a florada dos pessegueiros é bastante semelhante.
Como dá dó de ir embora  de um lugar de tanta beleza, o jeito é tirar uma última fotografia.

Se quiser oferecer um colírio natural aos seus olhos e quiser refletir um pouco sobre a beleza dos seus significados, o tempo é agora, pois, como vimos, a sua florada não demora mais do que quinze dias. Neste final de semana, deve ser uma das datas mais propícias para vê-las na plenitude de sua beleza.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Arrecife. Juan Villoro.

"Arrecife ou recife", nos diz a wikipédia, "é uma formação rochosa submersa logo abaixo das águas oceânicas". A enciclopédia ainda aponta a proximidade das costas e a pouca profundidade como outras características dos arrecifes. Mas estamos falando de arrecife como um romance. Um romance mexicano, lançado no Brasil, agora em junho e que terá a sua primeira grande divulgação na FLIP, a grande Feira Literária de Paraty, agora, em fins de julho (30 de julho a 3 de agosto).

O arrecife ou os arrecifes que emprestam o título ao livro de Juan Villoro pertencem à costa mexicana, mais precisamente ao Caribe mexicano. O cenário mais próximo do romance é então a beleza deste local que se soma também com a sua história, a dos ancestrais maias e as suas pirâmides. Tornando ainda mais restrito o cenário do romance, ele se passa num luxuoso hotel resort, exatamente com este nome, La Pirámide. Aí então começa um romance, que confesso, é muito diferente de tudo o que já li. É uma loucura total. Os dois nomes centrais do romance são Tony, ou Antonio Góngora e Mário Müller, o der Meister.
Arrecife, de Juan Villoro. O livro do autor mexicano é um dos lançamentos da Companhia das Letras, do mês de junho de 2014.
Tony e Mário eram companheiros de infância e em sua juventude tocavam em uma banda de rock, los extraditables. Tony aparece assim descrito: "alguém com quatro dedos, uma perna ruim e metade das lembranças". Nos anos dos extraditables, lembra Mário, "éramos tão otimistas que nos divertíamos nos destruindo. Quando recuperamos a sobriedade já não valia a pena estar lúcido. O país virou uma merda. Nossa insônia é geracional. É melhor viver de noite". Aparentemente Mário é o mais normal dos personagens.
Mário é filho de uma numerosa família de suíços e recebe educação refinada. Quando Tony estava na situação acima descrita, especialmente a de quem guardava apenas a metade de suas lembranças, Mário o acolhe ao La Pirámide, para ser o técnico de som do aquário. Na orelha do livro está descrita esta profissão: "Ele transforma o movimento dos peixes em som ambiente". Mário é extremamente solidário para com Tony. Creio que já deu para ter uma pequena ideia sobre o La Pirámide. Um hotel nada convencional.

Aliás, praticamente todos os hotéis do Caribe mexicano tinham falido, não se sabe exatamente se era por falta de turistas ou para levantar altas indenizações junto às companhias seguradoras. O hotel comandado por Mário era uma exceção, aliás a única exceção. Vivia sempre lotado. Kukulcán, a região em que eles se situavam, era um verdadeiro cemitério de hotéis. Quais eram então os atrativos deste hotel, comandado pelo Mário? Encontramos algumas explicações. O certo é que no La Pirámide, se vive a era "pós turismo", onde, explica Mário "o perigo é o melhor afrodisíaco" e que "ninguém se permite tantas licenças quanto um sobrevivente". 

Observemos uma pequena descrição de uma ocorrência: "No outro corredor quatro ou cinco encapuzados carregavam duas turistas loiras, amordaçadas e com as mãos amarradas. Elas esperneavam e sorriam ao mesmo tempo (as rugas em seus olhos delatavam diversão e suas risadas podiam ser ouvidas através dos lenços). Foram levadas até uma janela. Os guerrilheiros puxaram uma corda. Um arnês chegou até eles. As mulheres concordaram  em sair pela janela, amarradas aos arneses. Os encapuzados as seguiram". Não havia tédio no entretenimento proporcionado pelo der Meister.
O escritor mexicano, Juan Villoro. Villoro é considerado o maior escritor mexicana da atualidade.
Onde, no entanto, se situam os limites do perigo? Ocorrem duas mortes quase simultâneas no hotel e começam as investigações. Parece que todo mundo está envolvido e ninguém quer desvendar nada. Se desvenda, ou melhor, se revela todo um mundo de corrupção, uma descrição da terrível realidade mexicana. Mas o forte do romance está na ironia. Esta perpassa o livro inteiro, com destaque para os temas da ecologia e da sustentabilidade, ótimas formas de se ganhar dinheiro. Sobram ironias para o Louvre, que se formou a partir de rapinas e sobre a cultura e literatura inglesas e os métodos de gerenciamento do pessoal do hotel. Veja estas frases como pequena amostra: "A única coisa mais comercial que a cultura é a ecologia" e "os que mais contaminam são os que mais investem em comida orgânica e ecoturismo".

Grandes momentos de ternura ocorrem quando se descobre uma doença terminal em Mário, um câncer. Mário tem uma filha. Irene. Mário delega a Tony a missão de ser o pai da menina. Já num dos primeiros encontros Irene pede a Tony: "Lê uma história para mim"?. Criança é sempre criança.

Trabalhando com formação de professores, entre os quais havia professores de literatura, teci um breve comentário sobre Arrecife, mais ou menos nos seguintes termos. Se diferencia de quase tudo o que eu já li. Nele existe uma radical mudança da subjetividade. Os grandes mistérios humanos, presentes na literatura, mudaram de foco. São mentes destroçadas pelas drogas, pela loucura dos anos de formação sob a guerra do Vietnã e as pulverizações e nebulizações de Napalm, além do mundo do crime, tido como uma normalidade do cotidiano.

Experiência rica foi a leitura deste livro, mas confesso que adoraria participar da mesa que Juan Villoro dividirá com os participantes da FLIP, agora em julho. Segue a ficha do livro: VILLORO, Juan. Arrecife. São Paulo: Companhia das Letras. 2014. Ainda na capa existe uma espécie de sub título: Onde a maior atração é o perigo.


quarta-feira, 9 de julho de 2014

Uma carta. Revisitando o tempo em que se escreviam cartas.

Atendendo a um pedido voltei a escrever uma carta. Confesso que tive dificuldades. A escrevi a mão, bem do jeito como eu fazia, quando trocava cartas, especialmente, com a minha mãe. Temo que, hoje em dia, muita coisa esteja se perdendo, como o próprio hábito de escrevê-las. WhatsApp, in box e outras formas eletrônicas e virtuais, as estão substituindo. Temo, inclusive, pela manutenção da escrita manual, em tempos de digitalização. A separação de palavras, que tanto nos fazia sofrer, recebe hoje aparelhamento automático. Como gostei de escrever esta carta, em que procurei reproduzir o espírito de uma carta dos tempos em que as escrevia, por isso passo a reproduzi-la aqui, omitindo, obviamente o nome do destinatário e seu círculo familiar: Lá vai ela;
Eis a carta, num caprichoso manuscrito. Hoje a digitalização faz com que o manuscrito seja o proscrito. Singeleza e linguagem coloquial eram as grandes características.

Curitiba, 25 de junho de 2014.
Prezados____________________________.

Hoje eu acordei extremamente saudoso e aproveitei a oportunidade para fazer rememorações. Retrocedi no tempo, uns cinquenta anos, e me lembrei de um hábito que eu cultivava naquele tempo, quando eu escrevia cartas. De um modo todo especial eu trocava cartas com a minha mãe, e também, quando batia a saudade, com os meus amigos. As cartas que eu trocava com a minha mãe, sempre foram escritas em alemão.

Este hábito se intensificou quando eu vim morar aqui no Paraná. A gente não trocava grandes ideias e nem tínhamos assim, grandes novidades para contar. Eu falava do meu trabalho, dos meus tempos de começo da minha vida de professor, sobre os progressos de Umuarama e sobre os meus queridos filhos. A minha mãe me contava as coisas de Harmonia e assim eu matava as saudades da minha querida terrinha em que eu nasci. Me contava de quem ia bem e, sobretudo das pessoas que faleciam. Ela me mandava um obituário completo. Sobre o Grêmio ela nunca me falava. Ele não fazia parte do seu mundo, mas eu me atualizava ouvindo as rádios Gaúcha e Guaíba.

Um dia, ainda morando em Porto Alegre, eu escrevi uma carta mais séria e um pouco mais comprida, eu acho que, umas dez páginas. Nela eu explicava os novos rumos que eu tomei em minha vida, quando eu deixei o seminário. Como eu gostaria de ter esta carta! Mas eu acho que ela se perdeu, se apagou com as lágrimas sobre ela vertidas, pela tristeza do meu pai e da minha mãe, ao saberem que eu tinha desistido de ser padre.

Hoje eu quero te escrever para dizer que comigo vai tudo bem, inclusive de saúde. De vez em quando eu sinto um pouco de dor de cabeça e nas costas, mas eu creio que isto acontece quando eu cometo algum tipo de exagero. Eu tenho muitos e bons amigos, que sempre me convidam para as suas festas e, às vezes, a gente toma um copo de cerveja ou uma taça de vinho a mais. Espero também que tudo vá bem contigo e com a ____________.

No mais, eu continuo lendo bastante e escrevendo um pouco. Eu tenho um blog (blogdopedroeloi.com.br) onde escrevo sobre cultura, política e viagens. Acho que estou indo bem e tenho ganhado até alguns elogios.
Última tarefa da escrita de uma carta. Envelopá-la, fechá-la e levá-la aos correios. Não pode faltar o tubo de cola.

Eu quero, em particular, nesta carta de hoje, te falar sobre um livro muito bonito que eu li. Trata-se  de A Resistência, do Ernesto Sabato. Eu sublinhei duas frases, entre tantas frases bonitas. A primeira, eu acho que cabe muito bem para nós. Ela diz assim: "Com a idade que tenho hoje, posso dizer, dolorosamente, que toda vez que perdemos um encontro humano uma coisa se atrofiou em nós, ou se quebrou". _______________, como eu sinto falta dos nossos encontros na sala dos professores da universidade Positivo, aquela mesa dos professores do curso de Publicidade . Lá ouvíamos vozes diferentes e assim a gente melhorava no conhecimento e no repertório. Muitos encontros humanos. A outra frase diz assim. Está na página 71: "Mas é na mulher que se encontra o desejo de proteger a vida, absolutamente". Mostra esta frase para a __________. Eu acho que ela irá gostar.

Um outro livro que também gostei muito é, Ei Professor, de Frank McCourt. Ele é irlandês. Eu gosto muito dos escritores deste país. Frank conta de sua vida de professor nos Estados Unidos. Ao falar de suas experiências, ele fala das dificuldades dos professores em geral. Eu gostaria de pedir a permissão e tomar mais um minuto de seu tempo para te passar esta frase: "Qual é a última coisa em que pensam os professores antes de dormir? Antes de apagar, todos esses professores, confortáveis e aquecidos em seus pijamas de algodão, só pensam no que têm de ensinar no dia seguinte. Os professores são bons, corretos, profissionais conscienciosos e nunca jogam a perna em cima da mulher na cama. Do umbigo para baixo, o professor está morto". Confesso que fiquei bastante entristecido quando li esta frase. Tomara que a parte final da frase não seja verdadeira.

Como já estou me estendendo muito, numa próxima carta eu quero falar sobre O Último Leitor, do Ricardo Piglia. Ele fala do Chê Guevara. Ainda bem que eu me lembrei de um outro. É do Valter Hugo Mãe - O Filho de Mil Homens. Ele fala de multiplicação - sabe - mas não de multiplicação de números ou de dinheiros, mas de pessoas que se encontram e que se completam.

E, para terminar, aproveito ainda o ensejo para te mandar, como se fala no Rio Grande, um abraço de quebrar as costelas e também para mandar um beijo para a___________. Deixo também um abraço para o teu filho.
O teu sempre amigo
Pedro Eloi Rech.
PS. Tenho à minha frente uma frase que bem reflete o tempo presente, uma vida com constante redução de expectativas, tornando-a mais pobre, com menos sonhos e com  menos desejos. Tempos tristes.
Última etapa de uma carta. Levá-la ao correio e postá-la. Com selo e carimbo.
Observação. Esta observação já não faz mais parte da carta. Estes livros, aos quais fiz referência, foram indicações de leitura que recebi do meu amigo. E mais um PS. Lendo Arrecife, de Juan Villoro, me deparo com o seguinte, de Mário Müller para Tony, na página 162: "- Tenho uma coisa para você. Uma coisa de outra época, de um mundo perdido, no qual se escreviam cartas. pertencemos à última geração que conheceu a espera, a possibilidade de perder uma remessa, a chegada de uma caligrafia especial". Em breve comentarei sobre este livro.


segunda-feira, 7 de julho de 2014

Circuito Mineiro. 6. Coronel Xavier Chaves. A Cachaça Século XVIII.

Em junho de 2013 publiquei dois rankings de cachaça, um da universidade da cachaça e outra da revista Playboy. Recebei o seguinte comentário, que aqui publico:
 Vista do bucólico Engenho da Boa Vista, onde se produz a cachaça Século XVIII.

"Faltou falar da única cachaça do ranking branca, a verdadeira e mais antiga do país, a Santo Grau sex 18 ou a melhor, a Sec 18 direta do alambique". Gostei do comentário. Ele mostrou uma pessoa antenada no mercado, que não perde nenhuma oportunidade para divulgar o seu produto. Coisas do marketing. Este século XVIII - e a mais antiga do país me chamaram a atenção. Falei para mim mesmo: "um dia vou atrás", e fiz uma primeira busca no Google.
No Engenho Boa Vista, o meu guia, o Alemão, junto com o sr. Chaves, da família Chaves, da sétima geração no trato da cachaça.

Como há muito tempo eu tinha vontade de conhecer as cidades históricas de Minas Gerais, a de São João Del Rei e Tiradentes, vi que Coronel Xavier Chaves ficava ali, bem pertinho. Contei do meu blog para o Alemão, o meu guia, sobre a publicação do ranking e sobre o comentário publicado, enquanto visitávamos as igrejas de São João Del Rei e Tiradentes e quando pedi para tirar uma foto com ele junto a uma das igrejas, ele me anunciou um bônus em seu tour, mas que seria uma surpresa. Imediatamente eu imaginei que seria uma visita ao alambique que fabrica a Século XVIII. Coronel Xavier Chaves é uma pequena e simpática cidade com menos de três mil habitantes.
Depois da evaporação, é por aí que as gotas pingam. É por isso que a cachaça também recebe o nome de pinga.

Dito e feito. Depois de andar um pouco, bastante para um bônus, chegamos ao Engenho Boa Vista. Fomos mineiramente recebidos por um senhor de meia idade, o proprietário do engenho. Depois de comprar algumas, para a minha coleção, li a etiqueta que acompanha a garrafa de um lote antigo, de 2002. Diz o seguinte: "Aguardente de cana Século XVIII. Sabor de um segredo guardado a sete chaves. Esta aguardente é preparada artesanalmente. Os procedimentos que vêm sendo utilizados desde o século XVIII garantem qualidade peculiar. Buquê buscado pelos apreciadores mais exigentes".
Eis aí uma das cachaças mais famosas e, com mais história, do Brasil. Estas já integram a minha coleção.
Na pequena etiqueta, em letra bem miúda ainda se lê:
 "Não se sabe quando começou.
Entre as pedras de uma demolição
havia uma datada de 1717.
Foram paulistas ou emboabas? Não se sabe.
Da família Tiradentes sabemos.
Pedras e telhas cobertas de pátina
evocam um tempo de ritmo lento
e marcam a ampla construção bicentenária
de arquitetura e engenho.
Respeitosas da queda do terreno.
É o fazer artesanal integrado à natureza.
A roda d'água oxigena o resíduo do mosto,
que assim alimenta pequenos peixes.
Begônias e avencas crescem
sob o grande rodízio de sete mestres.
A caldeira sem pressa
queima o bagaço num processo ecológico
indispensável à fabricação das bebidas
que exigem paladares refinados.
Há sete gerações estamos destilando a garapa.
Os antigos nos legaram segredos
que os laboratórios
aos poucos, buscam desvendar.
O legado maior, além da instalação bucólica
e da terra propícia ao cultivo da cana de açúcar, 
é a certeza de que o tempo
pede paciência e humildade.
Poucos litros a cada fornada
para a qualidade acima de tudo.
Isto faz a diferença.
Século XVIII, Alferes e Jacuba. As cachaças produzidas na histórica região de São João Del Rei.

Belo texto para uma letrinha tão miúda. Num outro folheto promocional temos um texto de um visitante. Como ele também é bonito e ilustrativo, o publico na íntegra: "Ao beber da cachaça SÉCULO XVIII, está se bebendo um pouco de História do Brasil. Trata-se de uma aguardente produzida na cidade de Coronel Xavier Chaves, da mesma maneira que o era há 250 anos, em um engenho do século XVIII (o mais antigo do Brasil em funcionamento, segundo informações da EMBRATUR), perfeitamente preservado.

O engenho BOA VISTA pertenceu a Domingos da Silva Xavier, o irmão mais velho de Tiradentes, que o recebeu de sua tia Josefa Maria da Conceição Xavier e seu marido Lourenço Coutinho, 'para efeito de se tornar sacerdote'. O segredo de sua produção é guardado há sete chaves (7 gerações de Chaves). hoje, Rubens R. Chaves é quem administra o engenho.

Na cachaça SÉCULO XVIII percebe-se a pureza e a qualidade inigualáveis da bebida de produção limitadíssima, destilada em alambique de cobre e envelhecida debaixo do solo em tanques de cimento revestido de parafina. Os séculos de tradição e a artesania garantem a especialidade da bebida, que agrada  não somente aos consumidores de aguardente, mas também aos apreciadores dos mais variados destilados e fermentados, o que justifica a frequente visitação de estrangeiros e brasileiros oriundos das mais diversas regiões do país. É a História do Brasil que desce redondo".

Já tinham imaginado que atrás da cachaça tinha tanta história e tanta cultura. Quem nos atendeu foi o proprietário, que nos contou muita história, inclusive a de que eles só produzem para o consumo próprio e só vendem as sobras. Por que é que eu iria duvidar? Então? Será que Tiradentes também gostava de uma cachacinha? O lugar realmente é bucólico e cheio de misticismo.No Engenho Boa Vista também é produzida a cachaça de nome Santo Grau.
Jacuba significa água quente. É a outra cachaça produzida em Coronel Xavier Chaves.

Mas na terra do berço da cachaça existe uma outra que também é bem conhecida, a Jacuba. Ela também é envolta em misticismo, começando pelo seu nome, que significa água quente. Jacuba também é o nome de uma espécie de ápeiron, onde se mistura cachaça, mel, açúcar e farinha de mandioca. A esta mistura é atribuído um caráter revigorante, com forças sobrehumanas, para enfrentar toda a espécie de agruras, especialmente as do desbravamento das matas. Ela é envelhecida em tonéis de carvalho e também é tomada como um digestivo. Não tem tanta história como a Século XVIII, sendo produzida num dos alambiques mais modernos do Brasil.
Alferes é a cachaça produzida na histórica cidade de São João Del Rei

São João Del Rei também tem cachaça, e de nome pomposo. Alferes. Se você não dispuser de meios para visitar os alambiques, não se preocupe. No mercado municipal de São João Del Rei você encontra todas elas. O Engenho Boa Vista promove, aos sábados, degustações de cachaça, com acompanhamento de aperitivos, para a festa dos visitantes.



quinta-feira, 3 de julho de 2014

Circuito Mineiro. 5. Tiradentes.

Conheci a cidade de Tiradentes com o meu guia, o Alemão. Passamos pelas calçadas solteironas, em virtude das pedras que nunca se casam, pela rua Direita, sempre  a mais notável, pela igreja de São João Evangelista, pela estátua em homenagem ao alferes Tiradentes, na igreja de Santo Antônio, a mais famosa e rica, e a bela igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, a Câmara Municipal... Sobrou tempo para um almoço mineiro e uma visita ao chafariz São José. O que faltou fazer, foi o que eu fiz em São João Del Rei, isto é, percorrer todos estes trechos e outros mais, sozinho, vendo e revendo tudo, de preferência com um roteiro em mãos.
A igreja Matriz de Santo Antônio. Única, pelo seu ouro, por sua pintura, por seu órgão...

A origem da cidade também nos remete ao período aurífero das Minas Gerais. Ela nos remete ao ano de 1702, quando um bom número de pessoas fundam o Arraial Ponta do Morro, onde erguem a capela de Santo Antônio da Ponta do Morro. A belíssima igreja fica realmente num morro, com direito a uma magnífica vista panorâmica, da qual a moldura da natureza, a Serra de São José, merece um destaque todo especial. A grande quantidade de ouro encontrado na superfície da terra foi a grande loucura da atração de muita gente.

A vila de São José Del Rei foi fundada em 1718. É desta época que data a construção de suas igrejas, ruas e casarões que dão à cidade a sua configuração arquitetônica atual. Esta preservação é a sua maior fonte de riqueza, sendo por isso mesmo, zelosamente preservada.  É a cidade histórica de maior charme. Possui apenas 7.000 habitantes. Junto com a sua história foram acrescidos atrativos culturais, como o festival de cinema, que se realiza em janeiro, o festival de cultura e de gastronomia.
O nome da cidade é uma homenagem a Tiradentes. Na foto ele aparece vestido de Alferes. O nome foi dado à cidade, num dos primeiros atos do governo Republicano.

É um dos lugares mais ligados à Inconfidência Mineira, uma das cidades que mais reuniões de organização do movimento teve e, certamente, a casa do padre Toledo teria muitas revelações a serem feitas. A casa do padre Toledo é uma das casas em que mais se conspirou. Hoje abriga um museu, sob os cuidados da UFMG. A cidade recebeu o nome de Tiradentes, o principal personagem da Inconfidência, nascido nas proximidades da cidade, em 1746, na Fazenda Pombal, à margem direita do terrível rio das Mortes. Tiradentes era um grande proprietário rural. A cidade ganhou o nome do heroi nacional, num dos primeiros atos da recém proclamada República, em 6 de dezembro de 1889. A cidade, bem como todo o seu entorno paisagístico, foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, no ano de 1938.
Uma vista da cidade, do alto, do pátio da igreja de Santo Antônio. Ao fundo a sua moldura, a Serra de São José.

A sua maior atração é sem dúvida nenhuma a igreja matriz de Santo Antônio. A sua construção foi iniciada em 1710. Quase um século depois, o Aleijadinho lhe desenhou o frontispício atual. Ela é um dos mais belos templos barrocos do Brasil e a segunda igreja em quantidade de ouro. São 482 quilos. Esta riqueza nos dá uma dimensão dos detalhes dos entalhes de santos e da preciosidade de suas pinturas, com tinta vegetal. As cores das tintas vegetais eram obtidas, o vermelho do Pau Brasil, o roxo do suco da uva, o marrom da folha da bananeira e o amarelo da gema do ovo. Esta técnica se perdeu e nas restaurações as tintas atuais não conseguem obter a beleza das cores originais. Esta igreja também recebe detalhes do estilo oriental, de Macau. Os portugueses viajavam..., e muito.
A igreja de Nossa Senhora do Rosário. Os santos são de cor negra, menos a Senhora do Rosário.
Outra bela igreja, tornada bela, certamente com o consentimento dos padres, com o ouro ajuntado pelos escravos, trazido entre o cabelo, debaixo das unhas, e outros lugares que a imaginação alcança. O ouro da decoração desta igreja foi, desta forma, surrupiado de seus senhores. Tudo para a maior glória de Deus. As imagens dos santos desta igreja são de cor negra, com exceção de Nossa Senhora do Rosário. Tirar fotografias nas igrejas de Tiradentes é algo proibido, mas o meu guia levantou as vestes de um santo para me mostrar a figura do santo do pau oco. Como a fotografia era bem local e como assim não teria consequências negativas, eu a tirei.
Olha aí o santo de pau oco. Era uma das formas de se contrabandear ouro.

Outro belo lugar é o chafariz de São José das Botas. Era o local do abastecimento da água da cidade. Ela provém de um aqueduto construído pelos escravos. Na parte principal do chafariz existem três fontes. Se você beber da fonte central você terá saúde e dinheiro, da fonte à direita, você voltará para a cidade e a da esquerda você arrumará casamento. Só não bebi a água da fonte à esquerda. Na parte de trás existia um espaço para as lavadeiras e outro destinado aos animais.
O chafariz de São José das Botas. Água para os homens, para os animais e para lavar a roupa.

As atrações da cidade, além de sua tradição e história, são as atividades culturais programadas, como o festival de cinema e de gastronomia, os cerimoniais religiosos da quaresma e da semana santa, quando se retorna por três séculos em nossa história. A cidade fica repleta de turistas em todos os finais de semana. Chegam de todas as formas, mas merece destaque a chegada pelo trem, a famosa Maria Fumaça, que traz os turistas da vizinha São João Del Rei, mas isto apenas nos finais de semana. Da estação do trem pode-se tomar uma charrete, que leva o visitante aos principais pontos turísticos da cidade.
A paisagem arquitetônica da cidade data da primeira metade do século XVIII.

Outro aspecto interessante da cidade são as lojas dedicadas ao artesanato. Entalhes de madeira e os trabalhos com o estanho são o destaque. Com o estanho se fazem conjuntos para café, chá, taças de água e vinho, castiçais e canecas de chopp. Também é preciso falar de um famoso relógio de sol, que fica em frente à igreja de Santo Antônio. Ele data de 1785 e dele são vendidas miniaturas como souvenirs. Destaque ainda para as pousadas que recebem os turistas com todos os tipos de bolso ou bolsa, como queiram. Mais duas informações. Existe uma igreja dedicada à Santíssima Trindade, da qual Tiradentes era grande devoto. Em função dessa devoção, a bandeira de Minas Gerais leva o seu triângulo. Outro é um site de fotos antigas, que me foi passado pelo guia, o Alemão: É só fazer a busca no Google de fotos antigas de São João Del Rei ou de Tiradentes, que você verá verdadeiras maravilhas.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Circuito Mineiro. 4. Memorial Tancredo Neves e o Museu Regional. São João Del Rei.

Reconheço em Tancredo Neves um homem de valor. Sempre foi personagem importante e teve participação ativa em momentos decisivos na política brasileira. Para mim, a sua presença no proibido enterro de Jango Goulart, em São Borja, no Rio Grande do Sul, em plena ditadura militar, foi o seu momento mais alto e que traduz a sua lealdade política. Também permaneceu fiel a Getúlio Vargas ao longo de sua trajetória política. Ocupou os mais altos cargos na vida pública brasileira. Lembro perfeitamente dos dias de sua lenta agonia, agonia esta, que ainda carece de explicação para o povo brasileiro.
Sentado com Tancredo Neves, em frente ao seu Memorial.

Tancredo é um homem da elite mineira. Em frente ao Solar dos Neves, nas proximidades da igreja de Nossa Senhora do Rosário, a Nossa Senhora dos Homens Negros, a calçada da rua tem dois pisos. O primeiro, bem estreito, recebe pedras irregulares, uma espécie de cascalho, e o outro, uns trinta centímetros acima, recebe pedra sabão e uma faixa bem mais larga. É evidente que na faixa de baixo e bem estreita passavam os escravos e o povo pobre, enquanto que na mais larga e mais acima passavam os ditos "homens de bem", ou de bens. Coisas da formação do povo brasileiro.
O Solar dos Neves. Foi a residência de Tancredo Neves.

Mas hoje eu quero falar do Memorial dedicado à sua memória. Fica num prédio muito bem conservado, assim como também o seu interior, que reúne um belo acervo histórico. O Memorial está divido em vários setores, que obedecem a critérios cronológicos. As salas são assim denominadas: A origem, o caminho, gabinete, a habilidade política, a construção da democracia, a dor, lavra de ideias e um post scriptum.
Na entrada do Memorial Tancredo Neves. Em seu interior não são permitidas fotografias.

Na sala A Origem estão expostos documentos, fotos, notícias e memórias de sua origem, do seu contexto familiar e de sua infância, bem como o seu despertar para a política. Em O caminho temos as andanças de sua trajetória política, os principais cargos exercidos e os momentos mais importantes de sua atuação política. Uma aula de história do Brasil. No Gabinete estão os objetos que mantinha em seu escritório em São João Del Rei. É uma réplica fiel de seu escritório, que manteve por mais de trinta anos. Na sala da Habilidade Política ganha grande destaque a sua capacidade de mediação nas negociações e a sua determinação na hora da decisão. Em A construção da democracia é destacada a sua luta contra a ditadura militar, que culminou com a sua eleição para presidente da República, no processo da eleição, ainda pelo chamado Colégio Eleitoral. 

Na sala A dor, a emoção fala forte. Nela estão retratados os longos 39 dias de sua agonia. Com a sua morte, morreram também muitas das esperanças aglutinadas em torno de seu nome. Em A Lavra de ideias, uma sala destinada à reflexão, ao silêncio e ao respeito está exposto o seu universo conceitual. Na sala  post scriptum estão expostas algumas de suas frases mais mais marcantes. Visitar o memorial Tancredo Neves é algo que eu recomendo muito a todos os que se interessam pela história brasileira e que lutam por democracia e cidadania.
O histórico casarão que abriga o Museu Regional de São João Del Rei.

Outra atração turística de alto nível e de compreensão da formação histórica da cidade e da região é o Museu Regional São João Del Rei. A história deste museu começa por uma briga entre a moderna especulação imobiliária e a preservação histórica. O casarão que o abriga data de 1859 e era propriedade de um comendador que por ele quis mostrar a sua opulência. Os dois pavimentos superiores serviam de moradia, enquanto que a parte térrea era ocupada por um comércio de secos e molhados. A reconstrução do prédio leva a marca do arquiteto Lúcio Costa.

O museu comporta duas exposições. Uma, de longa duração, onde no térreo é mostrada a "formação da identidade nacional e a evolução das artes, das ideias e da produção artística e arquitetônica brasileiras, por meio de dois painéis murais". Já o primeiro pavimento abriga as "coleções de arte sacra (imaginária, ex-votos, oratórios e pintura) com destaque para obras de Aleijadinho e Mestre Piranga, e de mobiliário mineiro, que continua no segundo pavimento, exposta ao lado de equipamentos de trabalho, de uso doméstico e de transporte". Na sala de exposições de curta duração, "encontram-se mostras cujos temas são de interesse das comunidades local e regional".
Um oratório. Peça do Museu Regional de São João Del Rei.

Em tudo encontramos a marca da religiosidade e de seus rituais, da sua liturgia. No museu mesmo são encontrados muitos instrumentos musicais e na cidade é famosa a Lira Sanjoanense, sempre presente nas solenidades religiosas, que ocorrem especialmente na semana santa. É a mais antiga orquestra do gênero, nas Américas, sendo superada apenas por uma alemã. Foi fundada em 1776 e as suas atividades nunca foram interrompidas. Ainda dois indicadores do município. O seu IDH é de 0758 e o PIB per capita gira em torno de R$ 13.500.
Alguns dados de São João Del Rei, constantes em seu Museu Regional.