quinta-feira, 25 de abril de 2024

Solo de clarineta vol. I. Érico Veríssimo. Memórias.

Ao terminar a releitura de O tempo e o vento, decidi também reler Solo de clarineta, o livro de memórias de Érico Veríssimo. O objetivo era o de ter um contato maior com o escritor para ter uma melhor compreensão de sua obra. Ao término do primeiro volume já me confesso por satisfeito. Veríssimo é também um grande memorialista.

Como nos livros da trilogia de O tempo e o vento, também na contracapa de Solo de clarineta existe uma pequena mas ilustrativa síntese da obra. Vamos a ela: "Livro de memórias peculiar, Solo de clarineta entrelaça a vida do escritor e sua obra. Nele, Érico Veríssimo reflete sobre as raízes de sua criação literária, confrontando-a com sua própria vida.

Solo de clarineta vol. I. Memória. Companhia das Letras.

Neste primeiro volume, que é também um testemunho sobre a história brasileira e mundial na primeira metade do século XX, Érico rememora sua vida desde a infância até a criação da saga O tempo e o vento. O leitor acompanha as lembranças do processo de formação de vários de seus personagens inesquecíveis e se familiariza com o dia-a-dia desse grande contador de histórias: editor, criador de coleções editoriais decisivas na formação intelectual brasileira, tradutor, autor de livros infantis e juvenis, radialista, diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana e incansável paladino da liberdade". Lembrando que Érico Veríssimo nasceu em Cruz Alta no ano de 1905 e morreu em Porto Alegre em 1975.

O primeiro volume de Solo de clarineta é do ano de 1973. Tem apresentação de José Otávio Bertaso, da Editora Globo e seu ex patrão e Prefácio de Hildeberto Barbosa Filho, mestre e doutor em Literatura Brasileira. A apresentação de Bertaso é muito interessante e fala da recepção da obra do escritor junto ao clero, este representado por um padre jesuíta.

Este primeiro volume tem seis títulos: l. Álbum de família; 2. A primeira farmácia; 3. A ameixeira-do-Japão (nêspera); 4. A segunda farmácia; 5. Em busca da casa e do pai perdidos; O mausoléu de mármore. Ao final são apresentadas cronologias cruzadas e uma pequena biografia do escritor. As memórias são apresentadas de forma mais ao menos linear, do nascimento até os anos de 1950. O resto fica para o segundo volume.

No tópico de número 1, a família Veríssimo é apresentada: os avós paternos e maternos, o pai e a mãe e os seus desentendimentos. muitas páginas são preenchidas com o traçado de um perfil de seu pai, Sebastião Veríssimo. Um dado a destacar - ele possuía em sua casa - uma biblioteca com mais de dois mil exemplares. Isso na provinciana Cruz Alta daqueles tempos. A maioria dos personagens de O tempo e o vento procedem desse período. São personagens muito próximos à família.

A primeira farmácia, o tópico de numero 2, é a farmácia de Sebastião Veríssimo, que só teve fôlego financeiro enquanto o pai de Sebastião, o Dr. Franklin, lhe cobria as duplicatas vencidas. Depois da ruína financeira veio também a ruína do casamento. Abegahi, com a sua máquina Singer, entra em cena. A farmácia tinha uma estrutura meio hospitalar. Era um grande ponto de encontro, dos "intelectuais" de Santa Fé, digo, de Cruz Alta. Outros tantos personagens tem ali a sua construção. Neste tópico encontramos uma das mais belas passagens da obra de Veríssimo, quando ele põe diante de si a função de escritor: "Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender uma lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto" (página 65).

A ameixeira-do-Japão, título do terceiro tópico, é um retorno seu à sua mais remota infância. A ameixeira-do-Japão é um pé de nêspera que existia no terreno onde se situava a farmácia de seu pai. Lembranças e a construção do imaginário. Nesse tempo adquiriu os princípios básicos de sua formação, como o valor do trabalho e o equilíbrio financeiro entre ganhos e gastos. Vizinhança e os primeiros namorinhos são lembrados, além das questões do despertar da sexualidade. Lembra de suas leituras e do cinema, dos filmes que lhe deram a visão sobre o homem americano, branco, anglo saxão e protestante. A infância ainda o remete à Primeira Guerra Mundial, à sua ida a Porto Alegre e o internato no Colégio Cruzeiro do Sul e uma reprovação em matemática. Enquanto estava em Porto Alegre, em casa as coisas só pioravam; falência da farmácia e a derrota de seu pai para a bebida. Isso fez com que ele tivesse que voltar para Cruz Alta. No internato teve a sua formação literária bem iniciada. Era a sua área de interesse.

A segunda farmácia, título do tópico número 4, ela já é de sua propriedade. Teria que fazer alguma coisa para ajudar a mãe nas despesas do sustento da família. Tinha a farmácia em sociedade. O fiado levou também esta à ruína. Além da rotina da farmácia, dava aulas de literatura e de inglês e terá os seus primeiros artigos publicados. 1930 leva seu pai para São Paulo e ele para Porto Alegre, mesmo sem um destino. Arrumara também uma namorada, Mafalda Volpe, com quem se casaria em breve.

No quinto tópico, em busca da casa e do pai perdidos, o encontramos em Porto Alegre, onde irá trabalhar na revista O Globo. Problemas de saúde o impedem de ser um bom freguês do bar Antonello e sua rodinha de intelectuais. Na editora Globo encontra, em um de seus donos, Henrique Bertaso, uma amizade de vida inteira. Vem o casamento e os filhos e o primeiro livro Fantoches. Passará a trabalhar apenas no departamento editorial da editora e os livros seguem já em série. Olhai os lírios do campo, o tornará um escritor já meio consagrado. Lembra da Segunda Guerra Mundial e os seus reflexos em seu ânimo, estes expressos no livro Saga.  Depois da guerra empreenderá a sua primeira viagem aos Estados Unidos, para onde voltará mais tarde num cargo diplomático na União Panamericana. O ano de 1956 o trará de volta ao Brasil. Um bom espaço das memórias é dedicado à concepção e gênese de O tempo e o vento. A ideia é antiga, de 1935, ano do centenário da Revolução Farroupilha. A escrita começa em 1947. Os personagens são construídos ao longo desse tempo e eles ganham a sua primeira descrição.

O mausoléu de mármore, título do sexto tópico, é uma referência ao local de seu trabalho por cerca de três anos na sede da União Panamericna, em Washington. A palavra mausoléu, certamente é um indicativo de seu ânimo para com o trabalho burocrático, à frente do departamento de cultura dessa entidade. Fala do seu cotidiano de trabalho, de suas viagens e de seus discursos. Conclui afirmando, em mais uma demonstração de pouca afeição ao trabalho burocrático, que "Lázaro saiu do mausoléu". Neste tempo já iniciara a escrita de O arquipélago, a terceira e última parte de O tempo e o vento. O resto vem no volume de número 2.

Deixo ainda um post com a resenha de cada um dos sete volumes da trilogia:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/04/os-sete-volumes-de-o-tempo-e-o-vento.html


sexta-feira, 19 de abril de 2024

Os sete volumes de O TEMPO E O VENTO. Uma resenha de cada um deles.

Li, pela primeira vez O tempo e o vento em 2006, quando ainda me encontrava em sala de aula. A leitura me marcou profundamente. Agora, na qualidade de "administrador de tempo livre", eu reli a obra. Só tenho a dizer que ela é monumental e um milhão de adjetivos a mais. É difícil ter uma obra mais formativa do que esta. A estratégia usada pelo autor para externar as mais diferentes visões de mundo é a de dar voz aos personagens que são adeptas dessas diferentes visões. Assim temos visões religiosas, de livre pensadores, de agnósticos, de comunistas, de anarquistas, de positivistas, de conservadores... Eles, em ardorosos debates, que geralmente ocorrem no Sobrado da família Terra-Cambará, analisam os principais fatos da história local (Santa Fé), do Rio Grande do Sul, do Brasil e do mundo, a partir da formação do continente sulino do Rio Grande.

Missões, Guerras contra os castelhanos, Revolução Farroupilha, Guerra do Paraguai, abolição, imigrações, Revolução Federalista, em que maragatos e chimangos se degolaram, Coluna Prestes, a Revolução de 1923, a de 1930, que colocou Getúlio Vargas no poder, a constitucionalista de 1932, as tentativas de golpes dos comunistas e dos integralistas, a Primeira Guerra Mundial, a ascensão dos regimes autoritários na Europa e o Estado Novo no Brasil, além da Segunda Guerra Mundial. São algo em torno de 2.500 páginas, que -, creio, ser o nosso Guerra e Paz, a fabulosa obra de Tolstói. A finalidade do presente post é deixar em um só lugar o acesso aos sete volumes da obra:

1. O tempo e o vento (parte I). O continente (vol. 1):

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-1-o-continente-vol-1.html

2. O tempo e o vento (parte I). O continente (vol.2):

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-parte-i-o-continente.html

3. O tempo e o vento (parte II). O retrato (vol. 1):

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-parte-ii-o-retrato.html

4. O tempo e o vento (parte II). O retrato (vol. 2):

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-parte-ii-o-retrato_27.html

5. O tempo e o vento (parte III). O arquipélago (vol. 1):

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/04/o-tempo-e-o-vento-parte-iii-o.html

6. O tempo e o vento (parte III). O arquipélago (vol. 2):

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/04/o-tempo-e-o-vento-parte-iii-o_13.html

7. O tempo e o vento (parte III). O arquipélago (vol. 3):

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/04/o-tempo-e-o-vento-parte-iii-o_17.html 

Meus amigos, minhas amigas. Boa leitura. De preferência a obra por inteiro. 

quarta-feira, 17 de abril de 2024

O tempo e o vento (parte III). O arquipélago vol. 3. Érico Veríssimo.

Mais uma vez inicio um post com o escrito na contracapa do livro. Trata-se agora, do terceiro volume de O arquipélago, ou do sétimo e último dos volumes de toda a obra de O tempo e o vento: "A trilogia O tempo e o vento chega ao fim. Os caudilhos gaúchos se rebelam, tomam a capital federal e inauguram uma nova era política no Brasil.

O tempo e o vento (parte III). O arquipélago (vol. 3). Companhia das Letras.

Na cidade fictícia de Santa Fé, a família Terra Cambará é abalada por novos conflitos. Toríbio rompe com o irmão e vai ao encontro de seu inapelável destino. Nessa atmosfera tumultuada, Sílvia, a amada do escritor Floriano, revela seu mundo num diário surpreendente, impregnado pela época sombria da Segunda Guerra Mundial. Tudo converge para uma encruzilhada de tempos e memórias: Rodrigo Cambará tem um acerto de contas definitivo com o filho, Floriano, que começa a escrever o grande romance de sua vida".

O tempo histórico retratado é o da Revolução de 1930, a que levou Getúlio Vargas ao poder. Continua com a Revolução Constitucionalista de 1932, que terá um soldado Cambará em suas fileiras - o Toríbio, mesmo contra Rodrigo, o seu irmão e figura em ascensão dentro do getulismo. A discórdia na família será total e a ruptura definitiva ocorrerá com a decretação da ditadura Vargas pelo "Estado Novo", ao qual Rodrigo irá aderir. A parte histórica terá continuidade até 1945, com destaque para a política internacional, com uma análise da Segunda Guerra Mundial. 

Os grandes personagens deste último volume, possivelmente o mais introspectivo (creio que dá para dizer - psicanalítico), continuará com Rodrigo sendo o protagonista, secundado, de perto pelo filho Floriano, o aprendiz de escritor e que agora já tem traçado todo o plano para o seu grande livro. Outros personagens estão em ascensão, com destaque para Sílvia, esposa de Jango, o fazendeiro, com o seu amor dividido entre o marido (o sexo) e os sentimentos e afetos voltados para Floriano. Que drama! São ainda personagens, os outros filhos de Rodrigo: o comunista Eduardo e a fútil Bibi e o marido Sandoval, além dos personagens tradicionais do Sobrado, entre eles Terêncio Prates, o sociólogo conservador formado pela Sorbonne, às voltas com a interpretação do Rio Grande do Sul e Stein o ardoroso defensor do comunismo, porém, na sua vertente trotskista. Por essa razão lhe estará reservado um final trágico. E ainda, o irmão Zeca, um filho de Toríbio, um religioso marista. Estes personagens interpretarão os fatos históricos, de acordo com as suas visões de mundo. Uma riqueza extraordinária nos diálogos estabelecidos.

Os títulos do livro são os seguintes: 1. O cavalo e o obelisco; 2. Reunião em família V; 3. Caderno de pauta simples; 4. Noite de Ano-Bom; 5. Reunião de família VI; 6. Caderno de pauta simples; 7. Do diário de Sílvia; 8. Encruzilhada.

O grande tema do primeiro tópico será a Revolução de 1930, que mais uma vez levantou o Rio Grande em rebelião, junto com outros estados aliados. Desta vez serão vitoriosos. Entre os vitoriosos estará Rodrigo Cambará, que segue junto com Vargas, no mesmo trem, para o Rio de Janeiro. Amarrarão os seus cavalos no Obelisco. Mudanças profundas no Brasil e também na família Cambará. Rodrigo se transformará num personagem urbano, adotando as  suas formas de comportamento. Segundo Rodrigo, a finalidade do Estado Novo era a de garantir a melhoria de vida do povo brasileiro e a busca de uma autonomia econômica. Justificava assim a sua adesão.

Na reunião de família V - Rodrigo, Floriano e Terêncio Prates, o sociólogo conservador, discutirão os temas do momento, ou seja, os do fim dos anos trinta e os primeiros da década de 1940. Floriano dará uma aula extraordinária sobre a evolução política do Rio Grandes do Sul (Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e o positivismo) e os conflitos entre chimangos e maragatos. Me parece não ser um erro afirmar que o espírito maragato sempre esteve presente na história do Rio Grande e nunca conseguiu ser abafado pelo situacionismo chimango positivista. A ascensão dos regimes autoritários na Europa terão acaloradas discussões e as simpatias de Terêncio. No Brasil o destaque irá para a Revolução Constitucionalista de 1932, para a qual Toríbio se bandeou; para a Constituição de 1934; para as tentativas autoritárias de comunistas e integralistas e a decretação do Estado Novo, em 1937.

Em itálico, no terceiro tópico, Floriano tece as linhas mestras para o seu grande romance. Para tal recorrerá a Maria Valéria e a memória dos Terra. Ana Terra, Bibiana, Luzia, a teiniaguá e mãe de Licurgo. Além disso serão rememoradas as conversas com o tio Bicho, e ainda serão buscados recortes de jornal da época assim como serão ouvidas outras vozes para a reconstituição desse período. O grande romance de Floriano já tem a sua elaboração mental.

A noite de Ano-Bom, o quarto tópico, na realidade não foi uma noite tão boa. O fato da noite foi o anúncio do contrato de casamento entre Sílvia e Jango, um casamento que por suas incompatibilidades jamais poderia dar certo. Também há a perturbadora presença de Floriano nessa relação. Na festa também será lembradas a ida de Stein para combater na Guerra Civil espanhola. Mas o destaque mesmo serão os debates em torno do Estado Novo. Toríbio não aguenta os discursos em seu louvor e se retirará bruscamente do Sobrado, arrastando consigo o jovem Floriano. O final da noite será marcado por uma terrível tragédia na família Cambará. A tragédia ocorrerá num baile de chinas, no Buraco do Libório.

A próxima reunião de família, a de número seis, será marcada pelos debates entre Rodrigo, Floriano, Tio Bicho e Terêncio Prates, o sociólogo da Sorbonne. O tema será o livro de Terêncio - Tradição e hierarquia -, em que o autor defende a sua visão da formação histórica do Rio Grande e a "natural" distribuição de suas terras. A reforma agrária será o grande tema, nesse momento do debate. Trata-se de um rico capítulo sobre a formação histórica do Rio Grande. Ainda há a evocação da lembrança da expulsão de Stein do Partido Comunista.

No caderno de pauta simples Floriano incorpora às suas reflexões a experiência vivida nos Estados Unidos. Belíssimas análises sobre a economia e a cultura calvinista desenvolvida naquele país, bem como seu modo de vida, o famoso American way of life. As reflexões mais profundas, no entanto, estão voltadas para a Segunda Guerra Mundial e para os horrores das execuções nazistas nos campos de concentração. E, ao final do capítulo, uma pergunta: O que os Estados Unidos tem a oferecer ao mundo?

Possivelmente o capítulo das anotações do diário de Sílvia se constituem num dos mais importantes capítulos da literatura brasileira. Toda a obra de O tempo e o vento é marcada por encontros e desencontros entre pessoas. O capítulo sobre os escritos de Sílvia são, no entanto, marcados por encontros consigo mesma. Um capítulo sobre casamento, sonhos, desejos, anseios e frustrações que doem na alma feminina. Ah Jango! Ah Floriano! Ah as convenções! Ah, o mal-estar gerado pela cultura! Tudo escrito sob o ferrolho de sete chaves. E um único leitor possível: Floriano.

Ah, as mulheres do Érico Veríssimo. Ana Terra, Bibiana Terra, Maria Valéria, Flora Quadros. Mulheres esteio, mulheres fortes. mulheres afirmadas e estagnadas na impermeabilidade do culto às tradições. Sempre sofrem caladas! As dores da alma! Que estudo fantástico não seria este - o da visão da alma feminina em Veríssimo. Grande diário de Sílvia. E que mistura fantástica é esta - a da constituição da família Terra - Cambará e, com a incorporação de Flora, Os Quadros. E a fantástica recomendação de Rodrigo ao filho Floriano: "De vez em quando solta o Cambará". Ele, Floriano, um Terra-Cambará-Quadros.

Encruzilhada é o capítulo Final. Um capítulo de acerto de contas. Mais um capítulo profundamente psicanalítico. Stein não suportou a sua expulsão do Partido Comunista. Pior que a expulsão, a acusação de traidor. Tio Bicho lhe dará o funeral e o sepultamento. O irmão Toríbio, apesar das circunstâncias, não lhe recusará a encomendação cristã. Os personagens do Sobrado lhe farão as despedidas. O fato é escondido de Rodrigo. O ponto alto do livro e de toda a obra é o acerto de contas entre Rodrigo e Floriano. Uma reconciliação em alto estilo. Profundamente catártica, profundamente libertadora. Ao final tudo estará quitado entre eles. Rodrigo tem melhoras em seu quadro de saúde e a sua transferência para o Rio de Janeiro está sendo preparada. É a melhora da véspera. Sobra a encruzilhada da divisão da herança. Lembrem-se que nessa divisão há um comunista e um oportunista.

E o aprendiz de escritor começará a escrever a sua grande obra, a grande dívida do escritor Floriano Cambará, mais Terra-Quadros do que Cambará. É um acerto com a sua própria história, com a sua Santa Fé, com o seu Rio Grande do Sul, com o seu Brasil e com o mundo todo, na busca de um grande significado para a vida, entre tantas possibilidades.  E não esqueça: "De vez em quando solta o Cambará.

Terminei a leitura dos sete livros de O tempo e o vento em 6 de janeiro de 2006. Ainda estava em sala de aula. Terminei a fantástica aventura da releitura em 12 de abril de 2024. Foi uma longa e maravilhosa viagem. Deixo com vocês as resenhas. Aqui, como de hábito, a do livro anterior, o vol. 2. de O arquipélago.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/04/o-tempo-e-o-vento-parte-iii-o_13.html


  

sábado, 13 de abril de 2024

O tempo e o vento (parte III). O arquipélago (vol. 2). Érico Veríssimo.

Como nos volumes anteriores, procedo da mesma forma com este. Tomo, da contracapa do livro, a sua pequena síntese: "No segundo volume de O arquipélago, os conflitos delineados no primeiro se adensam. A revolução de 23 chega ao fim e o Rio Grande do Sul é pacificado, mas por pouco tempo. As novas contradições do Brasil chegam à família Terra Cambará: guarnições militares das Missões se rebelam e Toríbio, o irmão mais velho de Rodrigo, une-se a elas na formação de uma coluna revolucionária que tem "um ilustre desconhecido" à frente, um certo capitão Luiz Carlos Prestes... No plano da memória, em 1945, o escritor Floriano Cambará se deixa tomar por sua paixão pela cunhada, desenhando um conflito ameaçador na já precária paz familiar".

O tempo e o vento (parte III). O arquipélago (volume 2). Companhia das Letras.

É a década de 1920 que está sob análise. Tudo está fermentando. Tudo está em ebulição. As insatisfações populares já não mais conseguem ser contidas. Setores médios também se rebelam. É a revolução dos tenentes, clamando por uma nova ordem política, puxada pelas transformações econômicas e sociais que estão em curso. O país sofre os impactos da industrialização e da urbanização. Cultura e costumes também estão inscritas nesta ordem das coisas. Novos atores sociais, comerciantes e industriais também estão em busca de protagonismo social. Já os estancieiros vem perdendo poder, além de verem as suas famílias se desintegrarem, como é o caso da família Terra Cambará.

Vejamos os títulos desse segundo volume: 1. Lenço colorado (Continuação). É o lenço maragato da descentralização e da autonomia dos estados federados; 2. Reunião de família III; 3. Caderno de pauta simples; 4. Um certo major Toríbio. É o Bio na marcha da Coluna Prestes; 5. Reunião de família IV; 6. Caderno de pauta simples.

O tópico número 1 - uma continuação do primeiro volume - lenço encarnado (capítulos 18 a 37) - é dedicado à revolução de 1923. É Assis Brasil contra Borges de Medeiros. Borges terá a seu lado nomes como os de Flores da Cunha e Osvaldo Aranha. Licurgo será o comandante das forças revolucionárias de Santa Fé. Agora ele peleará ao lado dos maragatos, situação esta, que ainda lhe dá muitos constrangimentos. Rodrigo e Toríbio também participam. Eles chegam a tomar Santa Fé, mas a ocupação não se sustenta e eles batem em retirada. Nessas escaramuças Licurgo será a grande baixa dos revolucionários de Santa Fé. A revolução dura todo o ano de 1923 e a paz será selada pelo acordo de Pedras Altas. Em ato heroico, Licurgo é levado ao Angico, para ali receber sepultura digna.

O segundo tópico - Reunião de família III, foi para mim, uma das passagens mais significativas de toda a obra. Tio Bicho e Floriano serão os dois grandes personagens desse momento do livro. Floriano, lembram, é o aprendiz de escritor, enquanto que o Tio Bicho é o grande autodidata da obra, uma espécie de anarquista, meio pacifista, se é que isso existe (Que o diga Don Pepe). Quando fiz a resenha do outro livro de Veríssimo, O Incidente em Antares, eu fiz uma referência, dizendo que com este livro eu iniciei a introdução de textos de literatura em minhas aulas, lá pelo final dos anos 1970. Agora devo dizer que, com O tempo e o vento e, em particular, com este segundo volume de O arquipélago e, mais especificamente ainda, com este - Reunião de família III, eu obtive o meu maior e melhor êxito neste tipo de trabalho. Eram alunos e mais alunos repetindo os questionamentos com os quais Tio Bicho fez Floriano se fazer as interrogações fundamentais diante de uma vida. Uma experiência simplesmente inesquecível.

Estes questionamentos são retomados no tópico de número 3, acrescidos de uma experiência que Floriano teve ao viver por alguns anos nos Estados Unidos. O aprendiz de escritor faz assim interessantes reflexões sobre a cultura dos Estados Unidos. Como escritor ele decide manter, em sua obra, um encontro consigo mesmo, com a sua Santa Fé e com o seu Rio Grande do Sul. Mais uma vez um arcabouço de O tempo e o vento.

Um certo major Toríbio, o tópico de número 4, mostra o mesmo, mais uma vez envolvido em um processo revolucionário, desta vez como integrante da Coluna Prestes. É o mais longo tópico do livro, que inicia com a prematura morte de Alicinha, para o desespero de Rodrigo, que não cansa de se culpar. Aliás, como a culpa, o remorso e o arrependimento acompanham a vida de Rodrigo! Passa também pela vida da pacata cidade de Santa Fé e pelas conversas no Sobrado, onde serão debatidos os grandes temas mundiais e brasileiros desse período histórico. Os personagens serão o Tio Bicho, Floriano, o intelectual, ideologicamente indefinido, Eduardo, o filho comunista de Rodrigo e o irmão Toríbio, o filho assumido por Toríbio, que se tornou irmão marista. Mas, o grande tema do Sobrado será a coluna Prestes, da qual Toríbio, em sua volta para a cidade, será o grande narrador. Prestes, o Cavaleiro da Esperança, é o grande candidato a se transformar no primeiro herói brasileiro.

Floriano será o grande personagem do tópico de número 4. Nele serão mostradas as suas grandes perturbações que o acompanham, especialmente, a sua obsessão impossível por Sílvia, a cunhada. Mas o grande momento dessa reunião em família será uma espécie de acerto de contas com o pai. Este, por sinal, terá uma recaída em sua saúde, pelas emoções causadas com a passagem de Sônia em frente do Sobrado, atendendo a um pedido seu. Floriano também comparece à inauguração de um busto em homenagem ao cabo Lauro Caré, por sua participação na campanha da FEB, na Itália, na Segunda Guerra Mundial. É mais um membro da família Cambará, não de sua linhagem oficial, mas da paralela. No busto do cabo Lauro se leem marcantes traços de Licurgo Cambará, que ao longo de sua vida teve em Ismália Caré, a sua eterna amante.

No - caderno de pauta simples - mais uma vez encontraremos Floriano como o seu grande personagem, num acerto de contas consigo mesmo e num encontro com as suas memórias: a sua adolescência, sua sexualidade, encontros e desencontros com o pai e as revelações inesperadas (seriam surpreendentes?), de seu tempo de internato no colégio em Porto Alegre. Os sonhos com a Salamanca do Jarau, da busca da fortuna sexual pairam sobre todo o tópico.

Deixo ainda a resenha do primeiro volume de O arquipélago.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/04/o-tempo-e-o-vento-parte-iii-o.html


terça-feira, 2 de abril de 2024

O Tempo e o vento (parte III). O Arquipélago (Vol. 1). Érico Veríssimo.

Com O arquipélago, a trilogia de O tempo e o vento, chega à sua parte final, ou melhor, ao início de sua parte final. Vejamos a pequena síntese que encontramos na contracapa do primeiro volume: "O arquipélago, última parte da trilogia O tempo e o vento, encerra a saga da família Terra Cambará. Neste primeiro volume, o Brasil, o Rio Grande do Sul e Santa Fé se modernizam. Não cabem mais nos planos das oligarquias tradicionais. Os Cambarás retiram o apoio ao governo e aderem à revolução libertadora em 1923: retomam o caminho das armas e das coxilhas ao lado dos maragatos, antes arquiinimigos.


O tempo e o vento (parte III). O arquipélago (vol. I). Companhia das Letras. 

As peripécias e paixões da luta são narradas pela perspectiva do escritor Floriano Cambará, que em 1945, com a queda de Getúlio Vargas, relembra os passos de sua vida, o tempo que perdeu e a memória que conquistou". Um país e uma família em transformação. Um arquipélago de ilhas desconectadas? Seria?

Vejamos os títulos desse primeiro volume: 1. Reunião de família I; 2. Caderno de pauta simples; 3. O deputado; 4. Reunião de família II; 5. Caderno de pauta simples; 6. Lenço encarnado. O período de abrangência é o de 1920, até o fim do governo Vargas. Embora Rodrigo Terra Cambará ainda seja o personagem central, junto com Flora, Licurgo, Toríbio e Aderbal Quadros, a centralidade vai se transferindo para os filhos, para a nora e para o genro do novo quadro familiar. A família deixa de ser a tradicional família patriarcal. Jango e Sílvia, Floriano, Eduardo, Alicinha, Bibi e Sandoval, aos poucos, são transformados em protagonistas. Roque Bandeira, o Tio Bicho é um personagem que vai ganhando grande ascendência, assim com o irmão Toríbio, um filho, como diríamos, extraviado de Toríbio.

A reunião de família I, ocorre no Sobrado, no dia 25 de novembro de 1945, quando Rodrigo tem o seu quadro de saúde agravado por um edema pulmonar agudo. O fato teria ocorrido após um encontro com Sônia, vinda do Rio de Janeiro para Santa Fé. Rodrigo era incorrigível. Da reunião de família fazem parte Rodrigo e Flora, Maria Valéria ( a consciência viva do Sobrado) os filhos Jango e a nora Sílvia, com Jango metido a fazendeiro, Floriano, um aprendiz de escritor, Eduardo, o filho comunista, stalinista e prestista e Bibi, a filha e o seu marido Sandoval, louco para usufruir de uma boa herança a ser gasta com a deliciosa vida no Rio de Janeiro e a doce, e predileta de Rodrigo, Alicinha. É a reunião de uma família já totalmente desestruturada.

O caderno de pauta simples são os ensaios de Floriano, o aprendiz de escritor, em busca de afirmação em sua almejada carreira. Em Santa Fé havia a Lanterna de Diógenes, a livraria da cidade, onde em seus tempos de infância, Floriano comprava os tais cadernos de pauta simples que o aproximaram e familiarizaram com a escrita. Que profissão danada. Tio Bicho o aconselha para que ele promova um grande encontro seu com as suas raízes em Santa Fé, com o Rio Grande e com o Brasil. Seria o projeto de O tempo e o vento?

O terceiro título - O deputado - é o mais longo do livro. Rodrigo é o deputado, deputado estadual que marca o rompimento da família Terra Cambará com o oficialismo, ou seja, com Borges de Medeiros, o eterno governador do Rio Grande do Sul. Aqui vale lembrar, que em 1893, quando começa a Revolução Federalista, começa também a narrativa de O tempo e o vento. No Sobrado, encontramos Licurgo Cambará, resistindo bravamente, cercado pelos federalistas, os maragatos de lenço vermelho. Para Licurgo esta tarefa não foi nada fácil. Ela implicava em reconciliações praticamente impossíveis de se realizarem. A passagem do deputado Rodrigo por Porto Alegre enseja a Érico veríssimo fazer uma atenta observação da política e da vida na capital do Rio Grande do Sul. O deputado Rodrigo e os seus ímpetos!

A reunião de família II é simplesmente uma continuação, onde são narrados os acontecimentos dos dias 27 e 28 de novembro de 1945. O estado de saúde de Rodrigo melhorou. Em Santa Fé ocorre um comício em favor do Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da UDN à presidência, atrapalhado, e sob grande torcida dos Cambarás, por uma chuva torrencial. No Sobrado, a reunião é marcada pelas profundas divergências ideológicas entre os componentes da família, com acaloradas discussões.

Os ensaios do futuro escritor também tem continuidade. Floriano agora se dedica às memórias do Sobrado, com destaque para a peste bubônica e as histerias em torno da caça aos ratos.

Lenço encarnado é o belo capítulo final deste primeiro volume de O arquipélago. O Rio Grande do Sul está farto dos seguidos mandatos de Borges de Medeiros (Acabara de ganhar o quinto mandato). Os ideais federalistas de 1893 novamente se erguem, agora sob o comado de Assis Brasil. É janeiro de 1923. Um ano inteiro de escaramuças, mas longe da violência de 1893-1895. Borges havia rompido com o governo de Artur Bernardes, mas como este não intervém em favor dos federados, seus ideais revolucionários arrefecem. Saudosos, os velhos revolucionários estão a lamentar os tempos em que se fazia Revolução de verdade. E se interrogavam: Covardia ou avanços do entendimento civilizatório? O lenço encarnado tem continuação no segundo volume.

Deixo a resenha do volume anterior, o volume número dois de O Retrato.