No dia 19 de agosto de 2019 - (olhem o acaso, começo a escrever este post, exatamente dois anos após, no dia 19 de agosto de 2021), fui assistir a uma fala de Leonardo Padura, no espaço cultural Capela Santa Maria, aqui em Curitiba. Tive enormes dificuldades em entender o idioma, mas lembro que falava muito de Cuba, de Mário Conde, personagem de muitos de seus romances, de ser um escritor cubano, que morava e escrevia em Cuba, da sua insularidade, do Malecón e da "Água por todos os lados". Na oportunidade comprei o seu livro Hereges, pensando em ganhar um autógrafo do escritor.
A minha foto com o Leonardo Padura, agosto de 2019.Como havia longas filas, contentei-me em tirar uma foto a seu lado. Por esses dias, visitando a sua obra, deparei com o título Água por todos os lados. Lembrei-me da palestra e não tive dúvidas, comprei o livro e, de imediato, comecei a sua leitura. Eu sempre leio acompanhado de um caderno para fazer apontamentos. Entre os meus apontamentos sobre este livro de Padura, tem inúmeros adjetivos, junto às anotações sobre os capítulos: fantástico, maravilhoso, esplêndido, extraordinário, e por aí vai. Que livro maravilhoso! Estou falando de Água por todos os lados, de Leonardo Padura, numa edição da Boitempo, de 2020.
Creio que na terceira parte do livro - Vocação e possibilidade - temos uma síntese da intenção do autor com este seu livro: "Ser cubano. Ser um escritor cubano. Ser um escritor cubano que vive em Cuba. Creio que a esta altura é evidente que essa é a divina trindade entre cujas condicionantes se moveu e se move toda a minha vida e em torno das quais, de um modo ou de outro, giram todos os textos que reuni neste livro, escritos num período de quinze anos e selecionados entre muitos outros de caráter jornalístico ou ensaístico, redigidos no período em que comecei a escrever O romance da minha vida, por volta do ano 2000, até o dia em que Lucía e eu fechamos o cadeado desta coletânea, em 2018" (Página 229).
Água por todos os lados. Leonardo Padura. Boitempo, 2020. Tradução: Monica Stael.
O livro tem uma breve apresentação sob o título - Descomedimento, singularidade e escrita. Cuba é realmente um país singular: independência tardia (1898), tutela militar americana, a revolução de 1959 e a sua afirmação socialista, em 1961. E, acima de tudo, uma forte identidade cultural, oriunda em grande parte, de sua rica literatura. Sentimento de pertencimento.
O cerne do livro é constituído por três partes: I. A maldita circunstância da água por todos os lados (Padura define: "Porque o muro do Malecón havanês constitui a evidência mais palpável de nossa insularidade geográfica e existencial: nessa longa serpente pétrea, sente-se como em nenhum outro lugar, a evidência de que vivemos cercados de água, contidos pela água, condição que ninguém definiu melhor que o poeta Virgílio Pinera: "A maldita circunstância da água por todos os lados"" (Página19). O Malecón é um paredão de 8 quilômetros de extensão, que vai do centro histórico até o Vedado, passando pelo Centro Habana. Ele tem um metro de altura e 60 cm. de largura. É ladeado por quatro metros de calçada e seis pistas em sua avenida. Foi construído em 1901. Ele marca o começo e o fim. A terra e o mar.
Esta primeira parte tem sete subtemas: 1. A cidade e o escritor (O Malecón, Mantilha, o seu bairro e mais outros onze tópicos de seu envolvimento com Havana, os seus escritores de um modo todo especial); 2. O reguetón de Havana (Um profundo lamento sobre os valores da juventude de Havana. Cantam uma música "plástica, maçante, agressiva e grosseira". Traça ainda um excelente panorama histórico da Revolução, focando na crise dos anos 1990, com o fim da URSS e sobre os jeitos de driblar os problemas que persistem); 3. A maldita circunstância da água por todos os lados (um dos focos é a busca por saídas da ilha, especialmente a de seus escritores); 4. A geração que sonhou com o futuro (É a geração dos anos 1970, a da educação massiva do ensino superior e os seus sonhos, suas decepções e o enfrentamento da crise dos anos 1990. É um dos pontos altos do livro; 5. Sonhar em cubano: crônica em nove innings. (O grande tema é o beisebol, o esporte nacional, que é uma de suas paixões); 6. Fotos de Cuba (Como se vive em Cuba, hoje em dia); 7. Eu gostaria de ser Paul Auster (Sobre a relação com os Estados Unidos, especialmente a de seus escritores).
A segunda parte leva por título - Para que se escreve um romance? Esta parte é bastante autobiográfica. Conta de sua trajetória profissional e a sua opção em ser romancista e de como vive um romancista que vive e escreve em Cuba. Tem cinco tópicos principais que focam os seus principais livros. 1. O sopro divino: criar um personagem (Mário Conde é este personagem, presente em oito de seus romances); 2. O romance que não foi escrito. Adendos a O homem que amava os cachorros (um rico relato de suas pesquisas para a construção dos principais personagens desse romance: Trótski e o seu assassino Ramón Mercader. Este deve ser o seu livro mais conhecido. Cinco anos para escrevê-lo); 3. A liberdade como heresia (segue o mesmo esquema de mostrar as pesquisas sobre os personagens e situações do romance - Hereges -, no caso, os judeus da Amsterdã, dos meados do século XVII. Dois ganham um destaque maior: Rembrandt e Espinosa); 4. O romance de sua vida. José María Heredia ou a escolha da pátria. (mais uma vez o foco é a construção do personagem do romance - O romance da minha vida); 5. Para que se escreve um romance? (Trata-se de um verdadeiro passeio pela literatura universal, buscando os motivos pelos quais grandes autores escreveram os seus romances. Também aparecem os motivos pelos quais ele, Padura, escreve. Outro ponto alto do livro). O romance da minha vida será a minha próxima leitura. Os outros dois mencionados eu já li e passo o link da resenha ao final do post.
A terceira parte leva por título - Vocação e possibilidade. São quatro tópicos analisados. 1. Cuba e a literatura: vocação e possibilidade (uma análise muito objetiva do que foi a Revolução cubana, o seu projeto de alfabetização massiva, o facilitar o acesso ao ensino superior e a sovietização da cultura a partir dos anos 1970, sob o lema de "Dentro da Revolução, tudo; contra a Revolução, nada". Teriam sido os piores anos para os escritores. A partir da crise dos anos 1990 e com o fim da URSS, os controles foram afrouxados); 2. Revolução, utopia e liberdade em "O século das luzes" (O século das luzes é um romance político/histórico, escrito por Alejo Carpentier em 1958, portanto, antes da Revolução cubana. Nele o autor mostra suas decepções com as revoluções e a degradação das utopias. Vislumbrei aí um novo romance de Padura, tendo Carpentier como protagonista. Também já localizei o romance para a sua compra); 3. Virgílio Pinera: história de uma salgação (Salgar, no caso, tem o significado de amaldiçoar. Pinera foi, segundo Padura, um "morto civil", o mais proibido dos autores cubanos); 4. Havana nossa de cada dia (são mostradas as diferentes fases da literatura cubana e a sua relação com a Revolução, que termina com "as narrativas do desencanto").
Sem favor nenhum, considero Leonardo Padura um dos maiores escritores vivos de nossos tempos. Ele tem muito claro o porquê da escrita de seus romances. É um dos autores que melhor expressa as angústias existenciais e circunstanciais do ser humano universal, que tem na liberdade o seu bem maior. Deixo a resenha dos dois livros dele, que eu já li:
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/05/o-homem-que-amava-os-cachorros-leonardo.html
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/10/hereges-leonardo-padura.html