terça-feira, 15 de outubro de 2019

Hereges. Leonardo Padura.

No dia 13 de agosto de 2019 fui ao espaço cultural Capela Santa Maria, para assistir a fala do escritor cubano Leonardo Padura. Embora a dificuldade natural do entendimento na comunicação, o que consegui apreender, foi notável, especialmente sua reflexões sobre a ilha de Cuba, o seu país. Já conhecia o escritor pelo seu notável romance O homem que amava os cachorros. Para marcar o evento, comprei outro livro seu, Hereges, movido em grande parte pelo seu título e por tudo o que ele envolve.
Hereges, o monumental livro do Leonardo Padura. Pela BOITEMPO.

Hereges, acima de tudo é um tributo à liberdade individual e um libelo em sua defesa contra todas as arbitrariedades que contra ela são cometidos. Vejamos as últimas frases do livro, na reflexão do detetive Conde, um dos personagens responsáveis pela beleza do livro: "Conde sentia essa história muito familiar e próxima. E pensou que talvez, em suas buscas libertárias, em algum momento Judy Torres houvesse estado mais próxima do que muita gente de uma verdade desoladora: já não há nada mais em que acreditar nem Messias a seguir. Só vale a pena militar na tribo que cada um mesmo escolheu livremente. Porque, se cabe a possibilidade de que até Deus, se é que existiu, tenha morrido, e a certeza de que tantos messias acabaram se transformando em manipuladores, a única coisa que resta, a única que na verdade nos pertence, é a nossa liberdade de escolha. para vender um quadro ou doá-lo a um museu. Para pertencer ou deixar de pertencer. Para acreditar ou não acreditar. E até para viver ou morrer".

O quadro em questão é o centro de todo o romance. Este quadro tem uma assinatura de Rembrandt (1606 -1669), o famoso pintor holandês do século XVII, o século de ouro da Holanda. Este quadro anda pelo mundo. Da Holanda vai para a Polônia, da Polônia vai para Cuba, de Cuba para a Venezuela, da Venezuela para os Estados Unidos e dos Estados Unidos para Londres, onde está em disputa judicial pelos herdeiros poloneses/cubanos do quadro. É em seu torno que o romance é construído, mas repito, o grande tema é a liberdade, a sua busca e as dolorosas consequências que geralmente a acompanham.

O livro está dividido em quatro capítulos ou livros: I. Livro de Daniel. II. Livro de Elias. III. Livro de Judith. IV. Gênesis. Na contracapa temos uma preciosa síntese do livro: "Um garoto judeu refugia-se em Cuba durante a Segunda Guerra Mundial. No século XVII, um aspirante a pintor rompe com os mandamentos de sua religião ao buscar os ensinamentos de Rembrandt. Nos dias atuais, uma jovem cubana busca afirmar suas paixões. Em seu novo romance, Leonardo Padura narra a história dessas três personagens que nutrem, em comum, um herético amor pela liberdade".

Na abertura do livro Padura divulga uma pequena e imprescindível nota do autor. Três parágrafos apenas: "Muitos dos episódios narrados neste livro se baseiam em uma ampla pesquisa histórica e, inclusive, foram escritos com base em documentos de primeira mão, como é o caso de Javein Mesoula (Le fond de l'abîme), de N.N. Hannover, um impressionante e vívido testemunho dos horrores do massacre de judeus na Polônia entre 1648 e 1653, texto com tal capacidade de comover que, com os necessários cortes e retoques, decidi retomá-lo no romance, cercando-o de personagens fictícios. Desde que o li soube que não seria capaz de descrever melhor a explosão de horror e muito menos de imaginar os níveis de sadismo e perversão a que se chegou na realidade vista pelo cronista e por ele descrita pouco tempo depois.

Mas, como se trata de um romance, alguns dos acontecimentos históricos foram submetidos à exigências do enredo dramático, em benefício de sua utilização, repito, romanceada. Talvez a passagem em que realizo esse exercício com maior insistência seja a que trata dos acontecimentos situados na década de 1640, que na realidade, são a soma dos eventos próprios desse momento com alguns da década seguinte, como a condenação de Baruch Spinoza, a peregrinação do suposto messias Sabbatai Zevi ou a viagem de Menasseh Ben Israel a Londres, com a qual conseguiu, em 1655, que Cromwell e o Parlamento inglês dessem aprovação tácita à presença de judeus na Inglaterra, coisa que logo depois começou a acontecer.

Nas passagens posteriores, sim, foi respeitada a estrita cronologia histórica, com pequenas alterações na biografia de alguns personagens inspirados na realidade. porque a história, a realidade e o romance funcionam como motores diferentes".

Os horrores do massacre polonês estão no livro de Gênesis (IV), a história da Holanda e do pintor Rembrandt está no livro de Elias (II) e o restante está no livro tanto de Daniel (I) e de Judith (III). Na contracapa ainda encontramos um nota do Jornal El País: "A combinação perfeita entre os romances histórico, social e policial. Uma aventura de tirar o fôlego. O melhor dos oito romances escritos por Padura nos quais Conde figura como personagem principal... Divirtam-se". Concordo com o divirtam-se e, em parte, com o melhor romance. Eu que não li os oito, ao menos o considerei superior ao O homem que amava os cachorros (A temática é mais profunda). Discordo que Conde seja o personagem principal, mas, em compensação, ele é o mais bonachão e o mais divertido. 
E ainda sobrou tempo para uma tietagem com o escritor.


Eu destacaria dois pontos altos do romance. O item número 5 do livro de Daniel e o de número 3 do livro de Elias. São os pontos mais elevados da compreensão humana, da liberdade e das fontes de sua repressão. Os repressores são os que se arvoram em representantes de Deus. 


Do livro de Daniel destaco este diálogo entre tio e sobrinho: "'A propósito', disse afinal, 'Você sabe porque não me casei com Caridad?' (Joseph - judeu e Caridad - cubana). Daniel se surpreendeu com a súbita entrada num assunto até então nunca mencionado pelo tio, pelo menos com ele, e ao qual, por respeito, jamais tinha se referido. 'Porque ela tem umas crenças e eu tenho outras. E não sou capaz de pedir que ela renuncie às dela. Não tenho esse direito, não seria justo, porque essa fé é uma das poucas coisas que pertencem de verdade a ela, e das que mais a ajudaram a viver. E eu não vou renunciar às minhas. Ela é inculta, mas é uma mulher boa e inteligente, e me compreende. Para nós dois, o mais importante agora é que nos sentimos bem quando estamos juntos, e isso nos ajuda a viver. Acima de tudo, não nos sentimos mais sós. E isso é um presente de Deus. Não sei se do dela ou do meu, mas uma graça divina'". Página 88. 

E do livro de Elias, para concluir, o diálogo se dá entre mestre e discípulo: "Nestes dias fiquei contente por seu avô estar morto. O velho teria sido capaz de matar Amós. Ele sempre foi um lutador, um homem piedoso, e o que mais admirava era a fidelidade e a razão. É, dissera Elias, e o que mais odiava era a submissão". Página 315.
Amós havia delatado o irmão Elias, por este ter escolhido o caminho para ser pintor, contrariando a lei judaica. Também assino com Eric Nepomuceno, o final da orelha do livro: "Fica, então, a advertência ao leitor: ler este livro até o fim pode mudar sua maneira de ver a vida e o mundo. Para melhor, é claro".

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