Mais um texto maravilhoso do meu amigo Sebastião Donizete Santarosa. Quanta lucidez nesse momento de trevas e de antiintelectualismo na educação brasileira e, por extensão, paranaense. Até quando haverá tanta redução nos conceitos da educação e do ensinar? A educação pública pede socorro. A ignorância está sendo festejada. Mas, sem demoras, vamos ao texto.
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"O que são descritores, menina?"
A aluna, bem comportada, competitiva e cumpridora de tarefas, daquelas chatas que não aceitam nota inferior à máxima, aproxima-se de mim e pergunta, à queima-roupa:
"Por que o senhor não está ensinando o que deveria estar ensinando pra nós, professor?"
"Como assim?! O que eu deveria estar ensinando pra vocês e não estou ensinando?"
"Os descritores! O senhor não ensina pra nós os descritores!"
Cabelos brancos já cobrem parte de minha cabeça lenta e cansada:
"O que são descritores, menina?"
"O professor fica ai perdendo tempo só lendo esses poemas, falando desse Drummond, desse outro tal de Pessoa, esses caras que só sabem falar mal de Deus e da vida, e não ensina pra gente o que tem que ensinar!"
E então, no de-repente, me dou conta da inutilidade de minha arte de ensinar, da inutilidade da escola, da ciência, da arte... De fato, a aluna tinha toda razão: pra que serve poesia? Por que dar ouvidos a ineptos idiotas como Pessoa e Drummond? Por que gastar tempo e dinheiro com versos, ritmos, metáforas? As dúvidas do existir vão se agigantando no sem-sentido do viver... Mas, com os pés novamente no chão, confesso timidamente a minha inquisidora implacável que não conseguia atinar sobre o que eram os tais 'descritores':
"O que são, minha querida, esses descritores. Juro, de verdade, juro que não sei. Não sei mesmo!"
E a aluna bem comportada, cumpridora de tarefas, cresce, peito estufado, olhar altivo:
"Sabe sim, professor, são os conteúdos da Prova Paraná, os conteúdos que a gente precisa saber e o senhor não quer ensinar pra gente! Aqui, olhe, eu separei vários deles. Por exemplo, o que é 'intencionalidade' do texto? O que é a 'tese' do texto? O senhor tem que ensinar isso pra gente!"
"Mas isso eu sempre ensino, em todas as leituras, em todos os debates, em todas as produções de textos, estamos sempre falando sobre onde e quando o texto foi publicado, o leitor a que ele se dirige, as relações que estabelece com outros textos, a ideia que o autor defende, os argumentos... A gente sempre tá falando dessas coisas..."
"Não vem não, professor. Eu quero que o senhor ensine desse jeito, do jeito que tá na prova. A gente tem que ir bem nessa prova. A gente quer que nossa escola seja a melhor... Tem que ensinar isso do jeito que está aqui! Não quero ficar perdendo meu tempo com essas conversas sobre juventude, trabalho, filmes, historinhas, poesias... A gente tem que ser responsável! O senhor sabe disso. São essas coisas da prova que cobram da gente..."
O sinal toca. Tenho vontade de dar um abraço na aluna. Nas próximas aulas, vou discutir com eles mais uma vez as especificidades de minha disciplina, conteúdos, metodologia, avaliação. Precisarei sistematizar e deixar claro para eles o que estamos aprendendo em cada aula, em cada prática de leitura, de escrita, de debate... Terei, ainda, que dizer como as estúpidas provas de controle de aprendizagem podem cobrar esses conteúdos nas estúpidas questões que formulam....
Terei muito o que fazer e refazer, o bicho e brabo e não sossega, em nome do conhecimento, de forma diabólica, vai tentando controlar a inteligência de professores e de estudantes, objetivando e burocratizando a vida, inibindo a curiosidade e a criatividade, reduzindo o ensino e a aprendizagem a treinamentos e a acomodações... Lembrei do antigo ensino da metalinguagem gramatical, quando os alunos cobravam dos professores de português o ensino de classificação de palavras e de frases. Hoje, " os descritores" tornam-se a metalinguagem utilizada para entorpecer inteligências e criatividade, para controlar a leitura de mundo e silenciar a poesia.
Sebastião D. Santarosa
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