quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Despedida. Rubem Alves.

Não costumo transcrever crônicas ou textos de outros neste blog. Procuro compartilhar as minhas leituras, os meus filmes, as minhas viagens e, acima de tudo, as minhas visões de mundo. Mas tenho sob a minha mesa de trabalho a crônica do Rubem Alves, com a qual ele se despediu de seus leitores da Folha de S.Paulo, no dia primeiro de novembro de 2011. Ele veio a falecer em 19 de julho de 2014. A transcrevo por dois motivos. Primeiro porque ela tem muito a ver comigo, especialmente, naquilo que se refere à obrigação. Hoje eu sou um administrador de tempo livre, eu não tenho mais obrigações e em segundo lugar, eu quero prestar uma homenagem à verdadeira legião de seus admiradores. Vamos à crônica:
Rubem Alves, o grande mestre. 1933 - 2014. Continua presente por sua obra.

"Essa crônica é uma despedida. Resolvi, por decisão própria, parar de escrever em Cotidiano.

Devo ter perdido o juízo. Minha decisão contraria um dos maiores sonhos de cada escritor. Primeiro, o sonho de ser um best-seller. Encontrar algum livro seu nas prateleiras da livraria La Selva, nos aeroportos. Confesso: sou vítima dessa vaidade. Mas não aprendo a lição. Nos aeroportos, vou sempre visitar a La Selva na esperança de lá encontrar um dos meus livros. Saio sempre desapontado.

O outro sonho dos escritores é ter seus textos publicados num jornal importante: ser lido por milhares de leitores. O que significa reconhecimento duplo: do jornal que os publica e dos leitores. Isso faz muito bem para o ego. Todo escritor tem uma pitada de narcisismo.
Por este livro tive o primeiro contato com o grande mestre.

Fernando Pessoa tem um poema que diz assim: "Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, tenho dó delas..." E ele se pergunta se "não haverá um cansaço, das coisas, de todas as coisas..." Respondo: Sim. Há um cansaço. A velhice é o cansaço de todas as coisas. Estou velho. Estou cansado. Já escrevi muito. Mas agora, meus 78 anos estão pesando. E como acontece com as estrelas, há sempre a obrigação de brilhar.

A obrigação: é isso o que pesa. Quereria de ser capaz de viver um poeminha do Fernando Pessoa: "Ah!, a frescura na face de não cumprir um dever... Que refúgio o não se poder ter confiança em nós..." Perco o sono atormentado por deveres, pensando no que tenho de escrever. Sinto - pode ser que não seja assim, mas é assim que eu sinto - que já disse tudo. Não tenho novidades a escrever. Mas tenho a obrigação de escrever quando minha vontade é não escrever.
Porque, afinal de contas, todo o ato de educar é um ato político.

Não é qualquer coisa que se pode publicar num jornal. O próprio nome  está dizendo: "jornal", do latim "diurnalis"; de "dies", dia, diurno; o que acontece no dia; diário.

O tempo dos jornais é o hoje, as presenças. Mas minha alma é movida pelas ausências; nos jornais não há lugar para ressurreições.

Acho que aconteceu comigo coisa parecida com o que aconteceu com a Cecília Meireles. Escrevendo sobre ela, Drummond  falou o seguinte: "Não me parecia uma criatura inquestionavelmente real; por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me sempre a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Por onde erraria a verdadeira Cecília, que, respondendo à indagação de um curioso, admitiu ser seu principal defeito "uma certa ausência do mundo"?
Uma ausência do mundo preenchida com a sua obra. Lições que permanecem.

Deve ser alguma doença que ataca preferencialmente os velhos e aos poetas. A Cecília descrevia o tempo da sua avó com "uma ausência que se demorava". Rilke se perguntava: "Quem assim nos fascinou para que tivéssemos um olhar de despedida em tudo o que fazemos?" O sintoma dessa doença é aquilo que a Cecília disse: uma certa ausência do mundo.

O músico Ângelus Silesius já havia notado que temos dois olhos, cada um deles vendo mundo diferentes: "Temos dois olhos. Com um, vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro, vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem". Jornais são seres do tempo. Notícias: coisas do dia, que amanhã estarão mortas.

E é por isso que vou parar de escrever: porque estou velho, porque estou cansado, porque minha alma anda pelos caminhos do Robert Frost, porque quero me livrar dos malditos deveres que me dão ordens desde que me conheço por gente..."
É bem isso mesmo. Um caso de amor com a vida.

Quanto a mim, ainda não escrevi nada, mas também, ainda não sinto o tempo se esvaindo. Ainda prefiro ver as coisas com o olho do tempo e não com o das coisas da alma. E mais, estou começando, apenas agora, a conseguir ler poesia. Enquanto isso, continuo aqui a escrever, mas não como um maldito dever, mas sim, como um grande prazer. E... sempre tendo a coragem de ser um eterno aprendiz, inclusive com o grande mestre que foi Rubem Alves.


sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Os deputados amigos e inimigos dos professores.

No dia 10 de fevereiro de 2015 foi votado na Assembleia Legislativa do Paraná o requerimento que transformava  o plenário da Assembleia em Comissão Geral, para votar os dois projetos do pacote de maldades do governador Carlos Alberto Richa (Beto apenas para os íntimos) contra os professores e contra todos os funcionários públicos do Paraná. Nesta votação os deputados se posicionaram, mesmo sendo impedidos de votar os dois projetos. O impedimento ocorreu pela brava resistência dos servidores públicos. Dois dias depois, num palco de guerra, com cães adestrados, tropa de choque, cassetetes e bombas de todos tipos, Davi venceu Golias, ao menos momentaneamente. Mas vamos ver como se posicionaram os deputados. Vou usar a expressão cunhada na manifestação. Os inimigos e os amigos dos professores.
Os nomes dos deputados estão aí cravados para sempre. Ou amigos ou inimigos.


Eis os 35 inimigos dos professores e em consequência da educação pública, onde estudam os filhos dos trabalhadores e das gentes menos favorecidas economicamente. Eis a relação dos genuflexos e dobradiços deputados e os seus respectivos partidos. A minha fonte é o Caixa Zero, do Rogério Galindo, da Gazeta do Povo: As "... " são meus.
Charge espetacular da Gazeta do Povo de 13.02.2015. Os deputados inimigos dos professores usaram este meio de transporte. Tire as suas conclusões.


Alexandre Cury - PMDB;
Alexandre Guimarães - PSC;
André Bueno - PDT;
Artagão Júnior - PMDB;
Bernardo Ribas Carli - PSDB;
"Cantora" Mara Lima - PSDB;
Cláudia Pereira - PSC;
Cobra Repórter - PSC;
Cristina Silvestri - PSC, conforme a Gazeta do Povo, mas na realidade é do PPS;
Dr. Batista - PMN;
Élio Rush - DEM;
Evandro Júnior - PSDB;
Felipe Franceschini - SD;
Fernando Scanavaca - PDT;
Francisco Bührer - PSDB;
Gilson de Souza - PSC;
Guto Silva - PSC;
Hussein Bakri - PSC;
Jonas Guimarães - PMDB;
Luiz Carlos Martins - PSD;
Luiz Cláudio Romanelli - PMDB;
Márcio Nunes - PSC;
Maria Victória - PP;
Mauro Moraes - PSDB;
"Missionário" Ricardo Arruda - PSC;
Nelson Justus - DEM;
Palozi - PSC;
Paulo Litro - PSDB;
Pedro Lupion - DEM;
Plauto Miró - DEM;
Schiavinato - PP;
Tiago Amaral - PSB;
Tião Medeiros - PTB;
Wilmar Reichenbach - PSC;
Ademar Traiano - PSDB. Este não votou mas foi o comandante em chefe da tropa.

Uma observação: Todos os deputados do PSDB e do DEM, votaram contra o funcionalismo público. São os partidos que comandam a sanha neoliberal. Os deputados do PDT, André Bueno e Scanavaca são duplamente traidores, pois se elegeram pela oposição, na coligação com o PT (Pobre Umuarama). Nelson Justus é um deputado muito afamado. A Gazeta do Povo que o diga. Destaque também para os dois inimigos que capitanearam o processo. Ademar Traiano e Luiz Cláudio Romaneli. Cada vez que eu vejo o Romaneli eu me pergunto: "É isso um homem"? Foi o único a defender a proposta. Os outros todos ficaram mudos, mudos. Da maior bancada, a do PSC, comandada pelo Ratinho Júnior, apenas dois não se dobraram ao capitão do time. O resto abraçou o secretário do governador. O Ratinho começou bem a sua campanha para prefeito ou governador. Arrumou inimigos... mas ser secretário deve ser bom demais... Ele disse que eles estavam liberados para votar como quisessem.

Mas vamos à lista dos que votaram a favor dos professores, da escola pública e dos servidores públicos do estado do Paraná. Pena que foram minoria. Somaram 19 votos. Os únicos a se manifestarem e com muito brio e fibra:

Adelino Ribeiro - PSL;
Ademir Bier - PMDB;
Anibelli Netto - PMDB;
Chico Brasileiro - PSD;
Evandro Araújo - PSC;
Gilberto Ribeiro - PSB;
Márcio Pacheco - PPL;
Márcio Pauliki - PDT;
Nelson Luersen - PDT;
Nereu Moura - PMDB;
Ney Leprevost - PSD;
Paranhos - PSC;
Pastor Edson Praczyk - PRB;
Péricles Mello - PT;
Professor Lemos - PT;
Rasca Rodrigues - PV;
Requião Filho - PMDB;
Tadeu Veneri - PT;
Tercílio Turini - PPS.

Guardem bem estes nomes. Cada casa de professor deve ser transformada num comitê eleitoral contra ou a favor destes deputados. Mais análises eu farei separadamente. Além de tradicionais aliados, tivemos algumas surpresas muito agradáveis. E um cuidado. No painel em frente da Assembleia havia alguns erros.
Pelo fato dos deputados governistas, inimigos dos professores, terem chegado neste ônibus camburão para a votação do pacotaço de maldades, ela ganhou um nome muito apropriado: a bancada do camburão.





quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

SELMA. Uma luta pela igualdade.

Mais um filme extraordinário. Selma - uma luta pela igualdade, É um filme político e altamente politizador. Mostra um belo retrato das lutas do povo negro dos Estados Unidos, nos anos 1960 e, sem as quais, seria absolutamente impossível que esse país tivesse hoje um presidente negro. O filme tem foco num determinado momento da luta de Martin Luther King, o do direito ao voto, a partir da organização do povo de uma pequena cidade do Alabama, a cidade de Selma, com uma população em torno de 20.000 habitantes, no ano de 1965.
SELMA, um memorável filme político e altamente politizador. E a cidade de Selma!


Martin Luther King já era um homem famoso. Em agosto de 1963 organizara a marcha para Washington, onde pronunciara o seu famoso discurso do I have a dream, da qual resultou a Lei do fim da segregação racial e em 1964 fora agraciado com o laurel do Prêmio Nobel da Paz. O líder já era recebido em audiência pelo presidente da República, Lyndon Johnson.

O episódio sobre o qual o filme tem o seu foco é a luta pelo direito de voto, na cidade de Selma. Nesta cidade foram organizadas, no mês de março de 1965, três marchas, num curto intervalo de tempo. O Estado de Alabama era governado por um racista famoso, George Wallace. As marchas seguiriam de Selma para Montgomery, a capital do estado.
A famosa ponte Edmund Pettus, sobre o rio Alabama. A sua travessia - um profundo significado!

A primeira marcha reuniu em torno de 600 pessoas, no dia 7 de março. A sua marcha foi detida, já na ponte da cidade, sobre o rio Alabama, com extrema violência. Foi usado gás lacrimogênio, cassetetes e tiros. O manifestantes em pânico fugiram desesperados. Luther King chega à cidade e faz uma convocação para todo o povo americano, especialmente para as autoridades e lideranças religiosas. Em dois dias, muita gente chega à cidade. No dia 9, portanto, dois dias após a primeira marcha, se inicia a segunda. A polícia permite a passagem, mas misteriosamente, ou misticamente, o ativista recolhe os manifestantes ao interior de uma igreja.
A cena do filme, da travessia da ponte Edmund Pettus. O caminho para Montgomery estava aberto, e..., para muito mais.

A terceira marcha, que será a triunfante, sai de Selma no dia 16 de março e chega a Montgomery e ao seu centro de poder nos dias 25 e 26 do mesmo mês de março. King havia travado duras negociações com o presidente Johnson que, finalmente, assume o problema e, por legislação nacional, estabelece o direito de voto ao povo negro dos Estados Unidos. Esses fatos históricos são considerados como os fatos que prepararam os caminhos e possibilitaram a travessia da ponte para a chegada ao poder de um presidente negro, já no início do próximo século.

O filme passa por muitos fatos históricos de extrema complexidade dos anos 1960. Lyndon Johnson e o poder. A guerra do Vietnã. J. Edgard e o FBI e  todo o movimento negro em busca da afirmação de seus direitos. Mostra as lutas internas dentro destes movimentos e a liderança radical exercida por Malcolm X, morto em fevereiro deste mesmo ano de 1965 e que provocou a existência dos panteras negras e a sua atuação violenta nos anos seguintes. Mostra também os dramas interiores de Martin Luther King, tanto em relação com o movimento, quanto em suas relações com a esposa, Coretta Scott King.
Em alemão, o cartaz anuncia, o melhor filme do ano.

Merece destaque especial a abordagem religiosa do filme. Ele apresenta um cristianismo revolucionário, comprometido com as lutas populares e não um cristianismo, para usar uma expressão brasileira, mancomunado com a casa grande, ou a velha e sempre notável referência marxista ao ópio do povo. King convoca todas as lideranças religiosas e é atendido por muitas delas. Outro ponto importante. Ele usa os meios de comunicação para fazer esta convocação. Está certo que King já era uma voz ouvida e o movimento que liderava já tinha grande visibilidade. Mas também este fato dá ensejo de pensar sobre o comportamento da mídia, um tema de muita atualidade.

O maior instrumento que o filme utiliza para transmitir a sua mensagem é a força dos diálogos, sempre mediados pelo contraditório. Mostra também a enorme responsabilidade e as dificuldades enfrentadas por um líder. Os líderes populares não tem vida fácil. Martin Luther King seria assassinado em Memphis, no Tenessi, no dia 4 de abril de 1968, aos 39 anos de idade.
Um líder nunca tem vida fácil, nem na vida familiar, mesmo se preparando para o Nobel da Paz.


Martin Luther King é interpretado por David Oyelowo, o presidente Johnson por Tom Wilkinson e Coretta Scott King por Carmen Ejogo. A direção é de Ava DuVernay. A famosa Oprah Winfrey, além de uma participação nas cenas iniciais, é uma das produtoras do filme. Um nome de peso. Mas o filme é uma espécie de primo pobre em indicações para o Oscar. Tem apenas duas: a de melhor filme e a de melhor canção (Glory). O tema da luta dos negros foi premiado no ano passado com doze anos de escravidão e por isso, entre outros motivos, não deverá receber o prêmio maior neste ano. O filme é ótimo para ser debatido nas escolas, mesmo se não melhorar a avaliação técnica do IDEB. Forma para a consciência e para a cidadania.





terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O Jogo da Imitação.

Duas cinebiografias concorrem ao Oscar de melhor filme em sua edição de 2015. Teoria de Tudo mostra a vida do físico inglês Stephen Hawking e O Jogo da Imitação retrata a turbulenta vida do matemático, também inglês, Alan Turing, considerado o pai dos computadores e do desenvolvimento dos processos para chegar à inteligência artificial. São dois filmes muito bons e ambos concorrem a vários Oscars, entre eles, o de melhor filme.
Um filme memorável. Um gênio. Decifrou os códigos dos alemães tidos como indecifráveis.

O enredo de O Jogo da Imitação é relativamente simples. Retrata a vida do matemático inglês Alan Turing, mostrando o seu empenho em desvendar os códigos usados pelos alemães, ao longo da segunda guerra. Complicadas são as relações que envolviam o cientista, as próprias, com ele mesmo e com as de seu seleto grupo de gênios, do Bletchley Park, o ultra secreto grupo de enxadristas e matemáticos, reunido com a finalidade de ganhar a guerra com a arma da inteligência.

O sucesso dos alemães nesta guerra, em grande parte era atribuída a uma máquina, chamada Enigma, que criava códigos, tidos como absolutamente indecifráveis e que serviam como instrumentos de comunicação entre os comandos e as frentes de guerra. Para decifrar esses códigos, com essa missão impossível, é que foi criado o grupo do Bletchley Park.
Alan Turing e o grupo de Bletchley Park. A humanidade deve muito a esses meninos.

Se as relações humanas já costumam ser complicadas, imagina então, as que se dão entre vários gênios, reunidos em torno de um mesmo objetivo e compartilhando o mesmo espaço. Alan Turing tinha dificuldade especial em se relacionar. Era homossexual em tempos em que isso era considerado como um ato contra o pudor e, como tal, um crime. Quem melhor o compreendia era a sua amiga Joan Clarke, que também tinha os seus problemas. Como não era casada, os seus pais exigiram a sua volta para casa. O problema foi resolvido pelo casamento entre Alan e Joan, um casamento de fachada. Eles se davam muito bem na realização de seus trabalhos.
Alan Turing decifra o indecifrável. É considerado o pai dos computadores. O caminho estava aberto.

O drama cresce quando Alan Turing decifra os códigos alemães. Os companheiros de grupo querem o uso da invenção, aplicada imediatamente. Decifraram o momento em que haveria um bombardeio em que o irmão de um dos membros do grupo seria atingido, mas Alan não permitiu que os comandos ingleses fossem avisados. O decifrar dos códigos da Enigma tinha como finalidade ganhar a guerra e não uma mera batalha. Se usassem imediatamente, os alemães saberiam que seus códigos haviam sido decifrados. Isso foi feito mais ao final da guerra, nas batalhas consideradas decisivas. Ao final do filme, uma legenda informa, que a guerra fora abreviada em dois anos e que muitas vidas foram poupadas com o esforço do matemático.

Por mais de cinquenta anos estes dados não foram revelados e é isso que efetivamente dá importância ao filme e consagram o gênio. Alan Turner não teve vida fácil. Em 1952, em função de sua homossexualidade, foi levado aos tribunais, pelo crime de atentado ao pudor, em que eram enquadrados todos os homossexuais. Foi dada a ele a condição de escolha entre a prisão ou a castração química. Ele optou pela segunda. Dois anos depois foi encontrado morto em sua casa, vítima de suicídio. Teria comido uma maçã envenenada. A maçã da Apple seria uma homenagem? Afinal a sua grande façanha abriu os caminhos para o moderno computador dos nossos tempos.
Por causa de suas relações homoafetivas pode escolher entre a prisão ou a castração química.


Um dos maiores méritos do filme biografia é a abordagem da questão das relações homoafetivas. O tema merece um debate ainda nos dias de hoje. O mundo preferiu perder um de seus maiores gênios, um de seus maiores benfeitores por causa da pequena moral, comandada pelas religiões. A sociedade hipócrita quer vigiar relações entre as pessoas, que ocorrem entre quatro paredes, em nome da moral e dos bons costumes. Questões da pequena moral. Enquanto fiscalizavam estas relações, a guerra campeava solta.

O filme foi adaptado a partir do livro Alan Turing: The Enigma, de Andrew Hodges. Mereceu oito indicações ao Oscar:
Melhor filme;
Melhor diretor: Morten Tyldum;
Melhor ator: Benedict Cumberbatch, como Alan Turing;
Melhor atriz coadjuvante: Keira Knightley, com Joan Clarke;
Melhor roteiro adaptado: Graham More;
Melhor desenho de produção;
Melhor trilha sonora;
Melhor montagem.




segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Sócrates. A história e as histórias do jogador mais original do futebol brasileiro.

Como é gostoso não ter obrigações. Como é gostoso desfrutar de tempo livre. Como é gostoso fazer coisas sem nenhum caráter utilitário, apenas pelo prazer. Foi o que fiz com a leitura de Sócrates - A história e as histórias do jogador mais original do futebol brasileiro. A autoria da biografia é do jornalista Tom Cardoso e tem apresentação de Fábio Altman e prefácio do companheiro de copo Mauro Beting. "Mas  é possível que nenhum brasileiro tenha jogado melhor pelo país que você em todos os campos", afirma o prefaciador Mauro Beting.  Sócrates jogava tão bem, senão melhor, fora dos campos, quanto dentro deles.
Pelo país, ninguém jogou melhor do que Sócrates. A democracia era uma obstinação.

A vida deste grande cidadão foi marcada, acima de tudo, pelo inconformismo e pela indignação, sentimentos que o levaram à ação. Sócrates nunca foi um cidadão passivo, pois senão, não seria um cidadão. Sempre foi linha de frente, sempre foi vanguarda. Sempre marcou muitos gols e que golaços! A sua vida é mostrada em 23 capítulos, começando pelo seu pai, um cearense pobre mas obstinado pela educação, sempre um autodidata, pois as portas da escola estavam fechadas para meninos pobres. Estudava para concursos públicos. Era metido a estudar filosofia. O seu dito filosófico preferido não era de Sócrates, mas sim, de Immanuel Kant: "O homem não é nada além daquilo que a educação  faz dele". Por sorte, Sócrates não foi batizado com o nome de Immanuel e muito menos pautou a sua vida pelas linhas retas do racionalismo.
Tom Cardoso escolheu bem. Biografar Sócrates deve ter sido um grande ato de prazer.


A primeira exigência de seu Raimundo para com os filhos era o estudo. Sócrates deveria se formar em medicina. Depois poderia ser jogador. Só admitia treinos após as aulas, na Faculdade de Medicina da USP, no campus de Ribeirão Preto, cidade em que moravam, já fazia um bom tempo. Sócrates nascera em Belém. Os concursos públicos foram melhorando a vida de seu Raimundo. Sempre foi um pai muito exigente.

A trajetória profissional de Sócrates começou em um dos times de sua cidade, o Botafogo. Depois veio o Corinthians, o time que o marcou. "Doutor, eu não me engano - meu coração é corintiano", cantava a torcida do timão. Sócrates era santista de coração, do Santos da era Pelé, de quem seria um grande desafeto, posteriormente. A vida de Sócrates se identifica com o Corinthians, onde, no entanto, não era nenhuma unanimidade. Era um jogador frio, avesso à preparação física, às concentrações e ao disciplinamento burocrático do futebol de resultados. O seu futebol era o futebol arte, que sempre aparecia, quando estava de bem com a vida. Quando ele efetivamente estava de bem com a vida, livre de obrigações e do enfadonho do cotidiano, os resultados apareciam. Sócrates, como atleta aplicado e disciplinado, nunca foi exemplo para ninguém. A sua insubmissão era o terror dos técnicos. Com o futebol arte de Telê Santana ele se dava bem.
A anti imagem do atleta. 1,91 metros de altura e pés tamanho 41. Teria que ser artista. E como foi!


Um dos capítulos mais bonitos de sua vida é a sua relação com a democracia, pela qual ele lutava em duas frentes, na democracia corintiana e pela democracia brasileira. Batia de frente com técnicos e diretorias e com os militares. O quarteto da democracia corintiana era formada pelo dirigente Adilson Monteiro Alves e pelos jogadores Sócrates, Wladimir e Casagrande. A relação com a torcida nunca foi das melhores. Queriam um jogador mais impulsivo, que comemorasse os gols com paixão, um jogador raçudo. Para isso o atleta não tinha preparo físico. A sua contribuição era o talento, o imprevisível, os desconcertantes toques de calcanhar. Gostava de jogar nas faixas do campo onde havia sombra.
Com Casagrande, parceiros da democracia corintiana. Depois Casagrande foi enquadrado pela Globo.


Uma passagem interessante foi a sua ida à Itália, para a cidade de Florença. Aí o seu embate foi com a nobreza italiana e com os colegas do time, que literalmente o boicotavam. Em meio a memoráveis festas e porres vivia o seu inferno de Dante, para desespero dos condes da família Pontello, diante do fiasco de sua contratação.

Um capítulo dos mais bonitos é o que narra os episódios da seleção Brasileira de 1982, a seleção de Telê Santana, do futebol arte. Foi a única vez em que Sócrates abriu mão de seus prazeres e se submeteu ao rigor dos treinamentos. Chegou a dar verdadeiros piques em campo. O autor da façanha foi Gilberto Tim, mas o inspirador fora Telê Santana, com quem tinha uma relação de profundo carinho e respeito. O atleta foi domado pela amizade, carinho, respeito e reciprocidade, jamais pela imposição disciplinadora. A rebeldia sempre fora a sua grande marca.
Cena rara. Sócrates gastando energias na comemoração de um gol.


Na sua volta da Itália peregrinou pelo futebol. Uma tentativa fracassada de retorno para a Ponte Preta, formar dupla com Zico no Flamengo e até uma passagem pelo time de seu coração, o time da vila. O livro passa também pelos seus desafetos. Os jogadores individualistas e personalistas como Leão e Paulo César Caju, especialmente. Muitas relações de bastidores do futebol também são relatadas. Sócrates inclusive chegou a se candidatar a presidente da CBF., ou a se anti candidatar. Enveredou também pelos caminhos do jornalismo, sempre batendo de frente com o enquadramento das emissoras e não se conformando com o longo tempo de Casagrande na Globo. Também enveredou pelos campos da medicina e da política.

Se seu Raimundo controlava de perto a vida do filho, ao menos em uma coisa não conseguiu controlá-lo. Na bebida. Sócrates bebia poucas bebidas, apenas cerveja e vinho, mas estas, ele bebia em doses industriais. Bebia sempre e em todas as ocasiões. Parecia não sentir a bebida. De todos os companheiros de copo era o mais resistente. Enquanto estes perdiam compromissos em função da ressaca, ele permanecia impassível, esperando pelo próximo porre. Parecia o Sócrates filósofo, saindo de O Banquete, de Platão. Nunca admitiu ser alcoólatra. Não parou de beber, nem mesmo quando já diagnosticado de cirrose hepática e de sofrer hemorragias, que o levaram a internamentos e à morte. Chegou a tentar tomar cerveja sem álcool, mas a considerava intragável.
Sócrates com o amigo Lula. Em seus delírios de morte ainda lhe fazia cobranças.


O cineasta Ugo Georgetti encontrou uma explicação para a relação entre Sócrates e a bebida: "Sócrates simplesmente deixara de lutar e iniciara um processo autodestrutivo sem volta, motivado pela constatação de que o mundo não tinha espaço mais para sujeitos como ele, idealistas e sonhadores". A bebida lhe serviu de mediação para suportar as dores do mundo, que ele tão vivamente percebia e contra as quais levou uma vida inteira de rebeldia. Sócrates morria num domingo, 4 de dezembro de 2011, enquanto o Corinthians entrava em campo para ser o campeão brasileiro daquele ano.

Na sede do Corinthians existe um busto em sua homenagem. Pouco antes de morrer, no Bar da Torre, em Ribeirão Preto, ele, em mais uma saideira brindou o seu epitáfio: Se tivesse me dedicado mais, não seria uma pessoa tão completa como sou agora. Definitivamente, a arte nunca anda por linhas retas.
Com seu Raimundo, um pai atento e vigilante.


Sócrates foi um homem de muitos chopes, de muitos vinhos, de muitas e belas mulheres e acima de tudo, de muitos gols. Foram 331, cujo histórico compõe o apêndice do livro. Também tem um álbum de fotografias. Me encantei com o livro. Bela sugestão para presentar amigos, especialmente se forem corintianos.




quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A Guerra de Canudos. Os Sertões. Euclides da Cunha.

Quem teria a coragem de filmar Os sertões? Quem se atreveria a levar às telas as cenas de horror, terror e pavor contra as pobres gentes do sertão?  Ainda bem que existe gente ousada e atrevida para tanto. Sérgio Rezende é o autor desta façanha. É ele o diretor e o roteirista do filme. Com muita imaginação fez um trabalho brilhante e ao mesmo tempo atraente. Pôs drama e paixão na narrativa histórica e, creio que poderíamos dizer, científica de Euclides da Cunha. O resultado não poderia ter ficado mulher.
Os Sertões foi levado ao cinema pelo diretor e roteirista Sérgio Rezende, em 1997.

Sérgio Rezende tomou dois dos últimos sobreviventes da narrativa, uma mulher que fora degolada, por sua resistência provocativa e um dos quatro últimos sobreviventes e criou em torno deles uma família e lhe imaginou filhos. Os personagens são Zé Lucena e Penha, marido e mulher e a filha Luíza, inexistente no livro, que não acompanhou a família nas suas desventuras pelo sertão como revoltosos de Antônio Conselheiro. Na guerra de Canudos Luíza enfrenta a sua própria família.

A família de Zé Lucena é usada pelo roteirista e diretor como uma família do abandonado sertão nordestino. É atormentada pela seca e oprimida pelo latifúndio. Para a sobrevivência imediata vende, por ninharia, os meios da sobrevivência futura. A República, recém instalada, lhe sequestra o que sobrara. Numa cena simples está retratado o quadro social do nordeste do final do século XIX, tão vivamente descrito na obra de Euclides da Cunha. Não restando caminhos, sobra a utopia de Conselheiro, mais um beato do sertão. Oração, disciplina, pregação e profecias são os elementos aglutinadores. Zé Lucena segue o Conselheiro.
Com imaginação rara e criatividade Os Sertões foi levado ao cinema. Um drama foi criado.

Luíza, a filha mais velha do casal, empreende um caminho solitário, em franca rebeldia contra o pai. O caminho de sua sobrevivência está na prostituição. Um futuro soldado lhe oferece família. Está assim posicionada contra a sua própria família nesta atroz guerra. Os filhos mais novos acompanham Zé Lucena e Penha.
O filme volta-se então para Antônio Conselheiro e a pequena multidão que se forma em seu torno e para o início do conflito, na compra de material para a construção da igreja de Canudos, na cidade de Juazeiro e que, no entanto, não fora entregue. Os revoltosos foram buscar a encomenda na marra e assim se inicia a contenda, à qual ninguém conferia importância. Seria uma pequena refrega. Aí é que estava o engano. As primeiras expedições foram confiadas à polícia baiana e a partir da expedição Moreira César, a terceira, as coisas ganham a sua configuração alarmante. Vem aí a quarta expedição, sobre a qual o filme se volta inteiramente.  A viva descrição de Euclides da Cunha, das vinganças atrozes que foram cometidas, ganham imagens impressionantes.
Cena do filme. Antônio Conselheiro e o seu exército rebelado.

Quando toda a violência seria desnecessária, pois para vencer bastava dar tempo ao tempo, bastaria manter as posições, aí é que a violência se intensifica e ocorre o verdadeiro massacre. Quando sobram apenas uns 500 miseráveis casebres, a tapera babilônica é dinamitada. Existe uma cena de meia rendição, em que são entregues as mulheres, as crianças, os doentes e os feridos. Aí é que aparece a resistência de Penha e a sua degola. Zé Lucena aparece logo em seguida como um dos quatro sobreviventes a serem exterminados. O cadáver de Conselheiro é encontrado e ele será decapitado e a sua cabeça será levada como troféu. O extermínio fora completo numa grande vitória da República, contra um exército de famintos e esfarrapados. Luíza, em meio as batalhas finais consegue resgatar a pequena irmãzinha.

Sim, é muito importante dizer. No filme aparece um jornalista, que em meio às tropas do exército, faz a cobertura da guerra. O jornalista é extremamente sensível e condena a violência desproporcional usada contra os quase indefesos revoltosos. Os seus boletins são censurados e acaba sendo expulso da expedição. Creio que todos imaginam quem seria o jornalista que acompanhou a expedição. E... um grande viva à liberdade de imprensa, que mesmo sob a censura, não permitiu que os horrores desta guerra passassem despercebidos de nossa história.
A igreja nova era também a grande fortaleza da cidadela, a tapera babilônica.


O filme tem como diretor e roteirista Sérgio Rezende. Antônio Conselheiro é interpretado por José Wilker. Paulo Betti é Zé Lucena e Marieta Severo interpreta Penha. O papel de Luíza ficou para a bela Cláudia Abreu. Sobrou para José de Abreu interpretar o sanguinário general Arthur Oscar de Andrade. A música recebe a assinatura de Edu Lobo. O filme é relativamente longo, com a duração de 2 horas e 49 minutos.


terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Teoria de Tudo. A biografia de Stephen Hawking.

Antes de qualquer observação quero dizer que - Teoria de Tudo - é um filme extraordinário. Tem muita ternura e dedicação, qualidades raramente presentes no mundo de hoje. Também o tema da superação está presente. Não o da superação dos limites em busca do sucesso e do êxito, mas a superação dos limites na luta contra a morte ou pela vida, na preservação de uma das inteligências mais raras, vivas no presente. Por enquanto é o meu favorito ao Oscar.
Cartaz promocional de - Teoria de Tudo. O foco está relação entre o cientista e sua esposa.

O filme retrata a vida do físico inglês Stephen Hawking, que aos 21 anos de idade foi diagnosticado com a doença neurológica que afeta a coordenação motora, denominada esclerose lateral amiotrófica (ELA), incurável e degenerativa e, lhe foram dados, pelo médico, mais dois anos de vida. Hawking não se desespera e muito menos Jane Wide, a sua namorada. Stephen e Jane haviam se encontrado numa festa na universidade de Cambridge e os encantos mútuos se transformaram numa bela consequência de um amor incondicional. Ela estudava poesia.
Stephen e Jane, uma relação com a presença do cuidado.


"Vamos enfrentar isto juntos", diz Jane para Stephen e para a sua família e marcam casamento. Jane passa a ser esposa, companheira e acima de tudo a mais dedicada das enfermeiras que Stephen precisava. Os êxitos de Stephen em sua carreira de físico progrediam na mesma medida em que a sua coordenação motora se atrofiava, menos as atividades cerebrais, obviamente. O casal terá três filhos. Ao final ocorre um divórcio e Jane se casa com Jonathan, um prestativo jovem, viúvo, músico e regente de um coral da igreja frequentada por Jane. Ao menos no filme, a separação ocorre sem traumas e com o pleno consentimento de Stephen.

O respeito que Stephen recebe da academia se deve aos estudos do tempo, da origem do universo, dos buracos negros. A Brief History of Time é o livro que o consagrou junto à comunidade científica. O seu gênio é comparável ao de Isaac Newton e de Einstein. A grande virtude de Jane foi a de dedicar todos os esforços para preservar a vida do cientista, para que ele pudesse dar continuidade às suas contribuições para com a humanidade. Uma cena é especialmente memorável, quando Stephen passa mal e, em consequência de uma cirurgia, perde a fala, mas não a comunicação. Esta é preservada por um aparelhinho eletrônico e por um mínimo de coordenação motora que ainda lhe sobra.
O jovem cientista e o diagnóstico da doença da falta da coordenação motora. Mais dois anos de vida!


Uma das grande virtudes do filme é a abordagem da questão religiosa. Enquanto Stephen não aceita a existência de Deus como um gerente do tempo e do universo, professando o ateísmo, Jane é profundamente religiosa.  O tema da religião também recebe uma abordagem, quando o físico recebe uma homenagem em uma universidade americana e uma pergunta lhe é dirigida sobre a questão da esperança, que ele hesita em responder. É a qualidade presente em quase todos os ateus, que não são pregadores de suas convicções em torno do ateísmo. "Enquanto houver vida, há esperança", respondeu simplesmente o cientista, sem recorrer aos recursos do além.

O filme é uma adaptação do livro escrito por Jane, Traveling to Infinity - My Life with Stephen, um retrato de sua vida e da relação havida entre os dois, uma relação marcada pela palavra cuidado. É um roteiro adaptado, o que leva à curiosidade de ver e ler o livro para melhor avaliar esta bela relação, que certamente recebeu alguns recheios de drama e de emoção. Coisas próprias do cinema e, ainda mais, de filmes que disputam um Oscar. Uma das críticas que o filme vem recebendo é, exatamente, o seu foco na relação e não na vida de cientista e pesquisador. Não existem aulas de física ao longo do filme.
Imagem recente do cientista. Um vida de superação em favor da ciência. Estudos sobre o tempo.


O filme é dirigido por James March e tem Eddie Redmayne interpretando Stephen Hawking. O papel de Jane Wide foi confiado a Felicity Jones, ambos concorrem ao Oscar de melhor ator e atriz, respectivamente, sendo que Eddie é apontado como franco favorito. O filme recebeu cinco indicações a Oscar:
- Melhor filme;
- Melhor ator;
- Melhor atriz;
- Melhor roteiro adaptado;
- Melhor trilha sonora.
O meu primeiro contato com a ELA foi através deste belo livro. Grandes lições de vida.


Em janeiro Stephen Hawking deve ter completado 74 anos de vida dedicada à ciência, contrariando as previsões da ciência médica. Por fim, uma recomendação. O primeiro contato que eu tive com esta doença foi através do livro A Última Grande Lição, de Mitchel Albom, que embora sendo da Sextante, indicando, portanto, um livro de auto ajuda, ele dá realmente grandes lições. É um professor acometido pela doença que transmite lições do bem viver a um de seus alunos, em famosos encontros, compilados pelo aluno escritor.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Os Sertões. Euclides da Cunha.

Vamos começar situando e datando Euclides da Cunha e a sua obra. O jornalista e escritor nasceu no Rio de Janeiro, no ano de 1866 e morreu em 1909. Os Sertões foi escrito em 1902 e a guerra contra Canudos e os sertanejos, reunidos em torno de Antônio Conselheiro, ocorreu entre sete de novembro de 1896 e cinco de outubro de 1897, sendo Prudente de Moraes o presidente da República. O movimento se dizia contra a República, em favor da monarquia, mas certamente os revoltosos não tinham muita noção em torno desses conceitos.
A edição que eu li, da Nova Cultural. Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Os Sertões, acima de tudo, é um livro extremamente erudito. Euclides da Cunha era um intelectual extremamente refinado. Suas observações são agudas e se constituem num libelo contra as injustiças sociais da época. Antônio Cândido aponta o livro como um, de uma relação de dez, que melhor ajuda a entender o Brasil. É o livro que ele indica, para se por ao par da difícil transição entre a monarquia e a República, ao final do século XIX. Aponta que na época surgiram dois Brasis diferentes: um, o do interior, que era marcado pelo isolamento e pela miséria sendo gerador de violência e de conflitos e o outro, o da civilização urbana. Aponta como grande qualidade do livro o fato de ele ser repleto de observações e de indignação social.

Lembro de uma entrevista do cantor e compositor Tom Zé. Ele simplesmente apresentava Os Sertões como o melhor livro da literatura brasileira. E dava um conselho para a sua leitura. Podem pular a primeira parte. que na verdade, é apenas o primeiro capítulo, em que é descrita a terra. Esta leitura, no entanto, é extremamente válida, para se ter uma noção da seca e da caatinga, da geografia da região. O sertão da Bahia, Canudos mais precisamente, é o cenário do triste espetáculo, em que literalmente se acabou com tudo, casebre por casebre, até a morte dos quatro últimos sobreviventes.
O jornalista e escritor Euclides da Cunha - 1866 - 1909. Acima de tudo um grande intelectual.

O livro é dividido em oito capítulos, sistematica e metodicamente subdivididos, a saber: 1. A terra. 2. O homem. 3. A luta - preliminares. 4. Travessia do Cambaio. 5. A expedição Moreira César. 6. A quarta expedição. 7. Nova fase da luta. 8. Os últimos dias. A causa imediata do conflito foi a não entrega de uma carga de material de construção, comprada em Juazeiro, e destinada à construção de uma nova igreja em Canudos. Os sertanejos foram buscá-la na marra, enfrentando a reação policial.

A descrição de Euclides da Cunha, no entanto, não começa por aí. Ele vai buscar a gênese do povo sertanejo, das gentes literalmente perdidas pelo sertão, com a diminuição da atividade mineradora dos diamantes, que levara povos para a região entre Rio de Contas e Jacobina. Outros provinham pelo caminho do rio São Francisco. Este povo abandonado e injustiçado se agregou em torno da voz profética de um beato, que foi crescendo em prestígio e fama, que perambulava pelo sertão, construindo igrejas e cemitérios, vindo do Ceará e se fixando em Canudos, a Nova Jerusalém dos revoltosos, a "tapera babilônica".
 
A guerra de Canudos ocorreu entre 1896 e 1897. O livro apareceu em 1902. Edição da Francisco Alves. Uma das primeiras edições.

Quatro expedições foram necessárias para debelar o movimento. A presunção da vitória fácil sempre foi o maior inimigo das tropas republicanas. Arrogância e prepotência sempre acompanharam os comandantes em suas expedições. As derrotas foram consequência do desconhecimento da região e das dificuldades naturais que ela impunha, de erros de estratégia, de retiradas mal feitas, aparelhando assim o exército de revoltosos, a fome e, acima de tudo, o destemor do inimigo, que não tinha o mínimo medo de morrer e jamais delatava qualquer situação. Muitas vezes uma coluna enfrentava outra coluna  do mesmo exército. Os soldados se emaranhavam num mundo de casebres e perdendo o inimigo de vista. Numa observação arguta, o escritor aponta: "opõe-lhe a força emperradora da inércia. Não o combate; cansa-o. Não o vence; esgota-o".
Uma imagem da igreja de Canudos, retirada do filme A Guerra de Canudos, de Sérgio Rezende.

O que era para ser um passeio de soldados e ganho de medalhas para os comandantes virou um pesadelo da República. A fortaleza de Canudos era inexpugnável. Somam-se forças do exército e de polícias estaduais para a empreitada. A vitória seria uma questão de tempo. A resistência dos sertanejos  causara ódios inimagináveis. O ser humano volta ao seu mais primitivo estágio de violência e pratica vinganças, decapitações, numa luta de "titãs contra moribundos" como o escritor anuncia em um de seus subtítulos. Ali imperava a vingança e não a lei. Todos os crimes poderiam ser praticados. Não havia o temor do futuro. A história jamais chegaria ali.

O indignado jornalista relata os dramáticos momentos finais. Já não havia mais necessidade de luta. A vitória viria por si. Bastaria manter posições. Restavam uns 500 casebres, de mais de seis mil que a cidade chegou a ter. Mas a resistência era incrível. Barricadas de cadáveres serviam de proteção aos revoltosos.  Uma cena terrível é o da rendição de feridos, mulheres e crianças. Seres humanos aos trapos, trôpegos diante da morte, resolutos em suas convicções. Um grupo não se rendeu. Foram dinamitados. Ao final sobraram quatro e, ao final mesmo, nenhum. O extermínio fora total e completo.
Os Sertões foi levada ao cinema num inventivo roteiro traçado por Sérgio Rezende.

A guerra terminou em outubro. Antônio Conselheiro morrera antes, em setembro. De Canudos sobra a observação, das mais conhecidas do livro, que abre a terceira parte do capítulo em que descreve o homem, o sertanejo. "O sertanejo é, antes de tudo, um forte". Se os comandantes do exército republicano acreditavam que a sua vingança não precisava de limites, eles se enganaram. O temor do futuro estava lá. A história se fez presente na pena de um intemerado jornalista, arguto escritor, munido da virtude da indignação e do senso de justiça ante os pobres e oprimidos. A sua escrita rompeu o silêncio de uma página da história que não era para ter sido contada.