segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Os Sertões. Euclides da Cunha.

Vamos começar situando e datando Euclides da Cunha e a sua obra. O jornalista e escritor nasceu no Rio de Janeiro, no ano de 1866 e morreu em 1909. Os Sertões foi escrito em 1902 e a guerra contra Canudos e os sertanejos, reunidos em torno de Antônio Conselheiro, ocorreu entre sete de novembro de 1896 e cinco de outubro de 1897, sendo Prudente de Moraes o presidente da República. O movimento se dizia contra a República, em favor da monarquia, mas certamente os revoltosos não tinham muita noção em torno desses conceitos.
A edição que eu li, da Nova Cultural. Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Os Sertões, acima de tudo, é um livro extremamente erudito. Euclides da Cunha era um intelectual extremamente refinado. Suas observações são agudas e se constituem num libelo contra as injustiças sociais da época. Antônio Cândido aponta o livro como um, de uma relação de dez, que melhor ajuda a entender o Brasil. É o livro que ele indica, para se por ao par da difícil transição entre a monarquia e a República, ao final do século XIX. Aponta que na época surgiram dois Brasis diferentes: um, o do interior, que era marcado pelo isolamento e pela miséria sendo gerador de violência e de conflitos e o outro, o da civilização urbana. Aponta como grande qualidade do livro o fato de ele ser repleto de observações e de indignação social.

Lembro de uma entrevista do cantor e compositor Tom Zé. Ele simplesmente apresentava Os Sertões como o melhor livro da literatura brasileira. E dava um conselho para a sua leitura. Podem pular a primeira parte. que na verdade, é apenas o primeiro capítulo, em que é descrita a terra. Esta leitura, no entanto, é extremamente válida, para se ter uma noção da seca e da caatinga, da geografia da região. O sertão da Bahia, Canudos mais precisamente, é o cenário do triste espetáculo, em que literalmente se acabou com tudo, casebre por casebre, até a morte dos quatro últimos sobreviventes.
O jornalista e escritor Euclides da Cunha - 1866 - 1909. Acima de tudo um grande intelectual.

O livro é dividido em oito capítulos, sistematica e metodicamente subdivididos, a saber: 1. A terra. 2. O homem. 3. A luta - preliminares. 4. Travessia do Cambaio. 5. A expedição Moreira César. 6. A quarta expedição. 7. Nova fase da luta. 8. Os últimos dias. A causa imediata do conflito foi a não entrega de uma carga de material de construção, comprada em Juazeiro, e destinada à construção de uma nova igreja em Canudos. Os sertanejos foram buscá-la na marra, enfrentando a reação policial.

A descrição de Euclides da Cunha, no entanto, não começa por aí. Ele vai buscar a gênese do povo sertanejo, das gentes literalmente perdidas pelo sertão, com a diminuição da atividade mineradora dos diamantes, que levara povos para a região entre Rio de Contas e Jacobina. Outros provinham pelo caminho do rio São Francisco. Este povo abandonado e injustiçado se agregou em torno da voz profética de um beato, que foi crescendo em prestígio e fama, que perambulava pelo sertão, construindo igrejas e cemitérios, vindo do Ceará e se fixando em Canudos, a Nova Jerusalém dos revoltosos, a "tapera babilônica".
 
A guerra de Canudos ocorreu entre 1896 e 1897. O livro apareceu em 1902. Edição da Francisco Alves. Uma das primeiras edições.

Quatro expedições foram necessárias para debelar o movimento. A presunção da vitória fácil sempre foi o maior inimigo das tropas republicanas. Arrogância e prepotência sempre acompanharam os comandantes em suas expedições. As derrotas foram consequência do desconhecimento da região e das dificuldades naturais que ela impunha, de erros de estratégia, de retiradas mal feitas, aparelhando assim o exército de revoltosos, a fome e, acima de tudo, o destemor do inimigo, que não tinha o mínimo medo de morrer e jamais delatava qualquer situação. Muitas vezes uma coluna enfrentava outra coluna  do mesmo exército. Os soldados se emaranhavam num mundo de casebres e perdendo o inimigo de vista. Numa observação arguta, o escritor aponta: "opõe-lhe a força emperradora da inércia. Não o combate; cansa-o. Não o vence; esgota-o".
Uma imagem da igreja de Canudos, retirada do filme A Guerra de Canudos, de Sérgio Rezende.

O que era para ser um passeio de soldados e ganho de medalhas para os comandantes virou um pesadelo da República. A fortaleza de Canudos era inexpugnável. Somam-se forças do exército e de polícias estaduais para a empreitada. A vitória seria uma questão de tempo. A resistência dos sertanejos  causara ódios inimagináveis. O ser humano volta ao seu mais primitivo estágio de violência e pratica vinganças, decapitações, numa luta de "titãs contra moribundos" como o escritor anuncia em um de seus subtítulos. Ali imperava a vingança e não a lei. Todos os crimes poderiam ser praticados. Não havia o temor do futuro. A história jamais chegaria ali.

O indignado jornalista relata os dramáticos momentos finais. Já não havia mais necessidade de luta. A vitória viria por si. Bastaria manter posições. Restavam uns 500 casebres, de mais de seis mil que a cidade chegou a ter. Mas a resistência era incrível. Barricadas de cadáveres serviam de proteção aos revoltosos.  Uma cena terrível é o da rendição de feridos, mulheres e crianças. Seres humanos aos trapos, trôpegos diante da morte, resolutos em suas convicções. Um grupo não se rendeu. Foram dinamitados. Ao final sobraram quatro e, ao final mesmo, nenhum. O extermínio fora total e completo.
Os Sertões foi levada ao cinema num inventivo roteiro traçado por Sérgio Rezende.

A guerra terminou em outubro. Antônio Conselheiro morrera antes, em setembro. De Canudos sobra a observação, das mais conhecidas do livro, que abre a terceira parte do capítulo em que descreve o homem, o sertanejo. "O sertanejo é, antes de tudo, um forte". Se os comandantes do exército republicano acreditavam que a sua vingança não precisava de limites, eles se enganaram. O temor do futuro estava lá. A história se fez presente na pena de um intemerado jornalista, arguto escritor, munido da virtude da indignação e do senso de justiça ante os pobres e oprimidos. A sua escrita rompeu o silêncio de uma página da história que não era para ter sido contada.



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