Mais uma vez, a indicação da leitura me vem pelos livros do vestibular de ingresso - 2022 - da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trata-se de Bagagem, um livro coletânea, da poetisa e escritora mineira, Adélia Prado. O livro, publicado com o apoio de outro poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade, é uma soma de seus primeiros versos. A publicação data do ano de 1976. A autora nasceu na cidade de Divinópolis no ano de 1935. Estes versos foram, portanto, escritos antes de ela completar os seus quarenta anos de idade e já mãe de quatro filhos, como lemos na orelha do livro.
Bagagem. Adélia Prado. Record. 2019.
Em outro livro, também do vestibular da mesma universidade, Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, apresentamos uma contextualização brasileira da época de sua escrita, o ano de 1973. Situamos o livro no contexto da ditadura militar, pelo Golpe de Estado de 1964, agravado em 1968 pelo AI-5 e, também marcado pela Guerra Fria e pela Bipolaridade. Porém isso não tem nada a ver com os poemas de Adélia. O que tem a ver sim, é uma outra característica desse tempo, que é a extrema religiosidade do povo brasileiro, ainda completamente dominado pelo catolicismo conservador, especialmente no que diz respeito aos costumes e à moralidade.
Adélia Prado é uma brasileira dessa época. E como brasileira dessa época, a marca maior de sua poesia é a religiosidade. Arriscaria até a dizer, e certamente muitos o dirão, até meio piegas. Toda a sua poesia está impregnada de religiosidade. Até mesmo, nas raras vezes em que ela se defronta com questões existenciais, tão presentes nessa época, ela encontra na religiosidade a sua saída ou a sua fuga. Poderíamos certamente dizer que a sua poesia é uma oração ou um canto de louvor a Deus, o sublime Criador de tudo.
Sobre o livro temos outras indicações. Numa espécie de apresentação, na orelha do mesmo, lemos: "Lido e recebido com empolgação por Carlos Drummond de Andrade - que indicou a publicação do livro -, Bagagem foi escrito num entusiasmo de fundação e descoberta. Emoções que, para a autora, são inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento. Os poemas também mostram sua profunda religiosidade, que pode nascer do impacto da leitura de um texto sagrado, de um olhar amoroso sobre um personagem ou da observação das coisas simples da natureza.
Sobre o processo de criação do livro, Adélia esclarece: 'Os poemas praticamente irromperam, apareceram cargas e sobrecargas de poemas. Eu escrevia muito nesse período, e quando vi que o volume tinha uma unidade, que ele não era apenas uma coleção de poemas, pois tinha uma fala peculiar, dele próprio, entre outros títulos que me ocorreram, Bagagem era o que resumia, para mim, aquilo que não posso deixar ou esquecer em casa. A própria poesia"'.
Além da marca profundamente religiosa de sua poesia, das cenas comuns de seu cotidiano, dos fatos do dia a dia, da descrição da natureza que a cercava, também a sua condição de mulher, ganha algum destaque. Vejamos já no primeiro verso apresentado: Com licença poética: "Quando nasci um anjo esbelto, - desses que tocam trombeta, anunciou: - vai carregar bandeira. - Cargo muito pesado para mulher, - esta espécie ainda envergonhada [...]. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. - dor não é amargura. - Minha tristeza não tem pedigree, - já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. - Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. - Mulher é desdobrável. Eu sou".
Destaco ainda três poemas de sua obra primeira. O primeiro expressa a sua condição religiosa. Saudação: Ave Maria! - Ave, carne florescida em Jesus. - Ave, silêncio radioso, - urdidura de paciência - onde Deus fez seu amor inteligível".
O segundo, creio que expressa uma visão sua mundo, do seu mundo. Uma parte do poema ganhou inclusive a contracapa do livro. O poema tem por título - Leitura. "Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras. - As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha - de escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas - fora do seu tempo desejadas. - Ao longo do muro eram talhas de barro. - Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo - que lá fora o mundo havia parado de calor. - Depois encontrei meu pai, que me fez festa - e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria, - os lábios de novo e a cara circulados de sangue, - caçava o que fazer pra gastar sua alegria: - onde está meu formão, minha vara de pescar, - cadê minha binga, meu vidro de café? - Eu sempre sonho que uma coisa gera, - nunca nada está morto. - O que não parece vivo, aduba. - O que parece estático, espera".
O terceiro, o considero bem autobiográfico. O título é.- Atávica. "Minha mãe me dava o peito e eu escutava, - o ouvido colado à fonte dos seus suspiros: -'O meu Deus, meu Jesus, misericórdia'. - Comia leite e culpa de estar alegre quando fico. - Se ficasse na roça ia ser carpideira, puxadeira de terço, - cantadeira, o que na vida é beleza sem esfuziamentos, - as tristezas maravilhosas. - Mas eu vim pra cidade fazer versos tão tristes - que dão gosto, meu Jesus misericórdia. - Por prazer da tristeza eu vivo alegre".
Ainda preciso dizer que não tenho grande familiaridade com a poesia. Devo dizer que tenho grande dificuldade em lê-la. Não aprendi a ler poesia. Tive até concursos de oratória em minha formação. Ela sempre foi mais voltada para a fé e para a racionalidade do que para a sensibilidade artística. Lacunas que não consegui suprir. Muitas coisas eu esqueci, outras nunca aprendi. Paciência.