sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Ponciá Vicêncio. Conceição Evaristo. Vestibular 2022. UFRGS.

Continuando com as minhas leituras dos livros indicados para o vestibular de ingresso na Universidade Federal do Rio Grande Sul, me deparei com Conceição Evaristo e o seu livro Ponciá Vicêncio. Com certeza, mais uma bela escolha da Universidade Federal gaúcha. Isso, em função da escritora em si, por sua forma peculiar de escrita, mas principalmente pelos temas abordados, como a herança da escravidão, a sua permanência ao longo do tempo, tanto no campo quanto na cidade, o êxodo rural, as questões raciais, as injustiças sociais e, ainda, as relações familiares.

Ponciá Vicêncio. Conceição Evaristo. Pallas. 2017.

É o meu primeiro contato com a escritora. A conhecia apenas por entrevistas e sabia que era escritora, negra e engajada em causas populares. A sua história é uma bela história de superação. Nasceu em Belo Horizonte no ano de 1946, de família pobre e numerosa, moradora em favela. Após concluir estudos em Escola Normal, ela parte para Niterói, onde exercerá a função de professora e... não para mais de estudar. O seu campo sempre foi o da literatura, campo em que foi da licenciatura ao doutorado. Sua vida foi dividida entre a escrita e as aulas, estas dadas em várias universidades.

Na apresentação de Ponciá Vicêncio, ela conta um pouco de sua trajetória de escritora , de seu primeiro livro. Ponciá ganhou a sua primeira edição em 2003, com financiamento da própria autora. Em 2006 veio uma segunda edição, já com financiamento dividido com a editora. Depois veio uma edição de bolso, para atender demandas de vestibulares, fato que continua acontecendo, como é caso agora do vestibular da UFRGS. E, toda orgulhosa, ela nos conta: "E assim vai Ponciá. A moça que saiu de trem de uma cidadezinha qualquer, segue atravessando montanhas e mares. Hoje a história dela pode ser lida em língua inglesa [...], em francês [...] e em espanhol". Ponciá ganhou o mundo.

A estrutura do romance não é tão simples. Ela tem uma certa linearidade, da menina que sai do campo e se aventura pela cidade grande, mas em que o passado está sempre presente em suas memórias, lembranças, dores, afetos e desejos. Seriam fluxos de consciência? O desejo maior era o de reconstituir o que sobrara de sua família, ou seja: Maria Vicêncio, a mãe de Ponciá, a própria Ponciá e o irmão Luandi José Vicêncio. O avô Vicêncio também está onipresente. Ponciá é uma espécie de reencarnação sua. Merecem ainda algum destaque Nêngua Kainda, uma espécie de vidente, o bom soldado negro Nestor e a mulher-dama Biliza, a Biliza-estrela.

Vô Vicêncio é remanescente dos tempos da escravidão. Terras de brancos e o sufoco do trabalho foram vividos pelo pai de Ponciá e de seu irmão, mesmo ainda sendo criança. Ponciá e a mãe modelavam a argila. Eram verdadeiras artistas. A vida de emigrantes para a cidade grande lhes reservava serviços subalternos, como o de soldado e de empregada doméstica, ou ainda o da construção civil, trabalho do homem de Ponciá. Eram os herdeiros de um sistema que continuava, sob disfarces, escravocrata. O vazio da existência, aliada ao desespero e à desesperança levaram Ponciá praticamente à loucura.

Na apresentação do livro, a autora estabelece uma relação entre Ponciá e ela. Essa passagem aparece também na orelha do livro. Vejamos: "Às vezes, não poucas, o choro da personagem se confundia com o meu, no ato da escrita. Por isso, quando uma leitora ou um leitor vem me dizer do engasgo que sente, ao ler determinadas passagens do livro, apenas respondo que o engasgo é nosso. A nossa afinidade (Ponciá e eu) é tão grande, que, apesar de nossas histórias diferenciadas, muitas vezes meu nome é trocado pelo dela. Recebo o nome da personagem, de bom grado. Na con(fusão) já me pediram autógrafo, me abordando carinhosamente por Ponciá Evaristo e distraída quase assinei, como se fosse a moça, ou como se a moça fosse eu". Creio que muitas das pessoas da geração da escritora, como a da minha, viveram, de uma forma ou de outra, o fenômeno do êxodo rural, um fenômeno brasileiro dos anos 1960 - 1970, para a instituição de novos latifúndios para viabilizar o agronegócio.

O livro tem um posfácio assinado por Maria José S. Barbosa, da Universidade de Iowa. Dele destaco duas passagens. A primeira, para mostrar a obra e a sua complexidade. "O romance explora a fundo as sucessivas perdas de Ponciá (a morte do avô, do pai, dos sete filhos, a separação da mãe e do irmão), penetrando no 'apartar-se de si mesma'. Analisa tal fato como uma consequência de grandes abalos emocionais, de profundas ausências e vazios, mas também como o resultado de fatores sociais (extrema pobreza, desamparo e injustiças sociais) que levam a situações extremamente estressantes. A história se desenvolve com complexidade, mas sem atropelos. As imagens e as emoções são dados na dosagem certa, sem exageros e sem mutilações narrativas". A segunda  passagem, a destaco para marcar a natureza dos personagens:

"A ternura é a forma de redenção de quase todos os personagens. Conceição enfatiza os profundos laços de família a unir mãe e filhos, os gestos ternos e os abraços comovidos, e mostra como, neste romance, a solidariedade se estende muito além das relações familiares. É a pedra de toque da amizade do Soldado Nestor e de Luandi (o irmão de Ponciá) e se manifesta no carinho deste último pela prostituta Bilisa. A voz narrativa leva o leitor a compartilhar a profunda ternura que se estabelece entre o marido (também cansado, acabrunhado e sofrido) e Ponciá, quando esta se queda em si mesma".


Maria José termina o seu posfácio com uma saudação à força da palavra. "Ave palavra"! Isso me fez lembrar o prefácio, do professor Ernani Maria Fiori, ao maior livro da educação brasileira e um dos maiores da educação mundial, Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire. Esse prefácio tem por título "Aprender a dizer a palavra". Em seu último parágrafo lemos: "Em regime de dominação de consciências, em que os que mais trabalham menos podem dizer a sua palavra e em que multidões imensas nem sequer podem dizer a sua palavra e em que multidões imensas nem sequer têm condições para trabalhar, os dominadores mantêm o monopólio da palavra, com que mistificam, massificam e
dominam. Nessa situação, os dominados, para dizerem a sua palavra, tem que lutar para tomá-la. Aprender a tomá-la dos que a detêm e a recusam aos demais, é um difícil, mas imprescindível aprendizado - é a 'Pedagogia do oprimido'".

O romance é uma narrativa de pessoas oprimidas, que encontram eco nas palavras de Conceição Evaristo para a libertação de seus múltiplos sufocos. Ave, palavra! Aliás, a alfabetização também está fortemente presente no livro. Um desejo incontido. O analfabetismo da época era uma das grandes chagas da nação brasileira, que continua sob a capa do analfabetismo funcional de ilustres letrados. Muitos deles, nossos governantes.


2 comentários:

  1. Obrigada pela resenha, esse livro é incrível!

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  2. Renata, sou eu que agradeço o seu comentário. Dar voz para quem historicamente nunca a teve. Que maravilha.

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