segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

American Factory. Vencedor do Oscar de melhor documentário.

Creio que nunca na história da premiação do cinema os documentários ganharam tanta notoriedade como na disputa do Oscar de 2020. Talvez isso seja uma percepção mais nossa, mais brasileira, em virtude da participação de Democracia em vertigem de Petra Costa. Mas o vencedor foi American Factory, sobre a indústria americana em tempos de uma economia globalizada. Um tema absolutamente polêmico, uma vez que se trata da presença de uma empresa chinesa em território dos Estados Unidos.

O documentário também ganhou notoriedade especial pela presença da Higher Ground, a produtora do casal Barack e Michele Obama. Mas o documentário tem a assinatura de Steven Bognar e Júlia Reichert e distribuição pela Netflix. O mote é a presença da empresa chinesa, na cidade de Dayton, no estado de Ohio, que se instalou no espaço de uma fábrica da General Motors, fechada em função da forte crise americana no setor da indústria automobilística. A empresa é a Fuyao, indústria do setor de vidros automotivos. Um mote e tanto.

É um "adeus aos bons tempos", segundo um dos funcionários da antiga fábrica da GM e agora, empregado da fábrica chinesa. Na GM ganhava 29 dólares por hora, agora 14. Direitos trabalhistas, praticamente nenhum. O jeito é dobrar jornadas de trabalho, ficar distante da organização sindical e submeter-se a critérios de vigilância permanentes. O panótico de Bentham está onipresente, mesmo sem o perceber. Além dos rígidos controles  dos diretores chineses, há as cobranças de desempenho, que o próprio trabalhador se impõe. A auto culpabilização. Elas são impostas pelas necessidades familiares e pela não aceitação do rebaixamento da condição de classe média. Que drama. A respeito dou uma referência interessante. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/01/sociedade-do-cansaco-byung-chul-han.html

Chineses em território dos Estados Unidos. A economia do "capitalismo de estado" na terra das "liberdades". Um choque cultural, mas não apenas isso. Creio que o sonho capitalista é efetivamente o modelo autoritário chinês, sem concessões para a democracia. Sob esse aspecto o documentário é uma denúncia e, por isso mesmo, foi muito bem recebido pela crítica e pelo público.

São os tempos em que se somam o neoliberalismo, a economia global e o autoritarismo político. É o caminho para os retrocessos dos avanços regulatórios implantados pelo chamado Estado Democrático de Direito, embora os Estados Unidos sempre tivessem grande resistência a ele. Mas os chineses são mais frios, menos corazonados, para usar a expressão do Boaventura de Sousa Santos. Um capitalismo 100% voltado para a eficiência e 0% para as coisas do coração, dos afetos e dos sentimentos. É a razão instrumental, fria e calculista, levada às últimas consequências.

E o que é pior, este modelo de 100% de eficiência, só possível em um estado autoritário, é o grande produto de exportação do capitalismo global - da China e das suas empresas, ancoradas nas doutrinas do neoliberalismo e economia global. Observe-se e destaque-se que esse fenômeno não é restrito aos chineses, mas sim, um produto da economia global. Em vez da elevação da qualidade de vida, a sua deterioração (Vejam a legislação trabalhista e previdenciária sob Temer e Bolsonaro). Este 100% de eficiência na produção também elimina as preocupações ambientais e as preocupações com o ser humano, este agora profundamente abalado com as doenças da mente, provocadas pelas exigências do auto-desempenho. A ameaça da demissão sempre paira à sua frente. Tudo isso em meio a muita celebração do "pertencimento" à grande família da empresa, o porto seguro para as aspirações do american way of life.

O documentário muito me fez lembrar de Naomi Klein, de seu livro Sem Logo - A tirania das marcas em um planeta vendido, um livro do ano de 2000 e que chegou ao Brasil em 2002. Em especial, me lembrei dos três capítulos, sob o título geral, SEM EMPREGOS. São eles: capítulo 9. A fábrica descartada: a produção degradada na Era da Supermarca; 10. Ameaças e trabalho temporário: Do trabalho a troco de nada à "Nação do agente livre" e 11. A criação da deslealdade: Tudo que vai, volta. O título Sem Logo é uma referência às fábricas que produzem para qualquer marca. Elas não tem mais logo.
O necessário livro de Naomi Klein.

American Factory é um documentário para ser visto, para ser passado em salas de aula e amplamente discutido e debatido, embora muitos (Escola sem partido, por exemplo) não o queiram. Mas tudo isso integra o capitulo sobre o autoritarismo. Quanto ao modelo do comunismo chinês, embora a sua eficiência no campo da produção, representa o máximo da degradação de seus princípios: uma "ditadura do proletariado" permanente. Alimento a certeza de que a ideia do comunismo apavora tanto, não pelo seu passado real, mas pelos projetos de futuro, de sonhos, que ele representa. Afinal, como canta o samba enredo da Mangueira (2020) "Não tem futuro sem partilha".

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do sul. Boaventura de Sousa Santos.

Um livro denso. Um livro que se impõe, se você efetivamente pensa num mundo melhor, em que a convivência humana seja minimamente possível. A grande tese do livro O fim do império cognitivo -A afirmação das epistemologias do sul, de Boaventura de Sousa Santos, é a de que as chamadas epistemologias do norte fracassaram e que são absolutamente insuficientes para resolver os graves problemas que a humanidade enfrenta nessas primeiras décadas do século XXI.
O extraordinário livro de Boaventura de Sousa Santos. Pela Autêntica. 2019.

As epistemologias do norte correspondem ao paradigma da racionalidade que emergiu junto com o mundo moderno e em que, basicamente, a razão substituiu a fé, ou nas palavras eruditas de Kant, ao afirmar que "nossa época é propriamente a época da crítica, à qual tudo tem de submeter-se. A religião, por sua santidade, e a legislação por sua majestade, querem comumente esquivar-se dela. Mas desse modo suscitam justa suspeita contra si e não podem ter pretensões àquilo que foi capaz de sustentar seu exame livre e público". Assim a razão substituiu, tanto o altar, quanto o trono. 

Foi uma época de grandes progressos e de muita esperança. O mundo adentrou ao século XX como um século de grande progresso, de prosperidade e, sobretudo, de paz. A razão, pela via da ciência e do entendimento traria a ideia do "progresso indefinido". Mas, mal o século começou e tudo ruiu. Duas guerras, a primeira, a mais sangrenta de todas, e a segunda, com horrores inimagináveis, desacreditaram as crenças. Adorno denuncia a razão como a razão instrumental. O mundo se refez, tanto por revoluções, quanto por reformas. As duas estão desacreditadas no início do século XXI.

Assim, diante da ausência de esperanças e de perspectivas, o mundo das teorias precisa se refazer. As ideologias do norte, representadas pela "deusa razão" são insuficientes para continuar oferecendo esperança, ingrediente fundamental da natureza humana, para que o mundo continue com a ideia do dia de amanhã e ofereça princípios que, minimamente, assegurem a convivência e a sobrevivência da humanidade.

Como as ideologias do norte não mais oferecem essa possibilidade, o mundo da teoria precisa ser reinventado. Boaventura de Sousa Santos nos oferece essa possibilidade, pelo que ele chama de "ideologias do sul". Se as ideologias do norte brotam da razão, da razão instrumental, distante do coração (do corazonar), temos que buscar alternativas nas epistemologias do sul. Nelas o conhecimento emerge não da razão, mas da necessidade. As ideologias do norte impuseram três categorias ao mundo e trouxeram muitas injustiças e, em consequência, muitas revoltas. Essas categorias são o capitalismo, o colonialismo e o patriarcalismo. Nenhuma dessas categorias foi superada, pelo contrário, elas se refizeram a cada dia e continuam impondo cada vez mais dor, sofrimento e riscos permanentes.

Somente as ideologias do sul, com a oferta de conhecimentos que em muito ultrapassam os da fria razão e que são ricas em diversidade, podem se oferecer como alternativas. Alternativas aos "riscos de morte em contexto de conflitos armados dos quais as vítimas, civis inocentes, não são participantes ativos; o risco de doença causado pelo uso massivo - quer legal, quer ilegal - de substâncias perigosas; o risco de violência causado pelo preconceito racial, sexista, religioso, xenófobo e outros; o risco de ver saqueados os seus próprios magros recursos, seja o salário, a pensão de reforma, ou a casa hipotecada [...]; o risco de precariedade no emprego e o risco de frustração das expectativas relativas à estabilidade de emprego necessárias para elaborar planos para o próprio e sua respectiva família. Esse é o grande mundo da experiência do medo sem esperança...".

Como já afirmei o livro tem rara densidade teórica. Estabelece diálogos absolutamente plurais. É dividido em três partes e doze capítulos, além de prefácio, introdução, conclusão e bibliografia. As três partes são: 1. Epistemologias pós-abissais; 2. Metodologias pós-abissais e 3. Pedagogias pós-abissais. Os temas são desenvolvidos ao longo de 478 páginas.

A parte 1 tem os seguintes capítulos: 1. Percursos para as epistemologias do sul; 2. Preparar o terreno; 3. Autoria, escrita e oralidade; 4. O que é a luta; 5. Corpos, conhecimentos e corazonar. Chamo especial atenção para este capítulo 5, para mim, o mais belo do livro.

A parte 2 tem os seguintes capítulos: 6. Descolonização cognitiva: uma introdução; 7. Sobre as metodologias não extrativistas; 8. A experiência profunda dos sentidos; 9. A desmonumentalização do conhecimento escrito e arquivístico.

A parte 3 tem os seguintes capítulos: 10. Gandhi, um arquivista do futuro; 11. Pedagogia do oprimido, investigação-ação participativa e epistemologias do sul (capítulo dedicado a Paulo Freire e ao espanhol Fals Borda); 12. Da universidade à pluriversidade  e à subversidade. A conclusão é uma espécie de síntese muito bem feita do livro e tem por título "entre o medo e a esperança", que segundo Spinoza são as duas emoções básicas da vida. O atual quadro se apresenta como "uma vida na expectativa, sem expectativas".

Dessa conclusão tiro uma passagem muito significativa: "Face a tal fato, o argumento central deste livro é o de que qualquer intervenção que tenha como objetivo interromper esse tipo de política requer a interrupção da epistemologia que lhe está subjacente. Isso significa que a intervenção epistemológica é também uma intervenção política. A essa interrupção dou o nome de epistemologias do sul. Baseado nelas, defendo que não faltam alternativas ao mundo. Falta sim, um pensamento alternativo de alternativas. Esse é o caminho mais seguro para recuperarmos a esperança no nosso tempo. Não esperança sem medo, mas esperança suficientemente resiliente para não se deixar vencer pelo medo sem esperança".

E para deixar claro a grande finalidade do livro, de combate ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcalismo, recorro aos dois parágrafos da contracapa: "Afinal de contas, por que é que o pensamento crítico eurocêntrico se rendeu? Por que desistiu de formular alternativas críveis que explicassem e fortalecessem as lutas contra a dominação e a opressão? Defendo neste livro que para responder a essas questões é imprescindível questionar os alicerces epistemológicos do pensamento crítico eurocêntrico e ir além dele, por mais brilhante e magnífico que seja o conjunto de teorias que ele gerou.

Para recuperar a ideia de que existem alternativas, bem como para reconhecer que as lutas contra a opressão que continuam a ter lugar no mundo são portadoras de alternativas potenciais, é necessária uma mudança epistemológica. O argumento deste livro é que essa mudança se encontra naquilo que chamo de epistemologias do sul". E... vamos cravar bem os inimigos que oprimem: capitalismo, colonialismo e patriarcalismo.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Parasita. Bong Joon Ho. Melhor filme e melhor filme estrangeiro.

Oscar 2020. Algo inédito. Parasita, o filme do diretor e roteirista sul coreano, Bong Joon Ho, ganhou, pela primeira vez na história, o Oscar de melhor filme não falado em língua inglesa. E de quebra e, por óbvio, levou também o prêmio de melhor filme estrangeiro. É..., o mundo do cinema vai para além de Hollywood.

Vou começar o post definindo o que é um parasita, já que o termo, nesta semana, ganhou notoriedade também no Brasil, quando o ministro "Posto Ipiranga" de Bolsonaro, indevidamente chamou os funcionários públicos brasileiros de parasitas. Se o uso de Paulo Guedes do termo "parasita" foi absolutamente inadequado, o mesmo não se pode dizer do diretor e roteirista Bong Joon Ho. Vamos ao conceito, buscando-o no "Aurélio":

1. "Organismo que, pelo menos em uma fase de seu desenvolvimento, se encontra ligado à superfície ou ao interior de outro organismo, dito hospedeiro, do qual obtém a totalidade ou parte de seus nutrientes. 2. Indivíduo que não trabalha, habituado a viver, ou que vive, à custa alheia. (Seria às custas da extração de mais valia)? [...] 5. "Que vive à custa alheia, arrimadiço, pançudo". Me permito aqui buscar uma imagem de um parasita, extraído da natureza. A imagem é a foto, tirada na bela cidade de Bonito, no MS. Na foto uma figueira parasita uma palmeira. Deixo até o post que escrevi a respeito. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/09/bonito-ms-roteiro-de-uma-viagem-forca.html
Fotos em que a figueira vai se entrelaçando com a palmeira e lhe suga a seiva. O resultado é a deformação, tanto da palmeira, quanto da figueira.

Bem, voltamos ao filme. Ou melhor, ao uso do seu título Parasita. Uma metáfora do sistema capitalista. Mas volto, mais uma vez, à palavra e ao seu significado, recorrendo a Hegel, à sua dialética do escravo. A vida fácil, de quem detém meios para não fazer nada, vivendo na ociosidade,  com o tempo, desaprende o próprio fazer, tornando-se dependente daquele a quem ele paga para o fazer, que ele já desaprendeu. Tornando-se dependente dele, transforma-se, ele mesmo, em escravo.

O filme mostra duas famílias. Ambas tem quatro membros. A de Ki-Taek é muito pobre, vive mal e todos estão desempregados. Vivem buscando uma conexão no WiFi, captado da vizinhança. Já a família Park vive no maior dos luxos, casa projetada por arquiteto famoso e todos os meios de tecnologia à disposição. O filho da família pobre entra na casa rica como professor de inglês. Aos poucos e com muitas artimanhas emprega a família inteira na casa dos Park. A sabedoria "Google" ajuda até a arrumar emprego extremamente sofisticado. O contraste das habitações é mostrada como uma das contradições do capitalismo da Coreia, uma das vitrines do sistema. Êxitos recentes. Mazelas sempre ocultadas. Mas na casa rica existe vida também no porão. A cozinheira da casa "comia demais". Até enchente afetando a população pobre aparece.

A parasitagem é dupla. A da família Park, pelos mecanismos tradicionais e o da família Ki-Taek, pelos mecanismos da malandragem e até algo mais pesado, como as falsificações arquitetadas pelos planos do chefe da família. Por esses planos também pretendem chegar à vida de parasitas. A partir daí, o filme que começa meio comédia, vira tragédia. Tudo termina em violência. A festa é um bom momento para o seu começo. A violência que o sistema hospeda dentro de si, explode. O filme não é tão simples e a compreensão exige concentrada atenção. De preferência, vê-lo duas vezes.

Voltando às minhas fotografias. Figueira e palmeira definham, se atrofiam. Nenhuma terá o seu esplendor original, natural. Da mesma forma a sociedade, que em sua estrutura organizacional permite a parasitagem, definhará e se atrofiará. Só vamos lembrar que a parasitagem do filme atinge a esfera do humano. Não mais teremos a ação da natureza mas sim, a intervenção humana. E a resposta será dada através da violência e do medo dela, que por si só, já é o maior dos horrores.

Assim como muitos que estão lendo este post e, certamente, não estão gostando, assim também  deve ter outros tantos que não estão gostando nada deste filme e da temática por ele abordada. Afinal de contas, pensadores do sistema capitalista já chegaram a proclamar o próprio fim da história. Atingimos a única forma viável da organização humana, proclamam. Deixo ainda uma afirmação com a sabedoria de mais de dois mil anos de história. Ela é de Aristóteles. O seu pensamento afirma que a sociedade que não é boa para todos, não o será para ninguém. Quanto ao Paulo Guedes, personagem menor de nossa história, e que nela só entrou por um infeliz acidente, deixa ele de lado. Merece o esquecimento. É ele um parasita do sistema financeiro internacional, o pior de todos. A sua violência anda em outra velocidade. A sua necro-política ocorre num ritmo um pouco mais lento, mata aos poucos.

Bong Joon Ho, além de diretor também é o roteirista do filme. Cinema de autoria. O filme levou seis indicações de Oscar, a saber:

Melhor filme;
Melhor filme estrangeiro;
Melhor direção;
Melhor roteiro original;
Melhor direção de arte;
Melhor montagem.

Na premiação, levou quatro estatuetas: Melhor filme, melhor direção, melhor filme estrangeiro e melhor roteiro original. Todos prêmios muito significativos.




sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Democracia em vertigem. Petra Costa. Indicado ao Oscar de melhor documentário.

A proximidade da solenidade de premiação do Oscar 2020 me fez ver  um dos indicados, no caso, o de melhor documentário de longa metragem, Democracia em vertigem, de Petra Costa. A sua indicação já foi uma surpresa que será, ainda maior, caso receba a indicação do prêmio maior. Na abertura do documentário tem uma nota, registrando que o tema será o da ascensão e queda do PT e a polarização do Brasil que se estabeleceu, especialmente, após os movimentos de extrema direita, iniciados nos protestos de 2013.

Democracia em vertigem é um documentário para a história, um verdadeiro arquivo dos fatos,  todos devidamente registrados pela mídia. É também inegável, que é um documentário de autoria, com forte posicionamento de Petra, que é também a roteirista do documentário. Esse posicionamento é absolutamente legítimo, a exemplo dos grandes documentaristas.

Para quem acompanhou mais de perto a política desse período, não há grandes novidades. A novidade maior foi para o público internacional, que teve os fatos catalogados e reunidos nesse documentário. São duas horas de duração. Certamente foi este o motivo maior para a sua indicação ao Oscar.

O documentário inicia com uma espécie de apresentação de Petra, de sua origem familiar. Seus pais se posicionaram contra a ditadura militar de 1964, atuando na clandestinidade. O seu nome, Petra, é uma homenagem a um personagem forte e influente do período, Pedro Pomar. Petra também não esconde a ligação de sua família com uma das maiores construtoras do país: A Andrade Gutierrez.  São retomadas cenas da ditadura, da repressão, violência e tortura. Entram em cena também as reações. Lula aparece como líder sindical e fundador de um partido político, vinculado aos trabalhadores, o PT. Lula concorre às eleições de 1989, 1994, 1998 e vence em 2002, com um discurso de conciliação.

Após mostrar a euforia da posse e a obsessão de Lula para acabar com a fome no país, as dificuldades começam a ser mostradas. A governabilidade e a aliança com o PMDB, o maior partido político brasileiro. Surge o mensalão. Lula sai ileso mas dois importantes nomes do PT, importantes na linha sucessória, são defenestrados: José Dirceu e Antônio Palocci. Lula se reelege em 2006. Amplia o leque de alianças, mas elas tem um preço. O país descobre o pré-sal. Lula, com 87% de aprovação popular, elege Dilma Rousseff, como sua sucessora. Ela começa bem, mas vem os significativos protestos de 2013.

Os grupos de extrema direita começam a atuar fortemente. Dilma tem dificuldades em governar. Falta-lhe a habilidade política. Adere à austeridade e cria mecanismos de combate à corrupção, entre eles, o mecanismo da delação premiada. Apesar de tudo, Dilma se reelege. Aécio Neves, seu principal oponente e com quem Petra tem vínculos familiares, não reconhece os resultados e começa a tramar. Cada dia mais, até chegar ao impeachment. Entram em cena outros personagens decisivos, Cunha e Temer. O impeachment é marcado e aprovado pela Câmara e o julgamento vai para o Senado. O golpe se confirma em 31 de agosto de 2016.

São marcantes os votos dados pelos deputados a favor do impeachment e os seus discursos em favor de Deus, da família e, notórios corruptos, pelo combate à corrupção. Mas o voto mais marcante, nesse processo é dado por Jair Bolsonaro, que homenageia o notório torturador Carlos Brilhante Ustra. Lança-se candidato, tendo nesse momento 2% das intenções de voto. Aos poucos, o mercado e a elite conservadora o transformam em Messias e mito.

Esse voto com a homenagem a um torturador me fez lembrar uma fala de Adolfo Pérez Esquivel, o argentino detentor de um Nobel pela Paz, no curso de Direito da UFPR: "Sobre a impunidade não se constrói a democracia". Tivesse sido Jair Bolsonaro preso nesse momento, por exaltação à tortura, a nossa frágil democracia talvez tivesse tido maiores chances de sobrevivência. 

Tem também a famosa frase de Romero Jucá: Com Supremo e com tudo, quando Dilma anunciou mais fortes mecanismos de combate à corrupção. Mas o golpe não estava consumado. Lula precisaria ser afastado do processo sucessório de 2018. Ele aparecia em primeiro lugar em todas as pesquisas de intenção de voto. A força tarefa da Lava-Jato se encarregou disso. O conluio entre o Poder Judiciário e a mídia fez o pré-julgamento do ex-presidente, condenado por Moro e com a pena ampliada pelo TRF-4, em tempo de uma velocidade nunca vista. Aí sim o golpe estava consumado. Bolsonaro será eleito presidente e Sérgio Moro será o seu ministro da justiça.

O documentário receberá o Oscar? A crônica especializada aponta que não. Mas o mais importante já se realizou. Um registro para a história e uma denúncia perante o mundo. Por parte da direita, sempre raivosa, muita indignação. É acusada de traidora e contrária aos interesses do país. Nenhuma novidade. Os seus concorrentes são: American Factory, The Cave, For Sana e Honeyland. Vamos aguardar o dia 9 de fevereiro e, para o Brasil, a volta da democracia e o funcionamento pleno das instituições.










segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Temas educacionais. Discussões pedagógicas. 2020.

O grupo de professores ligados à oposição da direção estadual da APP-Sindicato, denominado APP Independente, recebeu uma bela convocação, assim expressa pelo professor Luiz Paixão, um dos coordenadores do grupo: "Atendendo um pedido de um grupo de pedagogas da rede pública do Paraná gravamos uma série de vídeos para contribuir com a reflexão das políticas educacionais em implementação no Paraná".
Professor Luiz Paixão, um dos coordenadores dos trabalhos de formação da APP-Independente.

Aproveito esse espaço do blog, um espaço permanente, para deixá-los à disposição de quem delas quiser fazer uso. A primeira fala é do professor Luiz Paixão, que, além da saudação inicial, fala sobre a avaliação, que não pode ser reduzida a treinamentos para a realização da "Prova Paraná" e de seus objetivos visando o IDEB. A avaliação sempre deve ser sobre o processo de aprendizagem. Aborda ainda o tema do currículo e os desmontes que ele vem sofrendo. Eis a fala:   

A segunda fala é minha. Abordo a questão da história da educação pública, fruto da modernidade e que tomou forma através de um longo processo histórico, como educação pública religiosa, estatal, nacional e democrática, na sucessão dos diferentes interesses. A sua forma mais consagrada é a da educação pública, gratuita, universal, obrigatória, laica e progressista. Foi instituída pelos Sistemas Nacionais de Educação ao longo da segunda metade do século XIX. Por ela se eliminou o analfabetismo e se formou o trabalhador exigido pelo mundo do trabalho da Revolução Industrial. Dois princípios sempre a nortearam. A unidade entre a formação filosófica e a preparação para o mundo do trabalho. Quando essa unidade é quebrada, formam-se, segundo um belo texto do professor Milton Santos, os deficientes cívicos. Eis o vídeo:

Deixo também o texto do professor Milton Santos , Os deficientes cívicos:

A terceira fala também é minha. Verso sobre a educação como um enorme campo de disputas, entre os interesses do capital e os interesses do trabalho. Essas disputas se dão pela formulação das teorias pedagógicas, que de forma geral se apresentam como a pedagogia tradicional, centrada no professor e nos conteúdos, na pedagogia da escola nova, centrada no aluno e nas suas atividades e as pedagogias tecnicistas, não centradas, nem no professor, nem no aluno, mas nos meios. As chamadas tecnologias educacionais. As pedagogias tecnicistas ganharam evidência a partir dos anos 1950, com a Teoria do Capital Humano. Você mesmo é o teu capital. Faça de você uma máquina de alta tecnologia. Com a teoria do Capital Humano os filósofos, pedagogos e psicólogos foram relegados na formulação das políticas educacionais, preteridos pelos economistas. O Banco Mundial monopolizou essa função. No Brasil essas políticas se afirmaram especialmente em três momentos: Na ditadura civil militar de 1964, na primeira onda neoliberal dos anos 1990 e na segunda onda neoliberal, após o golpe de 2016. Toda a ênfase será no treinamento e no menosprezo às disciplinas do pensar. Eis o vídeo:

A quarta fala é do professor Sebastião Donizete Santarosa. Faz uma calorosa saudação mas logo se centra no clima de tristeza e desânimo que tomou conta das escolas, em função das políticas pedagógicas dissociadas da realidade e das necessidades dos educandos, implementadas pela Secretaria de Estado da Educação. Essas políticas desconsideram a autonomia dos professores e lhes impõem controles e tutorias, que redobram a burocratização em seus trabalhos. Os professores tem a capacidade do discernimento e da autonomia pelos seus estudos, pela realização de seus concursos e pela sensibilidade humana adquirida ao longo de seus anos de trabalho. Reclama também da redução dos objetivos da educação a treinamento para a "Prova Paraná" e não às exigências clássicas atribuídas à educação. Conclama a todas e a todos para a resistência e para a unidade em torno das reivindicações por dignidade profissional e condições de trabalho. Eis a fala:

A quinta fala é da professora Cláudia Gruber. Ela se apresenta e fala do ambiente escolar que a Secretaria de Estado da Educação pretende que seja positivo. Que tudo seja perfeito e que todos os conflitos sejam superados pela força do diálogo e do entendimento. Para obter esse clima citam até Paulo Freire. Cláudia nos lembra, no entanto, que não podemos esquecer o nosso ontem dos últimos anos, sob pena de comprometer o nosso hoje e o nosso amanhã, também citando Paulo Freire. Não podemos esquecer a perda dos direitos, as repressões nas greves, a redução das garantias trabalhistas e a precarização das condições de trabalho. Isso se quisermos ter o nosso respeito profissional afirmado e assegurado. Eis a fala da professora Cláudia:
https://www.facebook.com/APPindependente/videos/pcb.2899418636746768/120761995942468/?type=3&theater

A sexta e última fala é novamente do professor Luiz Paixão. Ele também se refere ao ambiente escolar, que deseja ser saudável, aconchegante e alegre. Para que ele se efetive o professor deve ficar atento para não entrar no jogo divisionista do governo, que chega até o extremo de provocar que professores, por meio de atas, incriminem os próprios colegas. Reclama de um clima adverso contra os professores provocado pelo governo e certos setores da sociedade. O seu trabalho é criminalizado por conteúdos trabalhados e chega a ser até culpabilizado pelo fracasso escolar. Reconhece que há problemas nas escolas mas discorda dos controles, fiscalização e tutorias como solução. Essas políticas geram o quadro de adoecimento que grassa em nossas escolas, fruto do mau ambiente escolar criado por esses meios que cerceiam a autonomia e a liberdade do professor. Somos humanos e não máquinas. Eis a fala:

Como o professor Luiz Paixão se referiu ao fato de sermos humanos e não máquinas lembrei de Charles Chaplin, de seu filme O Grande Ditador, em que profere o seu último discurso:

A todas e a todos um ótimo ano letivo de 2020. As imperfeições nos vídeos são fruto da luta contra a exiguidade do tempo que travamos. Se servirem para alavancar debates expressamos a nossa satisfação e agradecimento.




1917. Sam Mendes. Oscar 2020.

Domingo chuvoso e sonolento. A temporada do Oscar 2020 me fez assistir o segundo filme com maior número de indicações, dez no total. Trata-se de 1917, do diretor e roteirista Sam Mendes. A data de 1917 remete a um dos mais tristes episódios da história da humanidade, a Primeira Guerra Mundial, ocorrida entre os anos de 1914 e 1918. Foi uma das mais sangrentas das guerras e que atingiu, especialmente, toda a parte central da Europa.

A guerra teve as suas causas imediatas, relacionadas ao Império Austro-húngaro, mas os verdadeiros motivos eram de ordem econômica. Foi uma guerra de impérios econômicos, em que se confrontaram a Alemanha e a Inglaterra. Vamos lembrar as alianças que se formaram. De um lado estava a Tríplice Entente, com o império austro-húngaro, a Alemanha e, por um breve tempo, também a Itália. Do outro lado, A Tríplice Aliança formada pela Grã Bretanha, França e Rússia. A Rússia sai dessa guerra, fazendo a sua Revolução de 1917. Mas 1917, não é essencialmente um filme de guerra. Usa o seu cenário para mostrar particularidades dela.


1917 faz uma exaltação a dois personagens dessa guerra, que normalmente seriam absolutamente anônimos, seriam os heróis sem medalhas, que se formam ao longo de todas as guerras. São dois cabos que recebem uma missão especial, a de levar ao Coronel Mackenzie uma mensagem do Comando, para deter o seu exército, diante de uma cilada armada pelos inimigos alemães. Os dois teriam que atravessar uma região dominada pelo inimigo. Era uma missão totalmente impossível de ser realizada. Se fosse realizada com êxito poderia salvar 1600 soldados.

Ao final aparece na tela uma mensagem bem ilustrativa sobre o roteiro do filme, de autoria de Sam Mendes e de Krysty Wilson-Cains. As letras que aparecem nos informam que Sam ouviu a história dos dois cabos, contada pela sua avó. Os dois cabos são Schofield e Blake. Blake tinha um irmão nesse exército a ser salvo. Assim começa a missão, que tem como prazo o imediato de um único dia, o dia 6 de abril de 1917. A realização dessa missão leva uma hora e cinquenta e nove minutos na tela.

Como vimos, a missão seria impossível, pois, teriam que atravessar campos inimigos. As cenas são impressionantes e mostram bem o cenário devastador da guerra, tida como a mais sangrenta de todas. Aparecem trincheiras abandonadas, túneis escavados com armadilhas que poderiam desabar com a passagem e o leve toque de um simples e inevitável rato. Inimigos estão à espreita em todos os cantos. Um avião cai na proximidade dos dois. Eles salvam o piloto do avião em chamas, mas este retribui com um tiro em Blake. Schofield o mata. Blake também não resiste. Schofield terá que cumprir a missão sozinho.

Novos obstáculos. Pontes destruídas, águas correntes em torvelinhos traiçoeiros. Finalmente chega aos companheiros. Aí entra em cena a burocracia e a disciplina militar. Schofield tem enormes dificuldades em se encontrar com o comandante, que o recebe com reticências, após já ter ordenado o primeiro dos ataques. As tramas abertas ao longo do filme começam a se fechar. Schofield encontra o irmão de Blake, lhe entrega os seus pertences e escreve a carta prometida para a mãe do companheiro de sua missão. É medicado, alimentado e recebe o descanso após total exaustão. O valor desses dois soldados é o verdadeiro tema do filme.

O filme me fez lembrar muito da batalha de Maratona em que o exército de Atenas venceu o poderoso e invencível exército persa. Essa vitória deveria ser comunicada a Atenas. Fidípedes foi encarregado dessa missão. Após percorrer os 42,195 quilômetros que o separavam de Atenas, chega exausto, comunica a mensagem e morre. Como glória, sobrou a homenagem realizada em todas as olimpíadas.

O filme é dirigido por Sam Mendes, que divide o roteiro com Krysty Wilson-Cains. Na interpretação dos cabos estão George Mac Kay, como cabo Schofield e Dean-Charles Chapman, como o cabo Blake. Chamam atenção também a fotografia e a trilha sonora. O filme recebeu o prêmio maior no Globo de Ouro e conta com dez indicações ao Oscar, a saber:
Melhor filme
Melhor diretor
Melhor roteiro original
Melhor fotografia
Melhor trilha sonora original
Melhores efeitos visuais
Melhor direção de arte
Melhor mixagem de som
Melhor edição de som
Melhor maquiagem e penteado.

Recebeu três Oscar. Os de:
Melhores efeitos visuais, melhor fotografia e melhor mixagem de som.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

A Nova Ordem. Bernardo Kucinski.

Este livro eu li por causa de seu autor. Estou falando de A Nova ordem, de bernardo Kucinski. Conheci o autor por um texto seu, nos Cadernos Diplô do Le Monde Diplomatique, especiais para o Fórum Social de 2002, realizado na cidade de Porto Alegre. Nesse Cadernos ele comparece com um texto com o título "Do discurso da ditadura à ditadura do discurso", em que apresenta dez paradoxos do jornalismo brasileiro. Um texto brilhante, do qual dou uma especie de síntese/epígrafe:

"No Brasil, a mídia adotou como cartilha o pensamento neoliberal, enterrou a pluralidade e o debate de ideias. Mas a era da adesão irrestrita é também a da grande crise econômica do setor". Esses dez paradoxos também podem ser encontrados em livro seu, Jornalismo na era virtual. Ensaios sobre o colapso da razão crítica. Usei  muito este texto no curso de jornalismo da Universidade Positivo. Na revista eu tenho uma anotação extremamente interessante, uma frase que, segundo eu li, foi encontrada no sindicato dos jornalistas de Buenos Aires. Diz: "A ditadura não me deixava escrever o que penso. O pensamento único não me deixa pensar o que escrevo". Também escrevi um post para o meu blog. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/02/do-discurso-da-ditadura-ditadura-do.html
O belo e triste livro de Bernardo Kucinski. A Nova ordem. Pela alameda.


Agora, não me lembro exatamente onde, eu li sobre este seu livro. Comprei e li. Na contracapa dele lemos: " Ariovaldo quer chegar a um método que assegure, com a mais absoluta certeza, que o preso falou tudo o que sabe, seja qual for sua estrutura mental e psíquica. Um método científico que extraia da memória do preso todas as informações ali armazenadas para a prática da subversão e da contestação da Nova Ordem, sem depender da vontade ou da determinação do próprio preso".

Creio que essa frase nos dá a ideia e o personagem central do romance ou novela. A Nova Ordem instaurada queria o controle absoluto dos utopistas, ou dos que se opunham ao estabelecimento da Nova Ordem. Isso seria feito por métodos científicos, por estudos do médico militar, rapidamente promovido a coronel, o Dr. Ariovaldo. A orelha do livro nos dá outros detalhes interessantes sobre o livro.

"Assim como na sua obra maior K, B. Kucinski poderia iniciar A Nova Ordem repetindo 'tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu" ou "está acontecendo". A narrativa aterradora e envolvente sobre a "nova ordem" no Brasil da ficção nos lembra aquilo que Hannah Arendt nomeou de "banalidade do mal", referindo-se aos criminosos nazistas e a seus crimes. A insanidade e o grau de desumanização daqueles que comandam a "nova ordem" é de tal magnitude que a sociedade anestesiada não consegue acreditar no que vê e, da mesma forma, não sabe como reagir. O inimigo principal são os "utopistas" e todos os portadores de pensamento crítico.

Como o tamanho do "mercado" interno necessário é de 30 milhões de famílias, há de se reduzir o "excesso populacional". Não interessa se constituem um grupo humano de 90 milhões de pessoas. Busca-se então, a forma mais eficiente de livrar-se deles ao menor custo e no prazo mais curto. Os principais personagens da narrativa são figuras patéticas. Dois são especialmente representativos da "nova ordem": o capitão médico psiquiatra Ariovaldo, que conquista fama internacional por suas descobertas e práticas de controle humano através de chip obrigatoriamente instalado nos cérebros da população, e o ex-engenheiro Angelino, tornado catador de rua, que tem flashes de lucidez diante da monstruosidade vigente. Ao que parece a "nova ordem" entra em colapso por suas próprias loucuras. Em algum momento constata-se que as pessoas haviam deixado de sonhar. E, sem sonho, não há como sobreviver. Nem mesmo na "nova ordem". A leitura muito me lembrou de Adorno e a sua terrível exortação Educação após Auschwitz e a pergunta que não quer calar: Quem serão as próximas vítimas?

O livro é uma paródia do Brasil, após o golpe de 2016, quando se instaurou a "nova ordem", embora isso não esteja dito explicitamente. O livro tem 21 capítulos que descrevem este Brasil. A "nova ordem" vai se implantando por uma série de Editos da "Nova Ordem", doze no total, Por eles se extinguem as universidade públicas, se fecham os órgãos de pesquisa e de proteção ambiental, até a extinção do próprio SUS. Em suma, tudo o que Bolsonaro e seus asseclas governadores gostariam de fazer e ainda, vejam bem, ainda não fizeram.

Gostaria de registrar alguns destaques: O primeiro vai para o capítulo XIX, em que o militar Humberto é condenado, sem haver causa para isso. Ele reexamina toda a sua vida e considera que nada de errado fizera e se suicida. Com todos os horrores cometidos, ele não conseguiu enxergar erros. O mal tornara-se banal. Por não enxergar essa banalidade, aplaude a "nova ordem" e liquida sua própria vida em vez de se opor a ela. E, por óbvio, em segundo lugar apontar para o pesquisador da padronização ou customização do comportamento humano, Ariovaldo, o Freud da "nova ordem". De Angelino, o engenheiro catador destaco uma frase significativa: "Pelo lixo se mede a miséria de um povo". Já não havia nele, nada de valor.

Deixo com vocês o capítulo XXII, que serve de epílogo. Ele é significativo: "Apesar de suas descobertas e invenções espetaculares, e do sucesso do programa de customização de humanos, que alcançou fama mundial, Ariovaldo jamais conseguiu capturar um fragmento que fosse do conteúdo manifesto de um sonho. Começaram a lhe faltar cobaias. Presos subversivos, já não havia; a sublevação utopística fora há muito dizimada. E com o encerramento do programa de ajuste populacional cessaram os comboios de retirantes. Ariovaldo ainda tentou capturar os sonhos de pessoas presas por descuidos no trânsito, ou internadas devido a acidentes no trabalho. Foi quando se deu conta de que ao suprimir desejos e paixões, as forças impulsionadoras dos sonhos, o chip de customização havia suprimido os próprios sonhos. Na Nova Ordem, as pessoas tinham deixado de sonhar.

Dizem que foi esse o motivo da crise depressiva de Ariovaldo e da internação no pavilhão psiquiátrico do Hospital Central do Exército, no Rio de Janeiro, onde se encontra até hoje, sofrendo alucinações seguidas de surtos de hiperatividade. Nesses surtos escreve freneticamente horas e horas, às vezes até dez horas seguidas. Não se sabe o que escreve. Nunca deixou que seus escritos fossem lidos. O rumor mais persistente é o de que se auto-injeta com doses cavalares de melatonina que o fazem dormir profundamente e, assim que desperta, põe-se a escrever o que sonhou".

Termino por afirmar que a crítica, o humor e a ironia mantém viva a alma de uma nação. Este livro é essa alma.