quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Bonito. MS. - Roteiro de uma viagem. A força de uma imagem. O parasitismo.

A grandeza turística de Bonito é a natureza. Suas águas límpidas, azuis e transparentes, os peixes, as aves, os rios e os balneários. Para mim, no entanto, uma outra imagem se tornou muito forte, quase preponderante sobre todas as outras belezas. A vegetação típica de Bonito e região é a do cerrado, com destaque para as aroeiras. Já em nosso primeiro passeio uma palmeira me chamou a atenção. Depois vim a saber que o seu nome era Bacuri. No nosso passeio de barco, na barra do rio Sucuri, vi muitos bacuris e, próximo a eles, as figueiras. A imagem da figueira próxima ao bacuri foi a que marcou. Foi a melhor imagem que já vi na minha vida sobre a figura do parasitismo.
Para começar com leveza e suavidade. A beleza da água da Gruta Azul.

O parasitismo é uma relação na qual um se aproveita do outro sem oferecer nenhum benefício em troca. Este fenômeno é muito frequente na natureza e também entre os humanos. A relação é perversa em todos os sentidos. Ela se dá entre o parasita e o parasitado ou entre o parasita e o seu hospedeiro. Em Bonito eu vi esta relação numa proporção nunca vista, por isso me chamou tanta atenção. Foi a da figueira, como parasita e a da palmeira do bacuri como a parasitada, ou hospedeira. As duas saem prejudicadas. A palmeira chega a ser totalmente sufocada e a figueira se desenvolve de forma tortuosa, na disputa pelo sol, que ela mantém com a palmeira hospedeira, na busca da sobrevivência.
Vejam a figueira parasitando o bacuri. Ficam deformados, tanto o parasita, quanto o parasitado.

No ano passado li o livro A América Latina. Males de origem. Este livro de Manoel Bonfim data de 1905. É um vigoroso ensaio que, conforme consta no título, sobre a origem dos males que são comuns a toda a América Latina. Manoel Bonfim os atribui a nossa origem ibérica, em que tanto a Espanha, quanto Portugal se constituíram como países, com o saque e a rapina dos povos árabes que ocupavam a península. Após a sua expulsão, com os descobrimentos marítimos, o saque e a rapina continuou. As civilizações nativas da América seriam as novas vítimas, as plantas hospedeiras a serem sugadas.
América Latina - Males de origem. Uma das melhores interpretações de Brasil. O livro data de 1905.

A comparação se torna óbvia. Os povos ibéricos se habituaram ao fenômeno do parasitismo. Primeiro sugaram as riquezas dos povos árabes e depois dos povos aqui da América. Assim os ibéricos são os parasitas e árabes e americanos os parasitados ou hospedeiros. Aqui esta relação tomou a forma da escravidão indígena, africana e do saque das riquezas naturais. Esta relação, de acordo com Bomfim, não é interessante para ninguém, pois além do definhamento do hospedeiro, o parasita enfraquece as suas forças próprias, atrofiando-as, desenvolvendo apenas as da apropriação, num natural processo de acomodação.
A figueira lançando os primeiros tentáculos contra a palmeira. Um primeiro abraço.

Sei que esta imagem é recorrente mas eu quero reforçá-la. Nesta relação todos perdem. Em pouco tempo o parasita perde as aptidões vitais próprias pelo atrofiamento, aperfeiçoando, no entanto, os instrumentos de parasitagem e assim se degenera. Por outro lado o parasitado se depaupera, tendo todas as suas energias sugadas e incorporadas ao parasita. O que eu vi concretamente foi o seguinte. Vi palmeiras em diferentes fases, desde as que receberam os primeiros tentáculos da figueira, até as que desapareceram quase por completo. Em compensação eu não vi figueiras em toda a sua pujança, como aquelas que se veem sozinhas nos campos. Eu as vi mirradas e retorcidas, muito longe de sua esbelteza e grandeza original.
Nem a palmeira e nem a figueira ficaram esbeltas. Transfira esta imagem para a sociedade.

Manoel Bonfim, depois de descrever os males de origem da América Latina no fenômeno da parasitagem, parte para a análise dos valores morais que grassam em tal tipo de sociedade. A conclusão dele é óbvia. Só podem ser valores absolutamente conservadores, pois só assim se mantém a estrutura parasitária. Estes males de origem são assim os responsáveis pelo extremo conservadorismo arraigado em nossa sociedade, sendo estas relações regidas exclusivamente pela força. Qualquer abertura para a mudança poderia significar a ruptura dos parasitados, dos hospedeiros com o seu parasita. Significaria mobilidade social ascendente, autonomia.

Darcy Ribeiro tem uma frase que eu adoro. Ela diz assim: "Fracassei em tudo o que tentei na vida. tentei alfabetizar as crianças, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei construir uma universidade séria, não consegui. Meus fracassos são as minhas vitórias. Detestaria estar no lugar de quem venceu". Os fracassos de Darcy representam tentativas de emancipação enquanto que os vencedores são os que mantém as estruturas parasitárias, exploradoras e sugadoras do esforço alheio. As forças que lutam pela permanência.
As estruturas do parasitismo são os alicerces do conservadorismo da sociedade brasileira. Não são aceitas rupturas, embora estas beneficiassem a todos.

Creio ser fácil identificar as estruturas parasitárias presentes na sociedade nos dias de hoje. O são toda a estrutura exploradora e imperialista do sistema capitalista, especialmente, em seu estágio atual de capitalismo financeiro. A voracidade da figueira, no caso da minha imagem, é tão cruel que suga e atrofia, inclusive, todo o sistema produtivo que o alimenta. Com isso junta forças para manter, sob o manto do conservadorismo, da não mudança, toda uma sociedade com as marcas visíveis de atrofia e deformação.

Para terminar, uma frase memorável de Darcy Ribeiro, na apresentação do livro: "O aspecto com que mais me identifico na obra de Manoel Bonfim é aquele que o opõe a todos os antigos e modernos pensadores coniventes com os grupos de interesse que mantêm o Brasil em atraso. É sua extraordinária capacidade de indignação e de esperança. É sua convicção de que construiremos aqui uma civilização solidária e bela, assim que retiramos o poder das mãos de nossas classes dominantes, infecundas e infiéis". Em outras palavras, parasitárias.
A capacidade de produzir, quando a palmeira não serve de hospedeira para a figueira.

Certamente que a pequena mudança de estrutura havida no Brasil em seus último anos, embora pequena e silenciosa, provocou uma reação conservadora desproporcional. Muitos se sentiram deslocados de sua zona de conforto. O Brasil dos últimos anos está sendo julgado por estes valores morais decorrentes do conservadorismo de uma sociedade parasitária e condenado, não pelos seus erros, mas pelos seus inúmeros acertos.

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