quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Por um Ano Novo Mais Moleque.

Pensando numa mensagem de fim de ano, lembrei-me de uma aula de abertura de um ano letivo. Revirando minhas agendas a localizei. A agenda é de 1994. É a seguinte:

"Se pudesse viver novamente minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais... correria mais riscos, faria mais viagens, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios"

"Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem ter um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda chuva e um para quedas. Se voltasse a viver, viajaria mais leve. Começaria a andar descalço, no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono".

Tenho anotado na agenda que isso é de Jorge Luís Borges, citado por Clóvis Rossi. Por um ano novo mais moleque, era o título. Na mesma agenda encontrei anotado o seguinte:

"Abrirmos a cabeça
Para que afinal floresça
O mais que humano em nós
Então está tudo dito
E é tão bonito
E eu acredito num claro futuro
De música - ternura e aventura".

Tá combinado - de Caetano Veloso. Vai mais um aperitivo. Esse é de Niemeyer, das Curvas do Tempo. É sabido que ele não gostava de andar de avião. Daí vem o seguinte:

"Fiz muitas viagens entre o Brasil, a Europa e os Estados Unidos. Não gostava de andar de avião. De navio, eram 10 dias de férias no mar imenso, sem telefone, inteiramente livre.
Gostava de olhar o mar, cada dia diferente. Mar imenso a lembrar a eternidade. Gostava daqueles dias de ócio, sem fazer nada, a ler, conversar, estirado nas cadeiras de bordo".

Vou viajar, vou contemplar entardeceres, vou ver o mar. Vou ver as cachaçarias de Paraty. Vou me entregar ao ócio, sem ter medo de que ele seja a oficina de satanás. A todos desejo um ano novo repleto de ócio, de tempo livre e, absolutamente sem culpa.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

LIBERDADE - Jonathan Franzen.

Um livro surpreendente. Ele se move um duas direções: uma que se fecha, representada pelo isolamento e pelo remoer de fantasmas interiores e a outra que se abre e que é marcada pelo encontro ou pelo reencontro com o outro e os caminhos que são abertos por essa perspectiva. Se o livro é surpreendente, o seu final o é ainda mais.
Ficha do livro: FRANZEN, Jonathan. Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras. 2011. 605 páginas. R$ 46,50.

O núcleo central do livro gira em torno do casal Walter e Patty Berglund e seus filhos Joey e Jéssica, e se estende para o amigo do casal (amigo e mui amigo), o roqueiro Richard Katz e para Connie, a namorada e depois esposa de Joey. Também Lalitha, uma bela indiana e assistente de Walter ganha um bom espaço no livro. O cenário em que o romance se desenvolve é o dos Estados Unidos, em sua primeira década do século XXI. Com certeza que tem assunto interessante e suficiente para o preenchimento de suas mais de seiscentas páginas.

Um dos temas preferidos de Franzen é o casamento. Mas o próprio casamento de Walter e de Patty se dá em circunstâncias complicadas, mas aparentemente está tudo correto. O Berglund de Walter denuncia a sua origem sueca e existem páginas e páginas no livro que descrevem o que é ser um sueco. Não deixa de ser um homem correto mas, seguramente, é um homem muito chato e sem nenhum tempero. Patty é ex jogadora de basquete e que se recolhe junto com o seu casamento. Se retira do mundo profissional. A vida segue normal e vem os filhos. Richard Katz é o contraponto nesse casamento. É o único amigo de Walter e a grande paixão de Patty.

O livro avança por vinte anos e os problemas se multiplicam. Aparece a típica família americana de classe média. Além dos problemas familiares aparecem os problemas ético morais e um mundo competitivo. Walter vira um ecologista que protege a sobrevivência de passarinhos mas trabalha na legitimação da exploração de minas de carvão a céu aberto, encontrando nelas justificativas de racionalidade. Mas, acima de tudo, ainda tem pretensões de ser um paradigma de moralidade. Joey entra no mundo dos negócios, passa a ganhar milhões, atuando junto a grupos que tiram proveito da guerra do Iraque. Pede conselhos ao pai. Este não sabe o que lhe dizer e vai adiando a sua resposta, adiando os seus desencontros.

Walter se envolve em um caso amoroso que não tem coragem de assumir. Patty recai em sua paixão por Richard. Os filhos já estão mais do que afastados. A solidão passa a corroer os indivíduos livres. Quando eles olham ao seu redor, para os seus irmãos e familiares a situação fica ainda pior. Walter se decide por Lalitha, mas essa morre num acidente de carro e ele fica cada dia mais rabugento na exata medida em que se refugia no seu isolamento. Os vizinhos só existem para serem confrontados. Mas ainda pior que um casamento desastrado é um casamento desfeito e não ter com quem brigar. Aí você briga consigo mesmo e vai ficando cada dia pior.

Se você quiser ter um diagnóstico, uma radiografia, uma tomografia ou uma ultrassonografia da sociedade e da cultura americana não deixe de ler esse livro. Você se envolverá com a instituição da família e do casamento, com os valores de uma sociedade altamente competitiva, com a crise de uma geração jovem e com a alta corrupção da política, que não tem escrúpulos em fazer guerras, para delas tirar proveitos financeiros individuais. O indivíduo num mundo de liberdades tem que garantir a realização de sua felicidade, em meio a uma cultura, que seguramente lhe faz mal. Freud que o diga.

Se você se dispuser a ler este livro, você não estará sozinho nessa empreitada. Mais de um milhão de americanos já fizeram isso e ele foi assim classificado pelo The New York Times: O romance mais comovente de Franzen - um romance que se revela ao mesmo tempo uma envolvente biografia de uma família problemática e um retrato incisivo do nosso tempo.

Para terminar, um aperitivo sobre o significado de namorado ou namorada nos tempos de hoje. A cena envolve Joey e a sua namorada Connie, de quem por sinal gosta muito e acaba mesmo se casando. "Os jovens viam uma namorada como um empecilho insensato no caminho dos prazeres a que pretendiam dedicar os dez anos seguintes". É ou não um quadro da realidade?

Por fim, qual será o significado da palavra liberdade, que dá título ao livro? Não vou aqui entrar em detalhes. Vamos apenas afirmar que a palavra liberdade, ou a sua variável livre arbítrio, é um dos pilares de sustentação da cultura americana. Ela aparece em inúmeras discussões e geralmente ganha o seu significado político e econômico da livre iniciativa e a consequente abominação das intervenções do estado, a não ser em seus negócios com ele, em proveito pessoal. Walter tem uma discussão com o seu irmão Mitch, um alcoólatra reconhecido. Acompanhem a discussão. O dia estava ensolarado e ele só estava fazendo o de sempre. Bebia o tempo todo, mas sem pressa; a tarde ia ser longa.
"De onde você está tirando dinheiro?", quis saber Walter. "Está trabalhando?"
Mitch debruçou-se um pouco vacilante e abriu uma caixa de apetrechos de pesca que continha uma pequena pilha de notas e talvez uns cinquenta dólares em moedas. "Meu banco", disse ele. "E isso aí deve durar até o tempo esfriar de novo. Trabalhei de vigia noturno em Aitkim no inverno passado".
"Eo que você vai fazer quando acabar esse dinheiro acabar?" 
"encontro alguma coisa. Eu sei tomar conta de mim".
"Você não se preocupa com os seus filhos?"
"É, às vezes eu me preocupo. Mas eles têm boas mães que sabem cuidar deles, e eu não presto para isso. Acabei entendendo que só assim sei tomar conta de mim mesmo."
"Um homem livre."
"É o que sou."
E se calaram...

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Intocáveis. A sensibilidade do humano.


Fazia tempo que eu queria assistir este filme. Confesso que não fiz um esforço maior para assisti-lo antes, em função, talvez, de preconceitos com relação ao que eu preconcebia do filme: mais um melodrama. Ontem eu fui. Confesso que sinto dificuldades em descrevê-lo. É um filme, não para descrever, é um filme para sentir.O mais que eu posso dizer, é que ele é simplesmente maravilhoso. É maravilhoso não pela sua história mas, por aquilo que ele realmente nos oferece de melhor. Algo que é intocável. A sensibilidade humana.

O filme é francês, dirigido por Eric Toledano e Oliver Nakache e é um grande sucesso de público. Na França está batendo recordes de público e no Brasil já passou da casa de um milhão de espectadores. A história é simples: um homem muito rico e de fino trato (Philippe) sofre um acidente e fica tetraplégico. Precisa de assistência em tempo integral para suprir as suas deficiências, os seus novos limites. A procura por essa pessoa que o acompanhe é interminável. Ninguém se adapta à função.

Alguém se inscreve (Driss), não para o exercício da função mas, para obter mais um carimbo nos seus papéis, para receber o auxílio desemprego. E o impossível acontece. Driss não tinha o mínimo perfil, ou qualidades requeridas para ser este assistente de Philippe e, no entanto... tudo deu certo. Philippe não é tratado como um pobre coitado e será tocá-lo naquilo que o incomoda mais do que a sua própria situação. A sua solidão. Os seus limites físicos tinham sido atingidos, mas não a sua sensibilidade e o seu desejo de viver e  este desejo de viver, ampliado pelo sentimento, pela emoção e pela sensibilidade. Driss, pelas coisas mais simples, lhe restaura o desejo de viver.

Por pragmatismo, que era o fio condutor de todas as entrevistas para o preenchimento da função, o único que jamais seria aprovado, seria exatamente o Driss. O imponderável o levou ao exercício da função. E a exerceu não como uma função, isto é, não a exerceu burocraticamente. A exerceu vitalmente e isso restaurou em Philippe o desejo de viver. Essa é a grande lição do filme. Em minha vida de professor esse dado sempre esteve muito presente. Exercer uma função que nunca fosse meramente burocrática, mas uma função vital. Belas reflexões sobre o pragmatismo.

Outra questão importante que eu vi no filme. O encontro das diferenças. O mundo aristocrático e sofisticado de Philippe e o popular de Driss. Os dois se complementam e se enriquecem. Existe o momento para cada um. Existe o momento do sublime e existe o momento para a festa.

Adorei a cena em que Driss volta a atender Philippe e o encontra desanimado e com barba para fazer. Ao fazê-la lhe imprime diversas figuras. A cena provoca a repulsa ao assemelhá-lo a Hitler e o hilário ao torná-lo semelhante ao ativista José Bové.

Saí do cinema pisando leve, me sentindo bem. Não por uma história fantástica ou recursos ao show, tão próprios do entretenimento. Saí pisando leve por aquilo que é meio intocado pelos valores culturais hoje em dia, que é o retorno às coisas simples, ao humano e especialmente ao desejo de viver a vida em toda a sua intensidade, mediado exatamente pela sensibilidade, pelas emoções ou simplesmente pelo humano e pela sua extensão e multiplicação. Acima de tudo uma bela lição de vida.

domingo, 9 de dezembro de 2012

"A Terra é Azul" - Tributo ao Grêmio.

"A Terra é Azul". Esta frase foi dita por quem viu a terra, pela primeira vez, a partir do espaço. Era o dia 12 de abril de 1961 e foi dita pelo cosmonauta russo Iuri Gagarin, a bordo da nave Vostok I. Essa façanha russa mexeu com os brios americanos. Houve reformas educacionais e enormes verbas foram destinadas para a pesquisa científica. A resposta veio com a Apolo 11, em 20 de julho de 1969, com a chegada à lua.

Não consta que a data de 12 de abril tivesse algo de especial para que o cosmonauta proferisse a sua famosa frase "a terra é azul". Só fico imaginando se Iuri Gagarin, em vez do 12 de abril de 1961, tivesse subido ao espaço no dia 11 de dezembro de 1983, no dia em que o Grêmio foi campeão do mundo, ou mesmo no dia de ontem, 8 de dezembro de 2012. O que diria então, ao ver este mundo de bandeiras azuis sendo desfraldadas. Certamente teria dito: "A Terra é azul, azul, azul".

Rendo hoje a minha homenagem ao Grêmio, pela inauguração do mais moderno estádio brasileiro e por ter dado esse passo para frente no futebol brasileiro, antes que qualquer outro time. É impressionante o que foi feito. 192.000 m² de construção, altura equivalente a um prédio de 19 andares e com 60.540 lugares. O impressionante é o tempo de construção. Tudo isso foi construído em pouco mais de dois anos.

E não é que o Grêmio não tivesse estádio.O seu grande palco de festas, o Olímpico Monumental, foi e é um grande exemplo do que é uma construção coletiva. A primeira construção foi obra de Saturnino Vanzelotti, nos anos 50. Vanzelotti está enterrado no cemitério João XXIII, numa pequena distância do estádio e voltado de frente para ele, para que, de seu lugar definitivo, não perdesse um único jogo do time do seu coração. Agora terá que fazer algumas acomodações e lançar o seu olhar para um pouco mais longe.

A outra construção do Estádio Olímpico foi feita por Hélio Dourado, no final dos anos 70 e que o transformou no Olímpico Monumental. Merece destaque a forma como ele foi, primeiro construído e, depois reformado. Foi uma construção e reconstrução absolutamente coletiva. Campanhas de doação de tijolos e de sacos de cimento deram aos gremistas um sentimento de pertencimento do seu estádio. E por isso existe hoje, embora a alegria diante do gigantismo da nova obra, a nostalgia e o sentimentalismo da despedida. Hélio Dourado diz que jamais pisará na Arena Grêmio.

A construção dessa Arena não tem nenhum apelo ao coletivo gremista e também, e é muito importante dizer, não tem nenhum dinheiro público na sua execução. Ele é algo absolutamente moderno, numa parceria entre o Grêmio e a OAS., num empreendimento que alcança as gigantescas cifras de quase 600 milhões de reais. O lamentável nessa história será a implosão do Olímpico Monumental. Um pedaço de história que se vai, junto com a sua implosão.

A inauguração foi maravilhosa. Um show em nível internacional. A força da cultura regional gaúcha foi mais uma vez levada e afirmada perante o mundo inteiro."Sirvam nossas façanhas, de modelo à toda terra". Emocionante e, muito importante. Simbolicamente foi assinado, em 8 de dezembro de 2012 um decreto, em que definitivamente o choro foi eliminado como um instrumento de tristeza e transformado num símbolo maior de alegria. 

O Grêmio é também conhecido como "o imortal tricolor". Esse imortal, constantemente prova a fé dos gremistas e, quando tudo parece estar perdido, esta força imortal aparece. Em momentos em que a fé gremista parece fraquejar é que vem uma força não se sabe de onde e, tudo recomeça. Exemplo maior disso foi "a Batalha dos Aflitos". Os anjos que vieram do infinito, onde certamente mora essa força do imortal, trazendo a tesoura para o corte da fita inaugural, foi sensacional.

O espetáculo foi grandioso. Não faltou nada. Artistas da cultura regional ainda não sertanejada, sendo valorizada, ex atletas, eternos ídolos, desfilando e Lupicínio sempre consagrado e reconsagrado. Não é qualquer time que tem um hino composto por um gremista como Lupicínio Rodrigues. É o mais popular dos hinos de times de futebol. "Até a pé nós iremos". Mas o que mais me alegra é ver crianças com os uniformes do Grêmio. Não tive uma educação jesuíta, mas com eles aprendi, que se você quiser ter resultados por um longo tempo, invista nas crianças. Gosto de dar de presente camisetas do Grêmio para crianças, mesmo porque, ao optarem por serem gremistas, terão enormes alegrias ao longo de suas vidas.

Sim, uma última coisa. Esta verdade é só minha, mas mesmo assim eu acredito que ela seja uma verdade absoluta e universal. É sabido que Niemeyer não tem nenhum grande projeto para estádios. Mas ele tinha, em sua mente projetado o novo estádio para o Grêmio. Só não o fez, porque o estádio tinha que obedecer os padrões da FIFA., e isso limitaria a sua força criativa. Se não fosse isso, Niemeyer também teria deixado a marca de sua beleza na concepção de um estádio de futebol.

Quanto ao jogo, foi relembrar 1983. Lembro perfeitamente daquela madrugada maravilhosa. Acho que aquela forma esquisita como o André Lima comemorou o primeiro gol da história da Arena Grêmio foi só para lembrar que no Rio Grande do Sul também existe um outro time de futebol.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

TRIBUTO A NIEMEYER

Sempre aprendi que adjetivos são desnecessários e que por isso devem ser evitados. E são desnecessários, exatamente, por não serem substantivos. No entanto, o que se vê com relação a Niemeyer, parece que eles faltam no mundo inteiro, para bem qualificá-lo.
A autobiografia de Niemeyer. Memórias.

Creio que um dos primeiros momentos de real grandeza profissional em Niemeyer ocorreu com as obras da Pampulha, em Belo Horizonte. Também foi ali que se deu o encontro e a parceria com Juscelino Kubitschek, que mais tarde o levaria para a construção de Brasília. Da construção da Pampulha me lembro de duas coisas muito interessantes, contadas na biografia de JK - JK o artista do impossível, de Cláudio Bojunga.

A Pampulha é todo um bairro novo, construído em Belo Horizonte, quando dela J. K. era prefeito, nos anos quarenta. As obras do arquiteto nesse complexo são quatro: o Iate Clube, o Cassino, a Casa de Baile e a Capela de São Francisco. As duas coisas que eu gostaria de destacar, a partir da lembrança de Bojunga é, em primeiro lugar, a sua obsessão com a alegria e a diversão. Disso nasceu a Casa de Baile, um local para o lazer dos trabalhadores. A segunda questão é relativa a belíssima capela de São Francisco, a conhecida igreja da Pampulha. Ela ficou anos esperando por uma missa, uma vez que o bispo se recusava a rezar missa, numa obra concebida por um comunista. Coisas do tempo.

Em Brasília Niemeyer possivelmente tenha tido as suas maiores alegrias e glórias e, contraditoriamente, também os seus maiores contratempos e dissabores. Uma crítica constante que lhe é feita diz respeito ao monumento em homenagem a JK., em seu memorial. Muitos vêem nele a foice e o martelo, símbolos de trabalho de uma época e símbolo maior do comunismo. Mas os problemas maiores ocorreriam com a construção do aeroporto. Já estávamos em períodos de intransigência. Vivíamos a ditadura militar. Foi acusado até de ter plagiado a obra de um de seus inspiradores, Le Corbusier. "Lugar de arquiteto comunista é em Moscou", lhe diziam os militares.

Os atritos com a ditadura o afastaram da Universidade de Brasília, junto com outros duzentos professores, e também de Brasília. Paris ficou muito honrada em receber tão ilustre exilado. Já a cidade do México recebeu o seu original projeto de aeroporto. O maior inimigo da truculenta ditadura militar, sem dúvida, foi sempre a ousadia da inteligência.

Não vou aqui me deter na vasta biografia do arquiteto. Para isso existe o seu livro de memórias - Curvas do Tempo (Ed. Revan. R$ 52,00).

Tive o prazer de assistir a uma palestra de Niemeyer na Universidade Positivo. Ele falava com a habilidade de suas mãos, isso é, ele não falava sem desenhar. lembro bem do engenheiro que o acompanhava. Ele desenha, dizia ele, e nós temos que nos virar. Que desafio não deveria ser trabalhar com ele. Lembro também de sua figura humana maravilhosa, que transpirava bondade.

Parece que as curvas o perturbavam. As curvas lhe inspiravam a beleza. As curvas das montanhas e as curvas dos belos corpos das meninas de Copacabana o levaram para o desenho de sua arquitetura e para a consagração mundial. Espalhou belas curvas que deixaram marcas no mundo inteiro. E nos deixa também as curvas de suas memórias, para nos fazer bem.

Termino citando duas obras suas aqui em Curitiba. Uma - o popular Museu do Olho - que representa toda a beleza de sua obra e, a outra - o Monumento ao Sem Terra - morto pela repressão policial, na BR 277 entre Curitiba e Campo Largo e que representa toda a beleza do seu pensamento e de suas atitudes em relação à vida e à sociedade. Um monumento que perpetua o seu pensamento e as suas atitudes de vida, sempre vinculadas com a justiça e com a dignidade do ser humano, na luta pela afirmação de seus direitos.

Niemeyer quase interrompeu as intermitências da morte, para mais tempo permanecer conosco, para nos agraciar com a beleza de sua obra e com a magnitude de sua vida e ação. Obra, vida e ação sempre substantivas.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

De Novo. Paulo Freire e a Gazeta do Povo.

A Gazeta do Povo de novo voltou ao tema Paulo Freire. Na página 2, página voltada para opiniões, aparece o tema: Sínteses - O legado de Paulo Freire. A favor escreve um conhecido educador, professor da USP., que exalta o caráter de Paulo Freire como Patrono da Educação Brasileira (lei 12.612/2012) e contra escreve alguém que é apresentado como jornalista e mestre em sociologia. Reduz o legado do educador a uma autoajuda marxista.
O primeiro grande livro de Paulo Freire. Vejam a beleza do título.

Desconheço as razões pelas quais a Gazeta do Povo levanta este debate. Simplesmente apresenta o tema, como o legado de Paulo Freire. Jornalisticamente, no entanto, desta vez  está tudo correto. Há espaço para o a favor e para o contra. Não como da outra vez, em que um de seus colunistas o destratou, sem o espaço para o contraditório. A indignação me levou ao cancelamento da assinatura do jornal. Mas ainda o continuo recebendo. Vou dar uma conferida para ver o que está acontecendo.

Não vou entrar no mérito do texto a favor, mas não consigo calar diante do que foi dito pelo jornalista, naquilo que ele julga ser uma autoajuda marxista. Não conhecia a existência de uma autoajuda marxista, pois, pelo que eu sei, é bem mais cômodo não ser marxista. Sê-lo, sempre foi motivo de muita incompreensão e sofrimento. Que a história de torturas o diga.

Confesso que muito poucas vezes ouço falar mal de Paulo Freire depois da redemocratização do Brasil. Eu imaginava que o anátema a ele e a sua doutrina tinha acabado junto com a ditadura militar. Mas a percepção que eu tenho hoje, é a de que, quanto mais as pessoas falam mal do educador, mais me dá a impressão de que essas pessoas não conhecem Paulo Freire, não lêem Paulo Freire.

Dizer que Pedagogia do Oprimido é menos um tratado que um panfleto, me dá a impressão de que leram Paulo Freire por uma cartilha, ou por um panfleto bem vagabundo, produzida por certos intelectuais ou escolas orgânicas, ligadas a teorias de perpetuação da opressão. Me parece que essas pessoas conseguem ler Paulo Freire ao contrário, pelo oposto do que ele realmente é.

Paulo Freire, se fosse panfletário não teria escrito Pedagogia do Oprimido com mais de duzentas páginas e com tantas citações de teóricos que o fundamentaram. Enumero alguns desses autores: São Gregório de Nissa, em seu sermão contra os usurários, Erich Fromm e Herbert Marcuse, entre os frankfurtianos, Sartre, Simone de Beauvoir, Karl Jaspers, Edmund Husserl, Wright Mills, Reinold Niebhur e os brasileiros Álvaro Vieira Pinto e José Luís Fiori. São citados também Marx, Engels, Lênin e também existem referências ao Chê, a Fidel e a Mao, enquanto lutaram contra sistemas opressores. O livro é em defesa dos oprimidos e jamais um elogio aos opressores.

Não foram Marx e Engels que inventaram a opressão e a lutas de classes. Eles apenas constataram a sua existência. Não me parece que Paulo Freire fosse tão pouco inteligente, que se fosse elaborar panfletos, os faria tão longos e tão recheados de teoria, inclusive, de difícil metabolização, como dá para perceber.

É sabido também que, misturar a teoria de um autor com procedimentos de sua vida particular não é um bom procedimento acadêmico. O Rousseau que entregou os seus filhos a orfanatos foi sepultado junto com o seu corpo, mas o teórico e Patrono da Revolução Francesa não morreu e muito menos o Rousseau do Discurso sobre as ciências e as artes, do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e o Rousseau do Contrato Social e do Emílio.

Rousseau pôs a roda da história a rodar. E uma das dimensões da história é a perspectiva de futuro. Paulo Freire fala muito da tridimensionalidade do tempo e não de sua unidimensionalidade, em que o futuro seria apenas um prolongar do tempo presente. Ninguém conseguirá deter as transformações e a história. O futuro e as suas utopias sempre brotarão qual água nova.

Além de não ser um bom procedimento acadêmico, creio que também esconde muita maldade. Julgar um teórico pelo seu comportamento é uma atitude de moralistas. Creio não ser necessário citar aqui, Nelson Rodrigues sobre os moralistas. Certa vez ouvi alguém desmerecer as teorias marxistas, por ele ter tido relações sexuais com a sua empregada. Posso assegurar a todos, que se Marx teve esta relação, isso em nada emporralhou a sua teoria.

Ser comparado a Rousseau no plano teórico só pode ser considerado um elogio a essa pessoa. É cobri-la de méritos. Se é para comparar Rousseau a Paulo Freire no combate às injustiças do seu tempo, creio que a comparação é muito feliz.

Mas o auge da não compreensão de Paulo Freire está relacionada aos temas geradores. Com Paulo Freire aprendi que pelo local, pelo regional se chega ao universal. Conheço uma pessoa com uns trinta anos de idade e que sofre muito com a falta de leitura. Não é propriamente um analfabeto. Creio que agora sim, ele irá aprender a ler. Sabem adivinhar a causa disso? É muito fácil. Ele quer ler as mensagens que ele recebe de suas namoradas pelo celular.

É a isso que se chama de foco de interesse e é esse foco de interesses que produz as chamadas palavras geradoras. Arriscaria algumas dessas palavras para o caso das mensagens no celular:  meu amor, meu bem, te espero, vamos nos encontrar, você é maravilhosa, entre outras. Agora pasmem! Se ele efetivamente se letrar, ele ficará imobilizado por essas palavras, ou essas palavras serão uma ponte que o lançará a um outro mundo.

No caso de Machado de Assis, todos podem ter a certeza de que ele tartamudeou muito sobre o morro, sobre o seu bairro, sobre a sua cidade. Esse foi o seu mundo local, o seu mundo regional. E pelo domínio desse seu mundo ele alcançou o universal. Paulo Freire fala muito de limites e os apresenta como uma qualidade, pois só pela percepção de nossos limites alcançamos a superação e a transcendência. A doutrina de Paulo Freire não tem pontos estanques, imobilizações. Ela é puro movimento, ela é ascensão, ela é transcendência.

Outra coisa comum aos atuais detratores de Paulo Freire é considerá-lo como a causa dos males da educação brasileira. O educador esmiuça a fundo a história desta nossa educação e lhe busca as raízes de sua má qualidade. Esta educação sofreu uma passagem de boa para má. Quando ela era para poucos, apenas para uma elite ela era de ótima qualidade. Quando é que ela se transformou? Quando ela foi aberta para as camadas populares. Aí se descuidou da sua estrutura, se descuidou da formação de professores, dados qualitativos foram substituídos por dados quantitativos e assim por diante. A má qualidade da educação brasileira jamais poderá ser atribuída a uma única pessoa, por mais má que ela seja e, isso não vem a ser o caso de Paulo Freire. É muito reducionismo. Existem causas estruturais e conjunturais.

Recorro ao humor para concluir. Ao barão de Itararé. Dizia ele que aspirava um mundo em que os conceitos de bem e de mal fossem substituídos pelos conceitos de ignorância e conhecimento. Recorro ainda a uma nova companhia, que encontrei essa semana. Valter Hugo Mãe. Li o seu O Filho de Mil Homens. Nesse livro as pessoas sozinhas são apresentadas como pessoas pela metade. Quando se encontram, as pessoas passam a ser inteiras e quando buscam ainda mais encontros elas se expandem, elas dobram. Vejam bem, elas dobram. Não está escrito que elas se dobram. A riqueza do mundo está no mundo das relações. As relações são a beleza da descoberta dos outros, em relações de igualdade e jamais de opressão. Do contrário, nos fala o escritor, as pessoas caem para dentro.

A pedagogia de Paulo Freire é um grito de libertação, de autonomia e de transcendência. O legado de Paulo Freire sempre será esse e dele só poderemos abrir mão no dia em que não houver mais, nem oprimidos, nem opressores. E isso é um legado de difícil aprendizado. Invoco a todas as forças superiores para que sejamos tocados por esta alta ajuda.

   

O Filho de Mil Homens. - Valter Hugo Mãe.

Sabes, pai, gosto de pensar que nunca mais vou ficar sozinho e que alguém há de ficar comigo para sempre sem me abandonar.

O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mais de mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãs uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa em pessoa, que nunca estaremos sós (pág.188).
Ficha do livro: Valter Hugo Mãe. O Filho de Mil Homens. São Paulo: Cosac Naify. 2012. R$ 39,00.

Creio que esses dois parágrafos representam o ápice e a explicação para o título do romance do escritor angolano, radicado em Portugal, desde a sua infância. O nome do livro é O filho de mil homens. Recebeu de José Saramago o elogio de que com ele estamos a "assistir a um novo parto da língua portuguesa". Em 2007 recebeu o Prêmio Literário José Saramago e neste ano de 2012 o Portugal Telecom com o livro A Máquina de fazer espanhóis. Antes de romancista fora poeta. É também artista plástico e vocalista de banda de rock.

O seu nome original é Valter Hugo Lemos mas trocou o Lemos por Mãe, para lembrar, na figura da mãe, o amor incondicional. É formado em direito e pós graduado em língua portuguesa. Nasceu em 1971, estando portanto, com 41 anos, a mesma idade de Crisóstomo, o personagem principal do seu O filho de mil homens. O livro é um tributo à vida, em que nas suas diferentes passagens, sempre melhoramos. O filho de mil homens é o tributo a todos os que nos precederam

O livro se constitui numa hábil história de pessoas que não se encontraram na vida. O desencontro com a vida é representado pela solidão, pela infelicidade. São pessoas pela metade, que buscam se completar com o encontro com o outro. A dificuldade de encontrar esse outro reside nos inúmeros preconceitos, com os quais convivemos em sociedade. As pessoas pela metade, ou as pessoas sozinhas vão, no entanto, encontrando os outros, se completando e  ainda mais, transcendendo e assim encontrando a felicidade. O ápice desses encontros se dá no capítulo XV - O Crisóstomo amava por grandeza.

Mas vamos aos personagens centrais. Crisóstomo é um pescador que encontrou e identificou a sua solidão ao perceber que não tem um filho. Se sentia pela metade. Queria se sentir inteiro, ao ter um filho e ainda queria dobrar, se arranjasse uma mulher. O filho ele encontra em Camilo, um menino abandonado, filho de uma anã e que nascera, não fruto do amor, mas da solidão e da pouca resistência. Crisóstomo encontra Camilo quando ele tem 14 anos e representou uma festa para dentro de ambos.

A mulher é encontrada em Isaura, que buscara a liberdade no casamento e no que tinha entre as pernas, mas o moço nada sentia por ela. Era exclusivamente por ele. Isaura se tornou infeliz e rejeitada por pai e mãe por não ter encontrado casamento. Por ser infeliz era uma mulher que diminuía, que caía para dentro de si. Para remediar a sua situação casa-se com Antonino, um maricas, filho de Matilde. Antonino e Matilde são infelizes. Sofrem com os preconceitos. Ele por ser maricas e ela por não ter sabido educar o filho. O casamento é só fachada, consentida até pelo padre. Até Crisóstomo educa o filho Camilo no ódio ao Maricas.

Crisóstomo gosta de Isaura mas não gosta da presença de Antonino. A história vai se encompridando com novos personagens. Matilde tem em Rosinha uma espécie de ajudante, que por sua vez tem uma filha, Emília ou Miminha. Rosinha casa com o velho Gemúndio que quer companhia, mas muito interesseira, Rosinha morre no dia do casamento. Resultado: Matilde cuida de Gemúndio e também de Miminha.

Após encontros e desencontros, de destilar preconceitos e acima de tudo de superar preconceitos, Crisóstomo faz de sua casa um palácio e resolvem misturar as famílias num grande banquete e celebrar a felicidade, a felicidade de não ficarem sozinhos e de cada um assumir a sua condição. Naquele instante, nenhum dos convidados quereria ser outra pessoa. O Crisóstomo pensava nisso, em como acontece a qualquer um, num certo instante, não querer trocar de lugar com rei ou rainha nenhum de reino nenhum do planeta (pág. 169).

De aperitivo mais uma descrição mostrando a felicidade das pessas pelo encontro: Assim se fizera da casa de Crisóstomo um palácio. E, sorrateiramente, no coração do reticente Camilo também um lustre se ia pendurando e acendendo. Ao deitar-se, naquela noite, pensou que a família era um organismo todo complexo e variado. Era feita de tudo. Se era feita de tudo, o Antonino não seria coisa nenhuma de tão rara ou disparatada, seria antes o Antonino, a fazer a parte do Antonino no coletivo. Pensou que a ideia da Isaura de verem a casa como um palácio era de uma beleza humana que se impunha sobre a matéria, como uma ideia para cura de colesterol e melhoria de tetos. Se assim fossem todas as ideias, seriam todas as pessoas como príncipes e reis e viveriam agigantados pelas emoções. As emoções dão tamanhos. Porque, se intensificadas, passam as pessoas nos caminhos mais estreitos como se alassem de plumas e perfumes e pasmassem com elas até as pedras do chão (pag. 172-3).

Com a leitura de um livro desses dá até para acreditar numa das ideias do livro, que está enunciada na frase acima, de que a leitura cura o colesterol e de que os médicos deveriam pedir de seus pacientes, além dos exames clínicos, cobrança de leituras para que assim melhorassem a sua saúde.

sábado, 1 de dezembro de 2012

1900 - Novecento - Bernardo Bertolucci.

O melhor filme político que eu já tinha assistido foi, sem dúvida nenhuma,  Queimada, um filme de Gillo Pontecorvo, com uma atuação, é até desnecessário dizer, extraordinária de Marlon Brando. Queimada é uma ilha, um pouco da história de Cuba e do Brasil. Marca a passagem entre o colonialismo e o regime de escravidão, de portugueses e espanhóis para o imperialismo britânico e o dito "trabalho livre". O filme data do ano de 1969.

Sempre ouvi falar muito de 1900, mas nunca tive oportunidade de assisti-lo. Agora compreendi até a causa disso. O filme foi concebido para ser o maior épico de todos os tempos, com oito horas de duração. Foi bem recebido na Itália e não tão bem nos Estados Unidos. O seu formato, não formal - oito horas - em muito contribuiu para isso. No Brasil, a mesma coisa. Ele foi, inclusive, separado em duas partes e passado separadamente nos cinemas. No Brasil o filme sofreu ainda os cortes impostos pela censura do regime militar. O filme é uma produção do ano de 1976.

O que pode acontecer quando se juntam pessoas como Bernardo Bertolucci (direção), Ennio Morricone (música) e Vittorio Storaro (fotografia) com atores do tamanho de Gérard Depardieu, Robert de Niro e Burt Lancaster? Uma obra prima, naturalmente. O maior épico de todos os tempos, como o classificou o New York Times. Em DVD, o filme ganhou a sua versão mais ou menos definitiva, com a duração de 314 minutos, em torno de cinco horas, que passam quase imperceptíveis. Agora passo a ter dois filmes políticos preferidos.
O filme 1900 de Bernardo Bertolucci, com Robert De Niro e Gérard Depardieu, nos paéis principais.

Muitos estudiosos se ocuparam com o tema das causas da ascensão do fascismo e do nazismo, ou das raízes da possibilidade da  ascensão dos regimes autoritários em geral. Não cabe aqui a análise disso, embora seja sempre um tema muito tentador. Bertolucci tentou fazer isso com este filme. E aponta para as causas com uma clareza, ao menos para ele, mais do que evidentes. Os patrões semearam os fascistas diz Olmo, sem fazer qualquer rodeio ou concessão.

O filme inicia no dia 25 de abril de 1945, o dia da libertação, o fim da Segunda Guerra Mundial, o dia da vitória sobre o regime fascista. A partir daí faz uma retrospectiva histórica do que foram os primeiros cinquenta anos do século XX.  Retrocede ao 27 de janeiro de 1901, data da morte de Giuseppe Verdi e do nascimento de Dalco Olmo e de Alfredo Berlinghieri. Alfredo é filho de latifundiários e Olmo de camponeses. Meu filho será advogado, diz o pai de Alfredo, para em seguida perguntar ao pai de Olmo, sobre o futuro de seu filho. O pai secamente responde: "o meu filho será um ladrão". Um corcunda que os acompanha se rejubila: "Oba! ao menos não vai ser padre".

Estão aí colocadas as grandes perspectivas do filme. Alfredo nasce para ser patrão, enquanto que Olmo nasce para ser camponês, para ser operário. Quanto ao clero, aulas de conformação ao sistema! Alfredo e Olmo crescem como amigos mas a sua condição social os afasta com o passar do tempo e na medida exata em que Alfredo se torna patrão, ocupando funções de poder exigidos pela sua condição de herdeiro. Olmo por sua vez se transforma em líder revolucionário por sua condição de camponês. Um papel maravilhoso (do ponto de vista da compreensão histórica) é exercido pelo casal Áttila e Regina. Áttila é o feitor de Alfredo e faz parte da herança recebida. É patrão sem ser patrão. Age na defesa dos interesses do patrão e passa a ser muito pior do que o próprio patrão. Comportamento de classe média,diríamos hoje.

Alfredo se casa com Ada, uma figura que age como uma espécie de consciência de Alfredo e que irá perturbá-lo dialeticamente na sua relação de amizade com Olmo e com o poder. Na exata medida em que Alfredo se torna patrão, o casamento começa a declinar, até terminar em completa ruína. A oposição entre Olmo e Alfredo também cresce na media em que o regime fascista faz os seus avanços.

Poucas vezes na história do cinema um diretor assume uma postura ideológica tão clara como neste filme. Alfredo encarna o patrão, o herdeiro, e o latifúndio e em consequência a opressão, a injustiça, a arrogância e a prepotência. É a encarnação do mal e o campo fértil em que será plantada a semente do fascismo,que será diligentemente regada por Attila, o fiel cão de guarda da nova ordem. Enquanto isso Olmo encarna a luta contra a opressão e a busca da liberdade com a prática dos princípios do socialismo.é a encarnação do bem. O partido é mostrado como o grande instrumento da esperança para a conquista do bem.

O filme, obedecendo ao que foi traçado pela história, volta ao dia da vitória e mostra o triunfo sobre as forças do fascismo e termina num grande tribunal popular, que irá executar Attila na praça do cemitério, no qual estão enterradas muitas de suas vítimas. Quanto a Alfredo, ele encerra as contradições de sua vida com a solução de um suicídio nas linhas do trem.

Falar da música de Morriconi é absolutamente desnecessário. O cinema já o consagrou, como também a Storaro. Mas devo dizer, que a fotografia é simplesmente linda. Os camponeses no belo cenário da região da Emília formam um espetáculo à parte.

Não é fácil localizar esse filme. O consegui pelo Mercado Livre.