domingo, 2 de fevereiro de 2020

A Nova Ordem. Bernardo Kucinski.

Este livro eu li por causa de seu autor. Estou falando de A Nova ordem, de bernardo Kucinski. Conheci o autor por um texto seu, nos Cadernos Diplô do Le Monde Diplomatique, especiais para o Fórum Social de 2002, realizado na cidade de Porto Alegre. Nesse Cadernos ele comparece com um texto com o título "Do discurso da ditadura à ditadura do discurso", em que apresenta dez paradoxos do jornalismo brasileiro. Um texto brilhante, do qual dou uma especie de síntese/epígrafe:

"No Brasil, a mídia adotou como cartilha o pensamento neoliberal, enterrou a pluralidade e o debate de ideias. Mas a era da adesão irrestrita é também a da grande crise econômica do setor". Esses dez paradoxos também podem ser encontrados em livro seu, Jornalismo na era virtual. Ensaios sobre o colapso da razão crítica. Usei  muito este texto no curso de jornalismo da Universidade Positivo. Na revista eu tenho uma anotação extremamente interessante, uma frase que, segundo eu li, foi encontrada no sindicato dos jornalistas de Buenos Aires. Diz: "A ditadura não me deixava escrever o que penso. O pensamento único não me deixa pensar o que escrevo". Também escrevi um post para o meu blog. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/02/do-discurso-da-ditadura-ditadura-do.html
O belo e triste livro de Bernardo Kucinski. A Nova ordem. Pela alameda.


Agora, não me lembro exatamente onde, eu li sobre este seu livro. Comprei e li. Na contracapa dele lemos: " Ariovaldo quer chegar a um método que assegure, com a mais absoluta certeza, que o preso falou tudo o que sabe, seja qual for sua estrutura mental e psíquica. Um método científico que extraia da memória do preso todas as informações ali armazenadas para a prática da subversão e da contestação da Nova Ordem, sem depender da vontade ou da determinação do próprio preso".

Creio que essa frase nos dá a ideia e o personagem central do romance ou novela. A Nova Ordem instaurada queria o controle absoluto dos utopistas, ou dos que se opunham ao estabelecimento da Nova Ordem. Isso seria feito por métodos científicos, por estudos do médico militar, rapidamente promovido a coronel, o Dr. Ariovaldo. A orelha do livro nos dá outros detalhes interessantes sobre o livro.

"Assim como na sua obra maior K, B. Kucinski poderia iniciar A Nova Ordem repetindo 'tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu" ou "está acontecendo". A narrativa aterradora e envolvente sobre a "nova ordem" no Brasil da ficção nos lembra aquilo que Hannah Arendt nomeou de "banalidade do mal", referindo-se aos criminosos nazistas e a seus crimes. A insanidade e o grau de desumanização daqueles que comandam a "nova ordem" é de tal magnitude que a sociedade anestesiada não consegue acreditar no que vê e, da mesma forma, não sabe como reagir. O inimigo principal são os "utopistas" e todos os portadores de pensamento crítico.

Como o tamanho do "mercado" interno necessário é de 30 milhões de famílias, há de se reduzir o "excesso populacional". Não interessa se constituem um grupo humano de 90 milhões de pessoas. Busca-se então, a forma mais eficiente de livrar-se deles ao menor custo e no prazo mais curto. Os principais personagens da narrativa são figuras patéticas. Dois são especialmente representativos da "nova ordem": o capitão médico psiquiatra Ariovaldo, que conquista fama internacional por suas descobertas e práticas de controle humano através de chip obrigatoriamente instalado nos cérebros da população, e o ex-engenheiro Angelino, tornado catador de rua, que tem flashes de lucidez diante da monstruosidade vigente. Ao que parece a "nova ordem" entra em colapso por suas próprias loucuras. Em algum momento constata-se que as pessoas haviam deixado de sonhar. E, sem sonho, não há como sobreviver. Nem mesmo na "nova ordem". A leitura muito me lembrou de Adorno e a sua terrível exortação Educação após Auschwitz e a pergunta que não quer calar: Quem serão as próximas vítimas?

O livro é uma paródia do Brasil, após o golpe de 2016, quando se instaurou a "nova ordem", embora isso não esteja dito explicitamente. O livro tem 21 capítulos que descrevem este Brasil. A "nova ordem" vai se implantando por uma série de Editos da "Nova Ordem", doze no total, Por eles se extinguem as universidade públicas, se fecham os órgãos de pesquisa e de proteção ambiental, até a extinção do próprio SUS. Em suma, tudo o que Bolsonaro e seus asseclas governadores gostariam de fazer e ainda, vejam bem, ainda não fizeram.

Gostaria de registrar alguns destaques: O primeiro vai para o capítulo XIX, em que o militar Humberto é condenado, sem haver causa para isso. Ele reexamina toda a sua vida e considera que nada de errado fizera e se suicida. Com todos os horrores cometidos, ele não conseguiu enxergar erros. O mal tornara-se banal. Por não enxergar essa banalidade, aplaude a "nova ordem" e liquida sua própria vida em vez de se opor a ela. E, por óbvio, em segundo lugar apontar para o pesquisador da padronização ou customização do comportamento humano, Ariovaldo, o Freud da "nova ordem". De Angelino, o engenheiro catador destaco uma frase significativa: "Pelo lixo se mede a miséria de um povo". Já não havia nele, nada de valor.

Deixo com vocês o capítulo XXII, que serve de epílogo. Ele é significativo: "Apesar de suas descobertas e invenções espetaculares, e do sucesso do programa de customização de humanos, que alcançou fama mundial, Ariovaldo jamais conseguiu capturar um fragmento que fosse do conteúdo manifesto de um sonho. Começaram a lhe faltar cobaias. Presos subversivos, já não havia; a sublevação utopística fora há muito dizimada. E com o encerramento do programa de ajuste populacional cessaram os comboios de retirantes. Ariovaldo ainda tentou capturar os sonhos de pessoas presas por descuidos no trânsito, ou internadas devido a acidentes no trabalho. Foi quando se deu conta de que ao suprimir desejos e paixões, as forças impulsionadoras dos sonhos, o chip de customização havia suprimido os próprios sonhos. Na Nova Ordem, as pessoas tinham deixado de sonhar.

Dizem que foi esse o motivo da crise depressiva de Ariovaldo e da internação no pavilhão psiquiátrico do Hospital Central do Exército, no Rio de Janeiro, onde se encontra até hoje, sofrendo alucinações seguidas de surtos de hiperatividade. Nesses surtos escreve freneticamente horas e horas, às vezes até dez horas seguidas. Não se sabe o que escreve. Nunca deixou que seus escritos fossem lidos. O rumor mais persistente é o de que se auto-injeta com doses cavalares de melatonina que o fazem dormir profundamente e, assim que desperta, põe-se a escrever o que sonhou".

Termino por afirmar que a crítica, o humor e a ironia mantém viva a alma de uma nação. Este livro é essa alma.

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