quarta-feira, 17 de abril de 2024

O tempo e o vento (parte III). O arquipélago vol. 3. Érico Veríssimo.

Mais uma vez inicio um post com o escrito na contracapa do livro. Trata-se agora, do terceiro volume de O arquipélago, ou do sétimo e último dos volumes de toda a obra de O tempo e o vento: "A trilogia O tempo e o vento chega ao fim. Os caudilhos gaúchos se rebelam, tomam a capital federal e inauguram uma nova era política no Brasil.

O tempo e o vento (parte III). O arquipélago (vol. 3). Companhia das Letras.

Na cidade fictícia de Santa Fé, a família Terra Cambará é abalada por novos conflitos. Toríbio rompe com o irmão e vai ao encontro de seu inapelável destino. Nessa atmosfera tumultuada, Sílvia, a amada do escritor Floriano, revela seu mundo num diário surpreendente, impregnado pela época sombria da Segunda Guerra Mundial. Tudo converge para uma encruzilhada de tempos e memórias: Rodrigo Cambará tem um acerto de contas definitivo com o filho, Floriano, que começa a escrever o grande romance de sua vida".

O tempo histórico retratado é o da Revolução de 1930, a que levou Getúlio Vargas ao poder. Continua com a Revolução Constitucionalista de 1932, que terá um soldado Cambará em suas fileiras - o Toríbio, mesmo contra Rodrigo, o seu irmão e figura em ascensão dentro do getulismo. A discórdia na família será total e a ruptura definitiva ocorrerá com a decretação da ditadura Vargas pelo "Estado Novo", ao qual Rodrigo irá aderir. A parte histórica terá continuidade até 1945, com destaque para a política internacional, com uma análise da Segunda Guerra Mundial. 

Os grandes personagens deste último volume, possivelmente o mais introspectivo (creio que dá para dizer - psicanalítico), continuará com Rodrigo sendo o protagonista, secundado, de perto pelo filho Floriano, o aprendiz de escritor e que agora já tem traçado todo o plano para o seu grande livro. Outros personagens estão em ascensão, com destaque para Sílvia, esposa de Jango, o fazendeiro, com o seu amor dividido entre o marido (o sexo) e os sentimentos e afetos voltados para Floriano. Que drama! São ainda personagens, os outros filhos de Rodrigo: o comunista Eduardo e a fútil Bibi e o marido Sandoval, além dos personagens tradicionais do Sobrado, entre eles Terêncio Prates, o sociólogo conservador formado pela Sorbonne, às voltas com a interpretação do Rio Grande do Sul e Stein o ardoroso defensor do comunismo, porém, na sua vertente trotskista. Por essa razão lhe estará reservado um final trágico. E ainda, o irmão Zeca, um filho de Toríbio, um religioso marista. Estes personagens interpretarão os fatos históricos, de acordo com as suas visões de mundo. Uma riqueza extraordinária nos diálogos estabelecidos.

Os títulos do livro são os seguintes: 1. O cavalo e o obelisco; 2. Reunião em família V; 3. Caderno de pauta simples; 4. Noite de Ano-Bom; 5. Reunião de família VI; 6. Caderno de pauta simples; 7. Do diário de Sílvia; 8. Encruzilhada.

O grande tema do primeiro tópico será a Revolução de 1930, que mais uma vez levantou o Rio Grande em rebelião, junto com outros estados aliados. Desta vez serão vitoriosos. Entre os vitoriosos estará Rodrigo Cambará, que segue junto com Vargas, no mesmo trem, para o Rio de Janeiro. Amarrarão os seus cavalos no Obelisco. Mudanças profundas no Brasil e também na família Cambará. Rodrigo se transformará num personagem urbano, adotando as  suas formas de comportamento. Segundo Rodrigo, a finalidade do Estado Novo era a de garantir a melhoria de vida do povo brasileiro e a busca de uma autonomia econômica. Justificava assim a sua adesão.

Na reunião de família V - Rodrigo, Floriano e Terêncio Prates, o sociólogo conservador, discutirão os temas do momento, ou seja, os do fim dos anos trinta e os primeiros da década de 1940. Floriano dará uma aula extraordinária sobre a evolução política do Rio Grandes do Sul (Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e o positivismo) e os conflitos entre chimangos e maragatos. Me parece não ser um erro afirmar que o espírito maragato sempre esteve presente na história do Rio Grande e nunca conseguiu ser abafado pelo situacionismo chimango positivista. A ascensão dos regimes autoritários na Europa terão acaloradas discussões e as simpatias de Terêncio. No Brasil o destaque irá para a Revolução Constitucionalista de 1932, para a qual Toríbio se bandeou; para a Constituição de 1934; para as tentativas autoritárias de comunistas e integralistas e a decretação do Estado Novo, em 1937.

Em itálico, no terceiro tópico, Floriano tece as linhas mestras para o seu grande romance. Para tal recorrerá a Maria Valéria e a memória dos Terra. Ana Terra, Bibiana, Luzia, a teiniaguá e mãe de Licurgo. Além disso serão rememoradas as conversas com o tio Bicho, e ainda serão buscados recortes de jornal da época assim como serão ouvidas outras vozes para a reconstituição desse período. O grande romance de Floriano já tem a sua elaboração mental.

A noite de Ano-Bom, o quarto tópico, na realidade não foi uma noite tão boa. O fato da noite foi o anúncio do contrato de casamento entre Sílvia e Jango, um casamento que por suas incompatibilidades jamais poderia dar certo. Também há a perturbadora presença de Floriano nessa relação. Na festa também será lembradas a ida de Stein para combater na Guerra Civil espanhola. Mas o destaque mesmo serão os debates em torno do Estado Novo. Toríbio não aguenta os discursos em seu louvor e se retirará bruscamente do Sobrado, arrastando consigo o jovem Floriano. O final da noite será marcado por uma terrível tragédia na família Cambará. A tragédia ocorrerá num baile de chinas, no Buraco do Libório.

A próxima reunião de família, a de número seis, será marcada pelos debates entre Rodrigo, Floriano, Tio Bicho e Terêncio Prates, o sociólogo da Sorbonne. O tema será o livro de Terêncio - Tradição e hierarquia -, em que o autor defende a sua visão da formação histórica do Rio Grande e a "natural" distribuição de suas terras. A reforma agrária será o grande tema, nesse momento do debate. Trata-se de um rico capítulo sobre a formação histórica do Rio Grande. Ainda há a evocação da lembrança da expulsão de Stein do Partido Comunista.

No caderno de pauta simples Floriano incorpora às suas reflexões a experiência vivida nos Estados Unidos. Belíssimas análises sobre a economia e a cultura calvinista desenvolvida naquele país, bem como seu modo de vida, o famoso American way of life. As reflexões mais profundas, no entanto, estão voltadas para a Segunda Guerra Mundial e para os horrores das execuções nazistas nos campos de concentração. E, ao final do capítulo, uma pergunta: O que os Estados Unidos tem a oferecer ao mundo?

Possivelmente o capítulo das anotações do diário de Sílvia se constituem num dos mais importantes capítulos da literatura brasileira. Toda a obra de O tempo e o vento é marcada por encontros e desencontros entre pessoas. O capítulo sobre os escritos de Sílvia são, no entanto, marcados por encontros consigo mesma. Um capítulo sobre casamento, sonhos, desejos, anseios e frustrações que doem na alma feminina. Ah Jango! Ah Floriano! Ah as convenções! Ah, o mal-estar gerado pela cultura! Tudo escrito sob o ferrolho de sete chaves. E um único leitor possível: Floriano.

Ah, as mulheres do Érico Veríssimo. Ana Terra, Bibiana Terra, Maria Valéria, Flora Quadros. Mulheres esteio, mulheres fortes. mulheres afirmadas e estagnadas na impermeabilidade do culto às tradições. Sempre sofrem caladas! As dores da alma! Que estudo fantástico não seria este - o da visão da alma feminina em Veríssimo. Grande diário de Sílvia. E que mistura fantástica é esta - a da constituição da família Terra - Cambará e, com a incorporação de Flora, Os Quadros. E a fantástica recomendação de Rodrigo ao filho Floriano: "De vez em quando solta o Cambará". Ele, Floriano, um Terra-Cambará-Quadros.

Encruzilhada é o capítulo Final. Um capítulo de acerto de contas. Mais um capítulo profundamente psicanalítico. Stein não suportou a sua expulsão do Partido Comunista. Pior que a expulsão, a acusação de traidor. Tio Bicho lhe dará o funeral e o sepultamento. O irmão Toríbio, apesar das circunstâncias, não lhe recusará a encomendação cristã. Os personagens do Sobrado lhe farão as despedidas. O fato é escondido de Rodrigo. O ponto alto do livro e de toda a obra é o acerto de contas entre Rodrigo e Floriano. Uma reconciliação em alto estilo. Profundamente catártica, profundamente libertadora. Ao final tudo estará quitado entre eles. Rodrigo tem melhoras em seu quadro de saúde e a sua transferência para o Rio de Janeiro está sendo preparada. É a melhora da véspera. Sobra a encruzilhada da divisão da herança. Lembrem-se que nessa divisão há um comunista e um oportunista.

E o aprendiz de escritor começará a escrever a sua grande obra, a grande dívida do escritor Floriano Cambará, mais Terra-Quadros do que Cambará. É um acerto com a sua própria história, com a sua Santa Fé, com o seu Rio Grande do Sul, com o seu Brasil e com o mundo todo, na busca de um grande significado para a vida, entre tantas possibilidades.  E não esqueça: "De vez em quando solta o Cambará.

Terminei a leitura dos sete livros de O tempo e o vento em 6 de janeiro de 2006. Ainda estava em sala de aula. Terminei a fantástica aventura da releitura em 12 de abril de 2024. Foi uma longa e maravilhosa viagem. Deixo com vocês as resenhas. Aqui, como de hábito, a do livro anterior, o vol. 2. de O arquipélago.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/04/o-tempo-e-o-vento-parte-iii-o_13.html


  

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