quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Torto Arado. Itamar Vieira Junior.

Na contracapa lemos: "Um romance que retrata - com extrema habilidade narrativa - um Brasil dolorosamente encalhado no próprio passado escravista. Um texto épico e lírico, realista e mágico". O que dizer desse livro? O que sugere o seu título - Torto arado. Quem é o seu autor? Sem entregar a história, vamos provocar, instigar para a leitura. Algumas passagens:

"Sobre a terra  há de viver sempre o mais forte". Página 262. A frase final. Quem seria este mais forte?

Torto arado. Itamar Vieira Junior. Todavia. 2022.

O que é viver de morada? "Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre.  Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era tida como dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali retirávamos nosso sustento". O pai procura responder ao filho: "Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento [...]. Aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente para trabalho: 'Moço, o senhor me dá morada?.' [...] Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu. [...] O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida na nossa mesa". Páginas 185-186. Viver de morada seria então um sucedâneo para a escravidão?

Como foi resolvido o problema da escravidão após a abolição? "Meu povo seguiu rumando de um canto para outro, procurando trabalho. Buscando terra e morada. Um lugar onde pudesse plantar e colher. Onde tivesse uma tapera para chamar de casa. Os donos já não podiam ter mais escravos por causa da lei, mas precisavam deles. Então, foi assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores...". Página 204. Simples assim. Uma mera questão de semântica.

E sobre a libertação dos escravos? Do discurso de Bibiana, para o povo da Fazenda Água Negra: "... Mas que liberdade? Não podíamos construir casa de alvenaria, não podíamos botar a roça que queríamos. Levavam o que podiam do nosso trabalho. Trabalhávamos de domingo a domingo sem receber um centavo. O tempo que sobrava era para cuidar de nossas roças, porque senão não comíamos. Era homem na roça do senhor e mulher e filhos na roça de casa, nos quintais, para não morrerem de fome. Os homens foram se esgotando, morrendo de exaustão, cheios de problemas de saúde quando ficaram velhos". Página 220.

Por que Torto arado? "Você recorda seu pai arrastando o arado antigo de ferro retorcido, pesado, rasgando a terra em linhas tortas. Aqueles sulcos onde lançava a semente do milho. Aquele arado sobre o qual ninguém falava, um objeto da paisagem, que chegou muito antes dos pioneiros, que ninguém sabia de onde tinha vindo, manejado pelas mãos dos trabalhadores mais antigos, dos que vieram de muito longe e sobre os quais não havia nenhuma história...". Página 247.

Bem. Essa é a temática. Onde ela se desenvolveu. Isso também dá para contar. No interior da Bahia. Na região da Chapada Diamantina, após a febre dos diamantes. Ah Joaquim Nabuco! Não basta abolir a escravidão. Também é preciso acabar com a obra da escravidão. Mas vamos deixar isso a cargo do leitor.

Durante a leitura eu me lembrei muito de Paulo Freire, sobre a educação emancipadora. De Paulo Freire eu ouvi pessoalmente, que ele conhecia as elites do mundo inteiro, mas que nenhuma se assemelhava à brasileira em perversidade. A leitura do livro também nos dá essa percepção. Lembrei também de Lília Schwarcz e o seu belo livro Sobre o autoritarismo brasileiro. O livro de Itamar também fala desse autoritarismo, mandonismo. A diferença está na forma de narrar. No livro de Itamar, quem fala é o povo, especialmente pela voz das irmãs Bibiana e Belonísia, as personagens em torno das quais a história é contada.

Capas de Torto arado. Mundo afora. Tradução para várias línguas.

As orelhas do livro nos dão outras pistas para a sua leitura: "A cena tem algo de iniciático e, como se verá mais tarde, ressoará de maneira extraordinária no futuro de suas protagonistas. Nas profundezas do sertão baiano as irmãs Bibiana e Belonísia encontram uma velha e misteriosa faca na mala guardada sob a cama da avó. Ocorre então um acidente. E para sempre suas vidas estarão ligadas - a ponto de uma precisar da voz da outra.

Filhas de humildes trabalhadores rurais descendentes de escravos, as irmãs irão crescer entre a extenuante rotina do campo, as tradições religiosas afro-brasileiras - com suas velas, incensos e ladainhas quase imemoriais - e a absorvente vida familiar. Com o passar dos anos, a antiga proximidade entre elas vai se desfazendo aos poucos. Enquanto Belonísia parece satisfazer-se com o serviço na fazenda e os encantamentos do pai, o curandeiro de corpo e espírito Zeca Chapéu Grande, Bibiana toma consciência do estigma da servidão imposto à família e decide lutar pelo direito à terra e pela emancipação dos trabalhadores rurais.

Numa trama conduzida com maestria e com uma prosa melodiosa, tendo quase sempre as mulheres como protagonistas, Torto arado é um romance belo e comovente que conta uma história de vida e morte, de combate e redenção. Itamar Vieira Junior não se perde, contudo, em duvidosas recriações de um idioma supostamente telúrico, nem trata seus personagens com certo paternalismo, tão daninho, que já assinalou um sem-número de tentativas, na ficção, de dar voz aos despossuídos do campo.

Pois um dos grandes trunfos deste romance é a representação - com eloquência e humanidade - dos descentes de escravizados africanos para os quais a Abolição significou muito pouco, visto que ainda sobrevivem em situação análoga à escravidão. Tudo isso traz ao romance, para além de sua trama que atravessa vozes, gerações e temas (a memória familiar, o trauma, a exploração, o misticismo afro-brasileiro, os laços sociais), um poderoso elemento de insubordinação social que vibra muito tempo depois de terminada a leitura".

Na orelha da contracapa ainda sobra um pequeno espaço para apresentar o autor: "Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia, em 1979. É geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA. Publicou os livros Dias e A oração do carrasco (finalista do Prêmio Jabuti), além de outros textos ficcionais em diversas publicações nacionais e estrangeiras. Com este Torto arado, venceu os prêmios LeYa, Jabuti e Oceanos". Um fenômeno editorial. Um selo colado na capa indica que o livro já vendeu 400 mil exemplares. Também já ganhou o mundo com tradução para as mais importantes línguas.

O livro é dividido em três partes: Fio de corte; Torto arado e Rio de sangue. E uma frase em epígrafe: "A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor, trabalho, tempo". Raduan Nassar.  E..., por tanto falar em violência, como não lembrar de Os condenados da terra. 

2 comentários:

  1. As suas resenhas são sempre muito boas e vai despertando na gente o desejo de ler a obra!! Valeu professor Pedro Elói!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. A luta pela vida - na continuidade da escravidão - agora sob disfarces. Um livro que merece realmente todas as suas premiações. Agradeço a sua generosa manifestação.

      Excluir

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.