quinta-feira, 14 de julho de 2022

Um banquete no trópico. 24. Vida e morte do bandeirante. Alcântara Machado.

Este é o vigésimo quarto trabalho do presente projeto.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/03/introducao-ao-brasil-um-banquete-no.html

Trata-se da resenha de Laura de Mello e Souza, professora do Departamento de História da USP, do livro Vida e morte do bandeirante, de Alcântara Machado. A resenha encontra-se em Introdução ao Brasil - Um banquete no trópico, livro organizado por Lourenço Dantas Mota, volume II, nas páginas 123 a 142. O livro de Alcântara Machado data do ano de 1928 e é profundamente inovador, tanto pelo uso dos inventários como fonte de pesquisa, quanto pela visão crítica que apresenta. O povo simples, pelo seu cotidiano, é o protagonista da história. 

Volume II. A resenha do livro de Alcântara Machado.


Inicialmente a resenhista apresenta alguns dados biográficos do autor, que nasceu em Piracicaba, no ano de 1901. Ele é um "rebento de velhos troncos paulistas" dos aqui chegados em São Vicente no ano 1532. Formou-se em Direito, na famosa Faculdade de São Francisco e teve morte prematura, numa crise aguda de apendicite, em 1935, no Rio de Janeiro. 

A resenha da professora Laura é dividida em cinco tópicos: 1. Os inventários; 2. A vida material; 3. Instituições e práticas socioeconômicas; 4. O homem e o meio; 5. Vida e morte do bandeirante. Uma resenha didaticamente bem apresentada.

Ao final do primeiro tópico, a resenhista assim nos apresenta o livro: "O livro começa justamente pela descrição da fonte - 'laudas amarelecidas pelos anos e rendadas pelas traças' -, revelando que o historiador tinha consciência do quanto era pioneiro no seu uso. Depois, os capítulos se sucedem numa ordem lógica, que parte dos aspectos mais propriamente econômicos e materiais - fortunas, hábitat, mobílias, baixelas, roupas - para atingir os costumes, as crenças e as instituições". São quatrocentos desses documentos amarelecidos, que vieram a público nessa época, que são esmiuçados pelo pesquisador e é nisso que está a sua grande novidade. Ele apresenta as banalidades do cotidiano. Nem exaltação e nem uma visão essencialmente crítica. Esses inventários abrangem os anos de 1578 a 1700. Mostra sentimentos e sensibilidades, a valorização das pequenas coisas, medíocres aos olhares de hoje, mas extremamente consideradas na época. 

No segundo tópico, sobre a vida material, a pobreza merece o maior destaque. A situação começa a melhorar, apenas, a partir da metade do século XVII. O que efetivamente tinha valor nessa época? As miudezas caseiras, como as roupas, os móveis, as cortinas. Elas, pela dificuldade de consegui-las, valiam mais do que as terras e as casas e havia justificativas para tal: "Que vale a terra sem gente que a povoe e aproveite". Vejam a descrição de um antecessor seu, Frei Gaspar da Madre de Deus: "O que falta aos paulistas não é o chão, que aí está, baldio e imenso, à espera de quem o fecunde. Faltam-lhe, sim, a ferramenta, o vestuário, tudo quanto a colônia não produz". As adversidades tornaram essas mercadorias muito valiosas: o mar, os piratas e a subida das serras. Os sítios de roça valiam mais que os povoados. Na roça é que estavam as mostras de status e poder, onde estavam as coisas valiosas. O mundo rural era autossuficiente, constituíam um mundo em miniatura. Nos latifúndios então... "No espaço em que se faz sentir a influência do latifúndio, não há lugar nem para o comércio, nem para a indústria, elementos geradores das aglomerações humanas". Vestimentas e joias também indicavam status.

No terceiro tópico, sobre as instituições, a principal marca é a precariedade. Onde tudo está por fazer, as instituições ficavam em segundo plano, constatou o pesquisador. Não há escolas, não há mestres, não há médicos, poucos magistrados e muito poucos livros. Quando precisavam de algum serviço, recorriam aos jesuítas, aos práticos, aos curandeiros e benzedeiros e à flora indígena. Ou então, às orações mágicas. Cabia aos próprios leigos exercerem o poder judiciário. Relata os hábitos das transmissões de posses e neles mostra o inusitado dos costumes pretéritos, como o pagamento das custas por meio de produtos. Era um "tempo feliz, em que bastava um cevado para saciar a ganância de um homem do foro". As mercadorias eram as próprias moedas, na ausência dessas. A palavra tinha a força da lei. E a instituição familiar (Ah! a família). Toda a autoridade cabia ao Pater familias. Era ele que zelava pela família e pelos casamentos para evitar a miscigenação: "Por isso mesmo e porque são poucas as pessoas dessa limpeza e qualidade, os casamentos se fazem num círculo muito limitado, e as famílias andam em São Paulo tão travadas umas com as outras que abundam as uniões consanguíneas". Contudo, à margem dessa família, havia outra. A família tida como ilegítima com a prole bastarda. Toda a mestiçagem se talhava na bastardia. Sobre os filhos, em muitas ocasiões, prevalecia "o que as mães disserem". Muitos eram aceitos nos círculos familiares e outros se transformavam nos jagunços a serviço.

No quarto tópico, o homem e o meio, é abordada a mais delicada das questões, a escravidão indígena. Todas as leis contrárias a ela, na prática, perderam o seu valor e com o passar do tempo, a situação só piorava. Os paulistas acabaram criando "um estado intermediário entre a liberdade e a escravidão, que tivesse desta a substância e daquela as aparências". As situações mais dramáticas ocorreram entre os anos de 1628 a 1632, quando, sob Raposo Tavares, promoveram o cerco a Guairá. Aos índios cabia o único recurso de se refugiarem cada vez mais para o interior. Por causa do elevado custo, raros eram os escravos negros. Os paulistas não temiam nem ao rei, nem aos jesuítas e nem mesmo a temível Inquisição. Também a corrupção dos padres ganha relevância. O único temor era o da morte. Ela estava onipresente. Ela gerou muitos testamentos com doações e transmissão de bens. Todo o imaginário do bandeirante era movido a sertão. Eles estavam para o sertão como os navegadores estavam para o mar. O enriquecimento rápido promovia o desaparecimento dos temores. Os objetivos do viver se resumiam ao tráfico vermelho e à mineração. A escravidão indígena atraía até as ordens religiosas, como a dos carmelitas. O dia a dia de uma bandeira também ganha minuciosa descrição.

O livro de Alcântara Machado destoa da maioria dos livros da época que promoveram a mitologia do bandeirante, heroico, destemido, corajoso e arrojado. Alcântara Machado mostrou as dificuldades do cotidiano e o embrutecimento humano que essas dificuldades causaram.

No quinto e último tópico o teor do livro é retomado. Também a sua recepção. Um de seus méritos foi o de reconhecer que a história do paulista bandeirante se forjou nas dificuldades do cotidiano, nas suas miudezas. E, a resenhista nos conta, "sem julgar o passado - pois não compete ao historiador fazê-lo -, alertou que a pobreza da capitania poderia se transformar em categoria explicativa da sua história, e abriu caminho para o estudo dos mecanismos culturais e econômicos da expansão paulista". Hoje a visão sobre a pobreza de São Paulo ao longo dos séculos XVI e XVII tem outras explicações e, conforme vários historiadores, o seu alardeamento, tinha uma estratégia. Vejamos o final da resenha: "A alardeada ausência de alternativas econômicas justificava, por um lado, o apresamento dos índios; por outro, fundamentava o não pagamento de impostos e dívidas. Por fim, o significado que o historiador - no caso, Alcântara Machado - atribui à pobreza não é obrigatoriamente o mesmo atribuído pelos contemporâneos. O destes, aliás, pode ser mais de um, e talvez uma compreensão mais acurada da pobreza só possa surgir quando levar em conta sua provável polissemia - máscara sob a qual se ocultaram várias visões historiográficas.

O fato de ser contestado não significa que Vida e morte do bandeirante deixe de ser um marco. Significa, sim, que os que vieram depois - Sérgio Buarque de Holanda, John Manuel Monteiro - ultrapassaram-no, ou seja, passaram por ele e foram além. Nesse sentido, todo grande livro de História como Vida e morte do bandeirante, tem de ser ultrapassado um dia". Sabe, me deu uma enorme vontade de ler esse livro. Me bateu uma enorme curiosidade. Deixo ainda a resenha do trabalho anterior, inclusive sobre a mesma temática, História geral das bandeiras paulistas.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/05/um-banquete-no-tropico-23-historia.html


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