Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar um dos maiores brasileiros, o sociólogo e antropólogo Darcy Ribeiro, numa resenha de Agnaldo dos Santos (biografia) e Isa Grisnpum Ferraz (obra). O livro é uma publicação da Boitempo Editorial de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.
Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.A resenha começa por uma frase em epígrafe, uma frase do próprio Darcy, que o define muito bem: "De todas as coisas deste mundo tão variado, a única que me exalta, me afeta, me mobiliza, é o gênero humano. As gentes indígenas, com quem convivi tantos anos. As gentes que me acolheram nos meus longos anos de exílio mundo afora. Mas, principalmente, minha amada gente brasileira que é minha dor, por sua pobreza e seu atraso desnecessários. E também meu orgulho, por tudo o que pode ser como uma civilização tropical de povos morenos, feitos pela mistura de raças e pela fusão de culturas". Talvez Darcy seja o intérprete do Brasil que mais amor e empenho dedicou ao povo brasileiro.
A resenha continua com uma auto definição: "Eu sou atípico. O Partido Comunista não me quis porque me achava um militante muito agitado, e a Força Expedicionária Brasileira não me aceitou porque os médicos achavam que eu era muito raquítico para ser sargento. Eu me entendi com o marechal Rondon e passei dez anos com os índios. Dali fui ser ministro da Educação, criei a Universidade de Brasília, fui chefe da Casa Civil de Jango, tentei fazer a reforma de base e caí no exílio. E foi no exílio que escrevi uma larga obra. Nunca gostei de ser político. No fundo, acho que sou político por razões éticas. Um poeta inglês pode ser só poeta. Mas num país com o intestino à mostra, como o Brasil, o intelectual tem obrigação de tomar posição. Essa é uma briga séria e eu estou nessa briga".
E, mais uma posição sua sobre a visão do Brasil e da América Latina: "A meu ver, o que caracteriza a América Latina de hoje é o súbito descobrimento de que tudo é questionável. As velhas explicações eram justificações. É necessário repensar tudo... Eu acredito que o que caracteriza a nossa geração, a geração que começou a atuar depois de 1945, é esta consciência mais lúcida e mais clara de que o nosso mundo tinha de ser desfeito para ser refeito".
O resenhista o apresenta também em suas diferentes atividades: como político partidário (PDT) foi Ministro da Educação e da Casa Civil (Jango), foi vice-governador de Leonel Brizola e candidato a governador, não logrando a eleição, no Rio de Janeiro. A ditadura de 1964 lhe tolheu os sonhos, num pesadelo que envolveu prisões e exílio. Como antropólogo, sua área de formação, dedicou, por influência do marechal Rondon, dez anos aos índios e como educador, trabalhou ao lado de Anísio Teixeira. Criou a Universidade de Brasília e no Rio de Janeiro, os CIEPS. Foi ainda reitor da Universidade de Brasília e teve decisiva participação na formulação da LDB de 1996.
Agnaldo dos Santos, o resenhista da parte biográfica, apresenta um depoimento de Darcy, dado a ele numa entrevista, sobre as grandes preocupações de sua vida: "O que é que todos nós queremos? É fazer um país habitável, em que as pessoas existam para serem felizes, alegres, amorosas, afetuosas, todo mundo comendo todo dia. Não é uma alegria? Não é um absurdo que num país tão grande, tão cheio de verde, tenha tanta gente com fome?... O Brasil não tem nenhum bezerro abandonado, não tem nenhum cabrito, nenhum frango. Todo frango tem um dono. Mas tem milhões de crianças abandonadas. Quando uma sociedade perde seu nervo ético, perde seu amor, seu apego por suas crianças, que são a sua reprodução, é uma enfermidade tremenda". Por fim apresenta a sua frase, que creio ser a mais famosa:
"Fracassei na maioria das propostas que defendi. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu", e arremata: "Sua obra - em parte esgotada e desconhecida - é estimulante, e não apenas como uma das notáveis expressões de uma época profícua da produção intelectual no país. É também horizonte aberto para pensar o Brasil contemporâneo, que até agora não superou grande parte dos problemas e das questões nela apontados".
A segunda parte, alguns aspectos da obra, é de autoria de Isa Grinspum Ferraz. Ela aponta que ela é menos conhecida do que a sua vida pública e que, ela sofre até de preconceitos em sua recepção, em função de seu ecletismo teórico e metodológico, ou, em outras palavras, por sua originalidade. Nunca atrelou o seu pensamento a matrizes ideológicas, procurando romper com qualquer tipo de rigidez e de vassalagem ao estabelecido. Percebe-se, no entanto, de acordo com Isa, influências de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Câmara Cascudo em suas intepretações sobre a formação do povo brasileiro e de Marx, na análise do processo civilizatório.
Isa analisa três de suas obras, suas obras fundamentais: O processo civilizatório, O povo brasileiro e Confissões, um título não escolhido ao acaso. Vejamos a parte final de sua resenha: "Por isso vale a pena sugerir a leitura do seu último livro, preparado no mesmo período de O povo brasileiro, após sua fuga do tratamento hospitalar - trata-se de sua autobiografia Confissões, título não por coincidência homônimo ao de Santo Agostinho, além do de Rousseau.
Ali, ele procura descrever sua infância nas Minas Gerais, o que torna clara, por exemplo, sua predileção pelos neologismos e termos usados pelo povo simples, no melhor estilo Guimarães Rosa ("fazimento", "ninguemdade"). Descreve suas alegrias e desencontros na universidade, no Executivo e no Legislativo, suas amizades, seu combate à doença, seu gosto pelas letras e por 'contação' de histórias, além da obsessão de toda vida, uma explicação sobre o Brasil e o destino do país. Ele reconhece ali, enfim, a dificuldade de usar o arcabouço conceitual que nos foi legado para essa empreitada, muito em função de berço eurocentrista, mas indica que é trabalho do qual não se deve fugir. Nem mesmo quando o fim se aproxima". O próprio Darcy recomenda:
"A você que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só digo: 'Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada. O único clamor da vida é por mais vida, bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. Depois, seremos matéria cósmica, sem memória de virtudes e gozos. Apagados, minerais. Para sempre mortos".
Darcy, ao enfrentar a morte, o fez de uma forma inusitada. Ele recebeu a extrema unção de Leonardo Boff. Eu conto essa história, no que eu considero como o mais belo texto que já publiquei nesse blog.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/04/darcy-ribeiro-recebe-extrema-uncao-de.html
E, como de hábito, o trabalho anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_23.html
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