sexta-feira, 13 de março de 2020

O Educador - um perfil de Paulo Freire. Sérgio Haddad.

Sabe, aquele livro que, quando você termina, você fica meio triste por que você queria ainda muito mais? Pois é, isso aconteceu comigo na leitura de O educador - Um perfil de Paulo Freire, de autoria de Sérgio Haddad. O livro foi lançado em 2019, pela Todavia. Na contracapa lemos: "Nada mais oportuno, portanto, do que um retrato ponderado do educador e da sua obra, em que pesquisa criteriosa fala mais alto do que o ódio e a ideologia". Foi o que o Sérgio Haddad fez, nesses tempos de ódios intempestivos e acirrados.
O maravilhoso perfil de Paulo Freire, traçado por Sérgio Haddad.

O livro de 251 páginas contém treze capítulos que seguem, mais ou menos, uma ordem cronológica de seu "andarilhar" pelo mundo. De seu nascimento na cidade de Recife à sua morte em São Paulo, passando pela Bolívia e Chile, logo após o exílio que duraria longos quinze anos, pelos Estados Unidos (Harvard) e por Genebra (Conselho Mundial de Igrejas), pelas andanças nas recém libertas colônias portuguesas na África e, na volta ao Brasil, pelas suas atividades acadêmicas na PUC/SP e UNICAMP, pela Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo, a escrita de seus últimos livros e o seu sofrimento final. Uma vida à serviço da emancipação humana, com certeza.

Vou dar o título dos capítulos e volver um breve olhar a cada um deles: 1. "Um cripto comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador". É uma contextualização das primeiras atividades de Paulo Freire em sua cidade natal e em Brasília, a sua prisão em Recife e Olinda, até o seu exílio, pelo crime que dá o título ao capítulo. Uma observação muito curiosa se encontra à pagina 23, quando na prisão, um tenente o interpela, lhe propondo alfabetizar um grupo de recrutas que acabava de chegar ao quartel. A resposta de Paulo: "Mas meu querido tenente, estou preso exatamente por causa disso!"

2. Elza Maia Costa Oliveira. Depois de narrar passagens de sua infância em Recife e das primeiras dificuldades na vida, em que a família passou da condição classe média para a pobreza, passa a lembrar fatos de sua adolescência e sobre a sua vida escolar. Termina com o encontro com Elza, a do título, com quem se casa, após rompidas as barreiras iniciais dada pelas diferenças sociais do casal.

3. "A dureza da vida não deixa muito para escolher". É o início de sua vida profissional, como professor de aulas particulares e de língua portuguesa num colégio de elite. Se emprega no SESI, passando a ter contato com os trabalhadores pobres. São as primeiras reflexões mais críticas sobre o significado de seu trabalho. Com eles passa a ter uma aproximação através da linguagem e passa a entendê-los melhor. Torna-se adepto do cristianismo que vai além do assistencialismo e da caridade, para afirmar direitos e justiça. Completa os seus estudos e leciona na Faculdade de Recife. As dificuldades financeiras foram agravadas pela falência de um tio, com a crise de 1929.

4. Uma enorme lata de Nescau. Paulo teve uma aproximação com o ISEB e os seus teóricos e passou a se interessar pelos temas brasileiros, objeto de seu doutoramento. Paulo, antes formara-se em direito, profissão que abandonou, já em seus primeiros passos. Passa a trabalhar com Miguel Arraes, tanto na prefeitura, quanto no governo de Pernambuco. A referência à lata de Nescau do título são os primeiros passos de seu método de alfabetização. Os temas de interesse e a associação com imagens. A observação do filho Lutgardes, diante de um cartaz com a lata de Nescau, o levou à descoberta.

5. "Hoje já não somos massa, estamos sendo povo". A frase é o depoimento de um dos participantes de sua famosa experiência em Angicos, em que o próprio presidente Jango foi participar da 40ª hora, das 40 horas, do curso de alfabetização. Desse capítulo quero destacar duas observações: a primeira é do presidente Jango: "Tanto quanto os coronéis udenistas e pessedistas, os comunistas não toleram o que foi feito em Angicos". A outra de Castelo Branco, então comandante do 4º Exército, é uma das mais emblemáticas, afirmando que o método só serviria "para engordar cascavéis no sertão" e que era uma "pedagogia sem hierarquia". 

6. "Viva o oxigênio". Essa exclamação é de Paulo, quando ele chega a Arica, no Chile, vindo da Bolívia, o local de seu primeiro exílio. Paulo sofreu demais com a altitude de La Paz e com um golpe de Estado ocorrido no país logo após a sua chegada. Paulo se adaptou bem no Chile, com bom emprego e bom salário.

7. Ninguém educa ninguém. No Chile, irá trabalhar nos projetos de colonização e reforma agrária do governo Frei Montalva. Novas experiências e críticas aos trabalhos de extensão, ministrados por iluminados, sem o emissor/receptor da comunicação. São os anos de suas profundas reflexões, das quais nascem seus primeiros livros: Educação como Prática da Liberdade, certamente uma revisão de sua tese de doutorado e o seu livro mais conhecido, Pedagogia do oprimido. Um belo e fundamental capítulo para entender o mestre. O capítulo termina com a sua ida aos Estados Unidos, onde passará a lecionar em Harvard e a ida para Genebra, trabalhar no Conselho Mundial de Igrejas.

8. Uma caixa de Sonho de Valsa. O impossível também acontece. Paulo inicia seus trabalhos em Genebra, ligados à alfabetização. Lá participa do IDAC, com trabalhos de grande repercussão. A caixa do sonho de valsa é uma referência à enorme saudade que sentia do Brasil, na terra dos melhores chocolates do mundo. Recebia também dos amigos ingredientes para feijoada e cachaça, da qual era grande apreciador. Inicia os contatos com os recém libertos países africanos de língua portuguesa.

9. África: o limite da utopia. O capítulo é muito bonito, onde o pensamente e as experiências de Paulo passam a ser o fundamento de uma educação de países que buscam, efetivamente, construir a sua independência e sua autonomia. Novas amizades, influências e grande repercussão. Guiné Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Tanzânia, Botsvana e Zambia trabalham com o seu método. Em Moçambique as dificuldades foram grandes. Os comunistas... Elza se integra aos trabalhos.

10. "As universidades deveriam correr para contratá-lo". O capítulo narra sua volta ao Brasil, mediada pelo cardeal Arns. A PUC de São Paulo o acolhe como professor, bem a Unicamp, esta com grandes dificuldades. Com a anistia é reintegrado à Universidade do Recife, pela qual se aposenta. Foi um período de intensa atividade intelectual. A frase do título, pasmem, é de Fernando Henrique Cardoso.

11. Reaprender o país. Este também é um dos mais importantes capítulos do livro. Trata da formação de seu pensamento, das críticas negativas e positivas, à esquerda e à direita, de sua obra e a repercussão de seus trabalhos. No ano de 1986 perde Elza, que ao longo de toda a sua história de vida foi a companheira  que garantiu a consistência familiar, por uma presença maior junto aos cinco filhos. Enfrentou dificuldades mil. A esta altura o livro é interrompido para 30 páginas de fotografias.

12. "Nós acreditamos na liberdade". É um relato de sua experiência administrativa à frente da prefeitura da cidade de São Paulo, na gestão de Luisa Erundina. Muitas dificuldades e muitas críticas. Ficou por dois anos e meio, para voltar a se dedicar à escrita de livros, fazer viagens e ter uma convivência familiar maior, agora com Nita, com quem se casara, embora resistências vindas de todos os lados. A liberdade referente ao título era a meta em sua experiência de gestão.

13. "Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo". É o lindíssimo capítulo final: os seus últimos livros e seus últimos trabalhos, bem como os seus problemas de saúde, a sua indisciplina alimentar e a não prática de atividades físicas, o adoecimento e morte. Termina por mostrar uma conjuntura do Brasil de hoje, onde é condecorado com o título de Patrono da Educação Brasileira, mas é também pesadamente insultado pelos seus insanos detratores. O título é retirado de sua última entrevista para a TV PUC/SP.

Pronto, se quiser mais, vamos ao livro e - boa leitura. Em 2021 estaremos comemorando o seu centenário de nascimento, ocorrido em 19 de setembro de 1921, no bairro  da Casa Amarela, na sua querida cidade de Recife.







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