quinta-feira, 16 de março de 2017

Morte e Vida Severina. João Cabral de Melo Neto.

Caprichei na compra do livro Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto. Comprei a edição comemorativa dos 60 anos, da Alfaguara. Assim já ajudamos a situar e datar a obra. Ela foi editada em 1956 e, portanto, a edição dos 60 anos data de 2016. Ela tem uma apresentação de Antonio Carlos Secchin, uma entrevista de Chico Buarque  e um texto de Alceu Amoroso Lima. A entrevista e o texto foram retiradas do jornalivro Parandubas, ano IV, da PUC/SP. Tem ainda uma cronologia e indicações bibliográficas. Lembrando que Chico Buarque foi o responsável pela musicalização da obra, na sua transposição para o teatro. A obra ganhou o mundo.
2016. Da Alfaguara. Edição comemorativa dos 60 anos.

Vamos começar por uma contextualização mais ampla para situar a obra. As raízes históricas e culturais do Brasil são extremamente perniciosas para com o seu povo, especialmente, para o povo do nordeste, por onde a nossa história, quase toda ela, começou. Escravidão, monoculturas de exportação e o latifúndio são uma pequena sínteses dessa perversidade.

Com o tempo, o centro do poder foi se transferindo para o sudeste com o ouro, o café e os imigrantes e, mais tarde, a partir dos idos de 1930, embora mantendo a "vocação natural" para as monoculturas de exportação, o país, por vontade política, criou políticas para a industrialização. Com ela formou-se uma sociedade plural e se deu início à formação de um mercado de consumo interno.

O nordeste pouco foi afetado por estas transformações. A transformação dos engenhos em usinas foi praticamente a única modernização, modernização esta também extremamente perversa. A obra da escravidão praticamente permaneceu intacta. O sol inclemente e os rios intermitentes levaram as culpas por todas as mazelas sociais. Muita literatura se ocupou desta realidade de uma sociedade dividida entre Casa Grande e Senzala, entre os Sobrados e os Mocambos. Não apenas a literatura, mas também o teatro e o cinema.

Enquanto a maioria dos políticos fazia desta situação de miserabilidade a sua sobrevivência, muitas vozes se ergueram em protesto. Vozes fortes e poderosas, expressas em rezas e cantorias, abrangeram desde o popular até o erudito. E uma das vozes mais indignadas e belas se ergueu a partir da casa grande. É a voz erudita de João Cabral de Melo Neto. Voz que não apenas falava, mas que também ouvia. E ouvia o sofrimento do povo e deste povo adquiriu a sua expressão popular, a forma pela qual o povo se comunicava e se compreendia, pelos poemas da literatura de cordel.

Em 1956 João Cabral de Melo Neto escreveu o seu poema maior e também o mais popular. O seu sucesso entre os eruditos o assustou. Morte e Vida Severina - auto de natal pernambucano. A morte precedia a própria vida e, mesmo assim, a vida sempre era fervorosamente celebrada. A obra mostra a vida de um retirante que vem do interior, da caatinga, do agreste, passando pela Zona da Mata para chegar ao Recife e celebrar o nascimento do menino de José. O retirante Severino vem dos limites da Paraíba onde os severinos são "iguais em tudo na vida,/ morremos de morte igual/ mesma morte severina:/ que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia".

Ao longo do caminho, o Severino retirante tem constantes encontros com a morte. No primeiro deles o encontro foi com uma morte matada, em emboscada, por uma ave-bala que voava desocupada. Qual fora a causa? Ele tinha alguns hectares de terra para serem anexados ao latifúndio.

Na caminhada muitas vezes foi acometido pelo desânimo, apesar de saber o mapa das vilas, quais contas de rosário, por onde tinha que passar, pois o Capibaribe, o seu grande guia, também desanimava e interrompia o seu caminho à espera de novas chuvas. O desânimo também lhe vinha pelos seus companheiros de viagem, as coisas do não, como a fome, a sede e a privação. Segue em busca de trabalho, pois, o trabalho é vida. Tudo sabe das lidas de campo, mas trabalho mesmo, só o encontrou com a morte, com colheita antes mesmo de plantar, pois "- Como aqui a morte é tanta,/ só é possível trabalhar/ nessas profissões que fazem/ da morte ofício ou bazar".

As esperanças se renovam quando chega à Zona da Mata, onde tem terra melhor para ficar e onde ninguém morre de velhice antes dos trinta e nem sabe da morte em vida. Mas ali se repete a cena da morte e do enterro. "- Essa cova em que estás,/ com palmos medida,/ é a conta menor/ que tiraste em vida./ - É de bom tamanho,/ nem largo nem fundo,/ é a parte que te cabe/ deste latifúndio". Mas segue o Capibaribe guia, para chegar logo ao Recife, a derradeira ave-maria do rosário desta retirada.

Chegando ao Recife escuta a voz dos coveiros, o dos cemitérios populares e o dos ricos, onde quase não tem trabalho. E no cais do rio, a grande descoberta: "E chegando aprendo que,/ nessa viagem que eu fazia,/ sem saber desde o Sertão,/ meu próprio enterro eu seguia". O jeito seria apressar a morte pois entre o cais e a água do rio só cabia habitar no lamaçal. Mas, eis que, em conversa com José, uma mulher chama para a grande anunciação "que o vosso filho é chegado". Ao nascido é cantado todo o louvar à vida, que mesmo em meio a tanta pobreza, mil presentes lhe são trazidos.

"Minha pobreza tal é.... mas traziam tudo o que tinham. Caranguejo, leite, canário, boneco de barro, abacaxi e, entre outros... "Minha pobreza tal é/ que não tenho presente melhor:/ trago papel de jornal/  para lhe servir de cobertor;/ cobrindo-se assim de letras/ vai um dia ser doutor". É o auto de natal. É a celebração de vida que nasce. É a celebração da esperança e a esperança tem um caminho: as letras.

E entre todas as desesperanças, mesmo a de saltar "fora da ponte da vida", ainda permanece o tom de celebração. "é difícil defender,/ só com palavras a vida,/ ainda mais quando ela é/ esta que vê severina;/ mas se responder não pude/ à pergunta que fazia,/ ela, a vida, a respondeu/ com sua presença viva./ E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida:/ vê-la desfiar seu fio".

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