quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O homem que sabia javanês. Um conto de Lima Barreto.

O homem que sabia javanês é um conto muito bem humorado e profundamente irônico de Lima Barreto. Ele foi publicado originalmente pela Gazeta da Tarde, em abril de 1911. É uma clara metáfora sobre o que ocorria no Rio de Janeiro republicano, em termos de falta de zelo, de desleixo e de burocracia inútil nestes anos de nossa República positivista, se é que isso pode existir. Os termos se contradizem.
O conto de Lima Barreto, na edição da EDUSC de Bauru.

O conto é muito simples e de facílima compreensão. O absurdo é que é imenso. Castelo é o homem que sabia javanês, que na verdade nada sabia dessa língua, se encontra com o amigo Castro numa confeitaria do Rio de Janeiro. Estão a tomar cervejas e Castelo conta ao amigo a sua metidez, ao afirmar que sabia javanês e que a partir desse fato passou a se dar bem na vida e ser bem sucedido no mundo da diplomacia da República.

Tudo começa quando Castelo lê um anúncio que solicita os préstimos de um professor de javanês. Alguns dias de preparo na Biblioteca Nacional em que se apropria do alfabeto, de algumas palavras chave, algumas respostas básicas e um mínimo de conhecimento sobre a ilha, o fazem procurar o endereço indicado. O interessado era um velho e influente barão, o barão de Jacuecanga. Este o recebe e ouve a sua história. O candidato se apresenta como sendo da Bahia, filho de pai javanês, tripulante de navio mercante, que se estabelecera em Canavieiras, onde casou e o teve como filho. Eis o seu aprendizado de javanês. O barão interessado quer cumprir um juramento de família. Fala de seus parentescos e chega próximo a D. Pedro I e da herança de um livro, ao qual, por não tê-lo lido e, até mesmo esquecido, é que se abateram tantas desgraças sobre a sua família.

Da família lhe restara apenas uma filha casada e um único neto. Castelo recebe o livro, cujo prefácio estava escrito em inglês, leu-o e esnobou sabedoria. Causou ótima impressão. Acertaram aulas e preços. Nas aulas, toda a aprendizagem de um dia caía no esquecimento no dia seguinte. Porém, o barão, agora ocupado, fazia progressos em sua saúde e estado de espírito, para o contentamento de filha e genro, este, nada mais e nada menos, que um desembargador. O barão desiste dos estudos e lhe encomenda a tradução do livro, que Castelo fez a seu bel prazer, contando uma história bem animada.

Em meio a isso o barão recebe uma herança de Portugal, que ele credita à leitura do livro e contempla o nosso esperto malaio em generosa lembrança em seu testamento. Para Castelo as dificuldades da vida passaram a fazer parte de seu passado e tudo tendia a melhorar ainda mais. Por ser um expert em javanês o barão o recomenda ao visconde de Caruru, para que lhe proporcionasse o ingresso na carreira diplomática. Só êxitos. O seu aspecto físico fez com que fosse trabalhar nos consulados da Ásia e da Oceania e a participar de congressos na Europa.

Ganhou fama e reputação. Escreveu nos jornais mais influentes, fazendo cópias de dicionários. Na Europa passou a ser conhecido como o mensageiro de Bale e, na volta ao Brasil, ganhou inclusive banquete na presidência da República. Vejamos a parte final do conto:

"Não perdi meu tempo nem dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais, e o presidente da República, dias depois, convida-me para almoçar em sua companhia no palácio.

Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas Malaia, Melanésia e Polinésia".

Uma única vez passou por dificuldades. Um marinheiro malaio fora preso em confusão, mas quando  chegou ao local, ele já havia sido solto. Um conto doído e sofrido de um homem que em sua vida sofreu muitas privações, por causa de sua raiz, de sua cor. Para quem quiser conhecer Lima Barreto recomendo a monumental biografia sua, escrita pela Lília Schwarcz.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/08/lima-barreto-triste-visionario.html

O pequeno livrinho é editado pela EDUSC, de Bauru, e é ilustrado por Daniel Razabone. Tem apresentação de Vitor Biasoli, de quem destaco um parágrafo: "O conto O homem que sabia javanês (publicado em livro em 1916) é a expressão desse olhar crítico em relação aos modos como o poder intelectual imperava no Rio de Janeiro mundano e cosmopolita, então capital da República. O foco recai sobre os falsos doutores, os sofisticados malandros que, armados por um conhecimento sorvido em informativos verbetes de enciclopédia, se faziam passar por homens cultos e galgavam altos postos do serviço público. Não apenas malandros sofisticados, mas astutos lutadores pela própria sobrevivência no espaço das classes dominantes".



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