Na penúltima página do romance Numa e a ninfa, de Lima Barreto, depois de um discurso horroroso de Numa na Câmara de Deputados, lemos:"- Vocês admiram-se! Não é cousa do outro mundo. O Numa lá de Roma acertava quando consultava a ninfa; com este dá-se a mesma cousa". É o teor do romance. Muito mais do que um romance, uma crônica de época. Vamos a uma contextualização, a partir da contracapa do livro:
Numa e a ninfa. A crônica de seu tempo. O livro tem composições entre 1911 e 1915.
"Originalmente publicado como conto pela Gazeta da Tarde, em 1911, e em folhetins diários três anos depois pelo jornal A Noite, o romance recebeu sua forma final em 1915". Na apresentação do livro feita por Antonio Arnon do Prado, encontramos outra importante anotação, num subtítulo: - Um relato híbrido. Nele lemos: "Um dos aspectos relevantes na configuração desse processo é que a primeira versão da história do Numa aparece num momento de aberta radicalização libertária, que antecede de pouco, [...] a publicação da sátira "As aventuras do dr. Bogóloff", da qual, aliás, sairia uma das personagens farsescas mais exorbitantes na desarticulação do romance". Para essa desarticulação ver o prefácio e a introdução do livro.
Ao ver as datas dos escritos, dos textos dos folhetins à edição do romance, 1911 a 1915, vamos a uma observação da contracapa: "Retratando de forma crítica o ambiente político do governo Hermes da Fonseca, este romance satírico conta a história de Numa Pompílio de Castro, jovem bacharel em direito pouco afeito aos estudos e ao trabalho. Interessado apenas nos cargos e proventos que o título lhe permitiria alcançar, casa-se com Edgarda Cogominho, filha de um oligarca, e elege-se deputado graças à influência do sogro". O sogro era influente senador.
A descrição de sua formação acadêmica, já no primeiro capítulo, é uma das passagens mais cômicas, lembrando o sistema educacional descrito em Os bruzundangas. Estudava, ou melhor, decorava as anotações dos colegas e só errava questões na prova, quando as anotações estavam erradas. Era medíocre, mas as notas eram boas. A sua profissão mesmo era ser genro do senador Cogominho. Deputado eleito, integrava a bancada do governo e só veio a se destacar quando Edgarda, a ninfa, lhe cobrou notoriedade e lhe preparou um discurso. Aí foi alçado à fama.
Na edição da Penguin & Companhia das Letras tem o prefácio de João Ribeiro, apresentado pela primeira vez em 1917. João Ribeiro faz o seguinte comentário, entre outros, a respeito do livro: "Numa e a ninfa é um estudo da vida social e política do nosso tempo. É realmente um dos raros livros que espelham, com verossimilhança senão com fidelidade, os vícios e costumes da sociedade política". Vejamos um pouco mais:
"No Brasil, em quase todos os ramos da vida, o "arrivismo" (eu facilito com o Aurélio - Pessoa inescrupulosa, que quer vencer na vida a todo custo) é uma arte consumada e perfeita; sem ela, seria impossível explicar o triunfo e a evidência de indivíduos quase nulos, insignificantes, incultos e ridículos que, entretanto, ocupam as melhores posições. À inteligência substitui-se a esperteza que é também, não há negar, uma qualidade do espírito. Já não é pouco verificarmos que, por exemplo, na política, se não temos a verdade, temos pelo menos o sofisma. Contentemo-nos com aparências lógicas e com arremedos simiescos.
Dessa desordem fundamental dos nossos costumes traçou Lima Barreto com mão firme um esboço tão parecido à realidade que com ela se confunde". Bem, o que mais? Vou chamar atenção dos principais personagens. Primeiro os do núcleo familiar: Numa, Edgarda e o senador Cogominho. O doutor Bogóloff, um russo, ex anarquista, que cansou das lides de roça e foi trabalhar em Ministério, como diretor da Pecuária Nacional. Planos mirabolantes devidamente fundados na ciência. Quadruplicar peso de bois e porcos (Não há referências a terraplanismos, afinal eram tempos de ciência, de positivismo). Destaco ainda Lucrécio Barba de Bode, que mora na Cidade Nova, que resultara dos planos de saneamento do Rio de Janeiro, do soterramento dos morros, como o do Castelo. Dele João Ribeiro fala o seguinte:
"...tipo quase secundário no livro, mas intensamente significativo pela verdade flagrante dos seus gestos. É um mísero mulato sem emprego, que, eternamente e por instintivo olfato, descobre o futuro árbitro das graças". Outro personagem notório é Fuas Bandeira, jornalista ou dono de jornal. O tema é grato a Lima Barreto. Mais duas referências... As milícias já atuavam e atormentavam e, como estamos num governo de marechal, as mulheres de militares vivem a reclamar e a mendigar benefícios. Afinal de contas são os seus maridos que se sacrificam pela pátria.
Enfim, selecionei uma passagem do capítulo dez, logo em sua abertura, para estabelecer um paralelo com os dias de hoje. "Os sequazes de Bentes (O general candidato) acharam que o melhor meio de fazê-lo presidente do Brasil era impedir que houvesse eleições na capital do país. Todas as tendenciosas passeatas de batalhões, a inundação da cidade por valentões e capangas, as ameaças de perda de emprego não lhes deram segurança de vitória; e houve neles, tal era o vigor da população, temor que se efetivasse, redundasse ela em trabalho mecânico, inesperado e abrupto, uma erupção contra o sindicato que se acovardara diante das baionetas e iludia a própria consciência fingindo entusiasmo.
Uma biografia fantástica do triste visionário.
Uma biografia fantástica do triste visionário.
Cada dia fico mais fã do Lima Barreto. Pena que ele tenha sido um cronista de uma outra época. Se fosse dos tempos de hoje, com certeza que tomaríamos juntos algumas boas doses de cachaça. E uma recomendação final. A maravilhosa biografia, escrita pela Lília Schwarcz.
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