"Se dou comida aos pobres, todos me chamam de santo. Mas quando pergunto por que são pobres, me chamam de comunista". Dom Hélder Câmara. Frase em epígrafe.
O Brasil está passando por uma grande reinterpretação de suas origens, de suas mazelas e, como consequência, de seu destino. O corajoso e ousado intelectual desta reinterpretação, é Jessé Souza, agora com assento na cadeira titular de sociologia da UFABC, depois da UFF e após ser desalojado da presidência do IPEA, por ação do governo golpista. Termino de ler A elite do atraso - Da escravidão à lava jato, o mais recente livro do brilhante sociólogo. Antes já havia lido A tolice da inteligência brasileira e A radiografia do golpe. Em 2016 assisti também uma aula sua na UFPR, a aula magna no curso de direito.
Mais uma vez um livro instigante e provocativo, como pode ser visto já a partir do título, com a afirmação de que a nossa elite é uma elite do atraso, formada a partir da escravidão e que se utiliza, nos dias atuais, para a sua afirmação, de mecanismos como a lava jato. A tese central do livro já está no A tolice da inteligência brasileira que é a preocupação com a elite brasileira, formada por 1%, que vive às custas dos outros 99% e que ainda consegue se legitimar perante estes 99%. Na aula magna da UFPR, o livro já estava mais nitidamente desenhado.
Jessé bate de frente com as tradicionais interpretações de Brasil, formuladas na USP e repetidas à exaustão por professores, pelos livros acadêmicos e pela grande mídia. Três teóricos são o grande alvo de sua crítica, sobrando também para outros. Sérgio Buarque de Holanda e o seu "homem cordial", Raimundo Faoro e a análise de Os Donos do poder, que com o conceito de patrimonialismo demoniza o Estado e sacraliza o dito livre mercado e Roberto DaMatta, com a teoria do jeitinho brasileiro. Estas teses conduzem ao espírito brasileiro do viralatismo, de uma inferioridade ôntica do povo brasileiro com relação ao tipo ideal, do americano branco, calvinista e empreendedor.
Pela essência desse viralatismo, de um eterno complexo de inferioridade, seria preferível que as nossas riquezas e as nossas empresas fossem geridas pelos homens superiores do livre mercado, por homens virtuosos e não por um Estado, que na sua longa história, traz a corrupção endêmica do Estado, uma herança trazida de Portugal. Contra estas teorias propõe que a origem de todas as mazelas brasileiras está impregnado pelo conceito que nos foi relegado pela escravidão.
O autor apresenta dois tipos de racismo construídos ao longo da história, o primeiro, de raiz fenotípica, determinado pela cor e o segundo, de raiz cultural, pelo qual tanto negros e brancos, bastando que não sejam calvinistas e empreendedores e não terem vencido no chamado livre mercado, aberto e cheio de oportunidades, para serem considerados seres inferiores. Assim toda a América Latina passa a ser vítima. Busca ainda uma separação entre as virtudes do espírito e as infâmias do corpo, uma longa construção histórica, fundada em Platão e universalizada pelo cristianismo.
Aí estão dados os pressupostos da nova interpretação de Brasil. Quando Sérgio Buarque de Holanda apresenta o brasileiro como homem cordial, isto é, do cor, do coração, este já não é um homem do espírito, da racionalidade, mas do corpo, sede de infâmias, da sensualidade, da preguiça, da concupiscência e da malandragem. Seres inferiores, portanto. A este homem cordial soma-se a herança patrimonialista portuguesa, pela qual os homens públicos tem apenas interesses privados na administração do Estado. Eles o administram de forma corrupta, no seu interesse privado. Estas são para ele as duas grandes fontes do conservadorismo liberal no Brasil. Sobra ainda para Francisco Weffort, que demoniza o populismo, termo pelo qual são denominadas as políticas públicas e para Roberto DaMatta, o do jeitinho brasileiro.
A contraposição a estas teorias se dá pela herança do espírito escravocrata de nossa elite, elite praticamente invisível e que ainda busca legitimar a sua grande riqueza e se manter distante do povo, pelo qual sente um profundo menosprezo. Ele considera este povo como escravos e por eles nutre, além do menosprezo, um profundo ódio. Um ódio de classe. Esta elite, na sua afirmação, conta com uma classe média, basicamente formada pelo conhecimento técnico e que ocupa funções de gerência, tanto no Estado, quanto no mercado. Atuam também nas universidades e na grande mídia, buscando legitimar o status quo existente.
As análises de seu livro também passam por descrições da formação destas elites, bem como as classes médias, e a estas, ele divide em protofascistas, liberais, expressionistas e críticas. Um pouco antes examina os grandes segmentos em que se divide a sociedade brasileira: as elites, as classes médias, os trabalhadores e a ralé, termo provocativo por ele usado em livro anterior, em que estuda a formação dos novos escravos brasileiros. Espírito de inferioridade perante as nações desenvolvidas e demonização das políticas públicas em favor desta ralé, faz com que as elites e a classe média estejam em permanente alerta, em estado de golpe, para evitar qualquer possibilidade de ascensão social. O moralismo do dito combate à corrupção sempre foi o grande mote. Este combate à corrupção é extremamente seletivo, demonizando apenas a corrupção de quem promove políticas públicas. É interessante observar que em um país dominantemente cristão o moralismo não se volte ao respeito pelo ser humano e à luta por igualdade e justiça.
Autógrafo para o livro A tolice da inteligência brasileira.
Autógrafo para o livro A tolice da inteligência brasileira.
A última parte do livro é dedicada ao comportamento da mídia, Rede Globo, concessão pública, à frente, acompanhada por mídias privadas como a Revista Veja e os jornais Folha e Estado de São Paulo. Todo este seletivo combate à corrupção, que ele chama de corrupção dos tolos é para que a verdadeira corrupção se torne invisível e que é praticada pela transferência das riquezas do Estado corrupto para o beato e imaculado mercado, das isenções fiscais e pela apropriação do orçamento, construído basicamente com o trabalho dos que ganham até três salários mínimos e pelas altas taxas de juros praticadas, a remunerarem os atravessadores do capital financeiro. 20 anos de congelamento dos gastos públicos são a garantia da intocabilidade dos privilégios dos rentistas.
Sei que esta resenha é uma ousadia. Ela pode conter erros e omissões de dados essenciais. A minha intenção é de que a resenha seja um pequeno chamado para a leitura. Pensador vigoroso, corajoso e ousado, mas extremamente bem fundamentado. Jessé usa para explanar estes conceitos e fazer as suas análises 239 páginas.
Gostei da resenha. Eu gostaria se vc pudesse explicar, as características das classes altas, médias e baixas, segundo o autor, no capítulo "Os conflitos de classe no Brasil moderno"
ResponderExcluirAntes de mais nada agradeço o seu "gostei". Muito obrigado. Quanto a questão das características das classes sociais, eu remeteria ao mais recente livro do Jessé. "Subcidadania brasileira - Para entender o país além do jeitinho brasileiro".
ResponderExcluir