"Passei os dias falando sozinho, mergulhado num texto, consegui arrancá-lo. Era um farrapo que me tinha nascido em setembro, em Sampa. Aí nasceu, sem que eu planejasse. Estava pronto na minha cabeça. Chama-se Morangos mofados, vai levar uma epígrafe de Lennon & McCartney, tô aqui com a letra de "Strawberry fields forever" pra traduzir. Zézim, eu acho que tá tão bom. Fiquei completamente cego enquanto escrevia, a personagem (um publicitário, ex-hippie, que cisma que tem câncer na alma, ou uma lesão no cérebro provocadas por excessos de drogas, em velhos carnavais e o sintoma - real - é um persistente gosto de morangos mofados na boca) tomou o freio nos dentes e se recusou a morrer ou a enlouquecer no fim. Tem um fim lindo, positivo, alegre".
Um mergulho nas angústias da existência..
Um mergulho nas angústias da existência..
Quando a gente se propõe a uma resenha de um livro tão complexo como é o Morangos mofados, do Caio Fernando Abreu, nada melhor do que recorrer ao próprio autor a falar sobre o seu livro. É o que eu fiz ao encontrar, no final do livro, uma carta endereçada a um amigo, em que fala sobre o processo da escrita do livro. Ninguém melhor do que ele para trazer este belo parágrafo sobre a sua obra. Cheguei ao livro, por ser uma indicação para o vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Estas indicações servem para mim de guias de leitura.
Caio Fernando Abreu é gaúcho, nascido na cidade de Santiago do Boqueirão, no ano de 1948 e morreu em Porto Alegre em 1996. Porto Alegre, São Paulo e depois o mundo foram as cidades em que desenvolveu as suas atividades de escritor. O livro foi lançado em 1982 e em 1995 foi relançado, após criteriosa revisão do autor. Um texto sobre o livro, publicado no Jornal do Brasil nos dias 24 e 31/10/1982 por Heloísa Buarque de Holanda, é usado como apresentação. O foco o situa no campo da contracultura, na história de uma geração.
Na orelha do livro encontramos mais dados que facilitam a compreensão. Transcrevo dois parágrafos: "O que primeiro chama a atenção na leitura de Morangos mofados é a fineza de estilo, a inteligência e a percepção de Caio Fernando Abreu para tratar do que há de mais profundo no ser humano. A busca, a dor, o fracasso, o encontro, o amor e a esperança vão se delineando nesta série de contos que se entrelaçam quase como se fossem romance.
O medo e a insegurança dominam os nove contos que compõem a primeira parte do livro, "O mofo", na qual está representada a vida sob a ditadura militar e a restrição à liberdade. Na segunda parte, "Os morangos", vemos uma saída para os traumas impostos pela sociedade. Na última, composta de um conto, que dá nome ao livro, Caio sinaliza uma esperança: os morangos estão mofados, mas ainda assim guardam o frescor em sua essência".
Como não vou resenhar os contos, chamo a atenção para dois deles. Sargento Garcia, escrito em três momentos. Ele perfeitamente poderia ter sido escrito ao longo do ano de 2017. Temas presentes no triste momento que estamos vivendo, de muito ódio, preconceitos e de moralismo. O sargento representa os "valores" praticados ao final de uma ditadura que ainda insistia em permanecer. O outro é o conto final que leva o título do livro Morangos mofados. Nele aparece a epígrafe de Lennon &McCartney: Let me take you down / 'cause I'm going to strawbery fields / nothing is real, and notting to get / hung about / strawbery fields forever. A música está sempre presente em seus contos.
Neste conto aparece o publicitário junto ao seu médico e lhe retruca o seu diagnóstico: "Não há nada errado com o seu coração nem com o seu corpo, muito menos com o seu cérebro. Caro senhor. Acendeu outro cigarro, desses que você fuma o dobro para evitar a metade do veneno, mas não é no cérebro que acho que tenho o câncer, doutor, é na alma, e isso não aparece em check-up algum". Este câncer lhe provoca uma permanente hipocondria e uma profunda Angst, angústia existencial presente em todos os contos e que tornavam mofos os morangos.
Mas, conforme o autor, o final é feliz. "Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos. Achava que sim. Que sim. Sim".
Enquanto isso, um outro menino, nascido também no Rio Grande do Sul, no ano de 1945, em Harmonia, três anos antes que o autor, se encaminhava para os seminários de Bom Princípio, Gravataí e Viamão para viver as suas harmonias e desarmonias sob os bons princípios da cultura oficial, aprendendo para fazer a sua reprodução. Mundos diferentes, mundos distantes. Rupturas. Rupturas.
Quando pego o livro tenho uma ligeira impressão de que ele exala fumaça, de tantos cigarros que são fumados.Livro indicado para o vestibular da UFRGS.
O medo e a insegurança dominam os nove contos que compõem a primeira parte do livro, "O mofo", na qual está representada a vida sob a ditadura militar e a restrição à liberdade. Na segunda parte, "Os morangos", vemos uma saída para os traumas impostos pela sociedade. Na última, composta de um conto, que dá nome ao livro, Caio sinaliza uma esperança: os morangos estão mofados, mas ainda assim guardam o frescor em sua essência".
Como não vou resenhar os contos, chamo a atenção para dois deles. Sargento Garcia, escrito em três momentos. Ele perfeitamente poderia ter sido escrito ao longo do ano de 2017. Temas presentes no triste momento que estamos vivendo, de muito ódio, preconceitos e de moralismo. O sargento representa os "valores" praticados ao final de uma ditadura que ainda insistia em permanecer. O outro é o conto final que leva o título do livro Morangos mofados. Nele aparece a epígrafe de Lennon &McCartney: Let me take you down / 'cause I'm going to strawbery fields / nothing is real, and notting to get / hung about / strawbery fields forever. A música está sempre presente em seus contos.
Neste conto aparece o publicitário junto ao seu médico e lhe retruca o seu diagnóstico: "Não há nada errado com o seu coração nem com o seu corpo, muito menos com o seu cérebro. Caro senhor. Acendeu outro cigarro, desses que você fuma o dobro para evitar a metade do veneno, mas não é no cérebro que acho que tenho o câncer, doutor, é na alma, e isso não aparece em check-up algum". Este câncer lhe provoca uma permanente hipocondria e uma profunda Angst, angústia existencial presente em todos os contos e que tornavam mofos os morangos.
Mas, conforme o autor, o final é feliz. "Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos. Achava que sim. Que sim. Sim".
Enquanto isso, um outro menino, nascido também no Rio Grande do Sul, no ano de 1945, em Harmonia, três anos antes que o autor, se encaminhava para os seminários de Bom Princípio, Gravataí e Viamão para viver as suas harmonias e desarmonias sob os bons princípios da cultura oficial, aprendendo para fazer a sua reprodução. Mundos diferentes, mundos distantes. Rupturas. Rupturas.
Quando pego o livro tenho uma ligeira impressão de que ele exala fumaça, de tantos cigarros que são fumados.Livro indicado para o vestibular da UFRGS.
Ótima introdução e "resumo da ópera" desse livro breve, mas complexo e de sentidos diversos. Parabéns, Pedro Elói. O Caio, além de um artista da palavra, era uma figura sensacional. Faz falta.
ResponderExcluirAgradeço o comentário. Realmente um livro complexo, como é complexa a existência humana. E a literatura consiste no registro desta complexidade. Assim é que surge a grande literatura. Não tive a felicidade de conhecer o autor mas já percebi pelo face que ele era muito querido.
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