Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o militante do Partido Comunista, Leôncio Basbaum, numa resenha escrita por Angélica Lovatto. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial, do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 autores/intérpretes, resenhados por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentes, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.
Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial.
Angélica Lovatto inicia a sua resenha com uma bela frase em epígrafe, "Como, porém, há quatrocentos anos vem sendo o Brasil interpretado sem nenhum resultado prático para o seu futuro, resolvi levar minhas pretensões mais longe; quero também contribuir para transformá-lo. Para melhor, é claro". Referência explícita a Marx e Engels, à tese 11, contra Feuerbach, na Ideologia alemã.
Leôncio Basbaum nasceu na cidade de Recife no ano de 1907, vindo a morrer em São Paulo, em 1969, contando com apenas 61 anos de idade. Seus primeiros estudos ocorreram em Recife, mas a sua formação em medicina ocorreu no Rio de Janeiro. Mas a sua vida foi dedicada integralmente aos estudos de história e de militância no PCB, visando cumprir o enunciado na frase em epígrafe. Como militante viveu todas as contradições do seu partido, dele se afastando e se reaproximando, movido pela sua fé no socialismo, para além das questões da organização partidária.
O foco da resenha se centra na sua visão histórica, contando a sua versão de história do Brasil, nos quatro volumes da História sincera da República, inconformado com as interpretações correntes no período, que segundo ele, não incorporavam a história de lutas dos trabalhadores, levando em conta apenas as visões da classe dominante. A principal característica da obra está contida no título pela palavra sincera, isto é, pela sua visão de militante, recusando-se à objetividade fria dos fatos, preconizada pela postura de neutralidade.
Apresento primeiramente a periodização dos quatro volumes, para depois voltar à resenha e contextualizar a produção de cada um dos volumes. Assim temos História Sincera da república - Volume I. Das origens à 1889; Volume II. de 1889 a 1930; Volume III. De 1930 à 1960; Volume IV. De 1961 a 1967. E, lembrando que o autor morreu no ano de 1969, com apenas 61 anos. O Brasil caminhava em direção oposta aos seus sonhos e ações.
O primeiro volume surge em 1957. O livro se detém nas causas do atraso brasileiro, mesmo com a proclamação da República, um misto de latifúndio, feudalismo e escravismo. Observem a presença da palavra feudalismo, que mostra a sua fidelidade ao Partidão, que acolhia esse tipo de interpretação. Depois da República da espada, a República será totalmente dominada pela oligarquia cafeeira. Além dessa visão do atraso nota a total ausência da emergente classe trabalhadora na construção brasileira, contrapondo-se assim às interpretações conservadoras de nossa história.
O segundo volume se ocupa inteiramente da República Velha, sob o comando da oligarquia cafeeira paulista. Há forte presença do Estado em investimentos de infraestrutura, atendendo aos interesses do transporte e da comercialização do café, numa economia dominada pelo imperialismo inglês. Analisa também a emergência e as lutas do proletariado desse período. Vê também as insurreições populares do período, verdadeiros atestados da insatisfação popular com os caminhos da República. Analisa Canudos, o Forte de Copacabana, os tenentes, Prestes, chegando até a crise de 1929 e a sua repercussão no Brasil. Critica a neutralidade de posicionamento dos intérpretes oficiais. É o período em que enfrenta problemas pessoais, que o levam a Salvador, para em breve voltar ao Rio de Janeiro.
Entre o primeiro e o segundo volume publica Caminhos brasileiros do desenvolvimento, livro em que indica que o caminho brasileiro para o socialismo se dá pela via da efetivação da revolução burguesa, mais uma vez sob a leitura oficial do Partidão, pela famosa via das etapas para se chegar ao socialismo. O desenvolvimento econômico, com democracia, necessariamente conduziria ao socialismo. Seria uma revolução pacífica que levaria a classe trabalhadora ao poder. A grande crítica é a ausência das questões agrárias e do desenvolvimento regional nas ações governamentais. Foi um tempo de grande aproximação com os pensadores do ISEB, a quem também não poupava críticas.
Esse período também foi marcado pela conclusão de seus estudos sobre a República e, em 1962 surge o volume III, de sua "História sincera", dividido em três partes: O Brasil Novo, o Estado Novo e a Nova Constituição (1946). Na primeira parte mostra o seu desencanto com Vargas. Na segunda mostra a força da industrialização, analisa os partidos políticos que surgem e critica, já na parte final, a desnacionalização da economia. E mais uma vez, nada de significativo ocorrerá no campo. Critica duramente o seu partido e a sua posição diante de Vargas. Vargas, em vida, é combatido e, após a sua morte passa a ser idolatrado. Como comunista, considera o XX Congresso do PCUs como um golpe de morte.
O volume IV aparece no ano de 1968 e é escrito sob um enorme abatimento pessoal e de profunda expressão de suas decepções. É um livro de crônicas muito vivas, presenciais, de quem sofreu esse período de contenção das aspirações populares. O livro também pode ser visto e lido como independente de sua tetralogia, como "A fisiologia do golpe". A grande pergunta que ele faz é sobre o que sobrou dos apoiadores do governo de Jango. Por que foi tão fácil a aplicação do golpe? Jango também recebe duras críticas pela sua não resistência. É um belo livro para ser confrontado com as revelações posteriores sobre as raízes e origens do golpe. Quanto ao governo de Castelo Branco, o considerou como um terror político-econômico e cultural.
De sua formação em medicina, traça uma analogia ao diagnosticar o governo de Castelo Branco, como um agonizantezinho. "Parece claro que não basta mudar de médicos", pois, "os que temos à vista são todos parecidos, todos fardados, com o mesmo avental, todos armados, com o mesmo estetoscópio, e não querem ouvir palpites de estranhos". E conclama: "Mas é preciso fazer alguma coisa: mudar os médicos, mesmo que sejam mais caros, e também a terapêutica: o país não suporta mais óleo de rícino e sanguessugas. Não importa o preço. Custe o que custar, é preciso mudar".
Também nos legou o seu livro de memórias. Nele fez um balanço de sua vida, de seu legado. Vejamos algumas passagens de sua parte final. "A tranquilidade da minha vida presente, não foi a procurada por mim, mas a que a vida me impôs". "Não foi isso que desejei. Sonhei ser um militante de vanguarda que, pela sua ação, fosse capaz de contribuir para a transformação deste país, trazendo a felicidade, a liberdade, o bem-estar, para milhões de brasileiros. Não consegui".
E, ainda: "Como um rio que se desvia de seu curso, porque encontrou obstáculos pela frente, mas acaba desembocando no mar por outras vias, também eu desviei-me sem querer, do meu curso, mas com certeza de que acabarei chegando ao destino traçado, ainda que por outros caminhos. E se não o fizer, pelo menos, e disso tenho certeza, abri um caminho que as águas que vêm atrás de mim, certamente seguirão". Conflitos entre a vida pessoal e a hierarquia de seu partido marcaram profundamente a sua trajetória.
Veja também a resenha anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/12/interpretes-de-brasil-classicos.html
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