Quem lê Contraponto, de Aldous Huxley, também lê, do mesmo autor, Admirável Mundo Novo. Huxley é um dos mais refinados e eruditos escritores que a literatura universal conheceu. Há muito que eu pretendia lê-lo, mas sempre adiava o projeto. Desde os tempos da leitura do Érico Veríssimo eu me interessava no Contraponto, em virtude da tradução ser do próprio Veríssimo. Deixo a resenha. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/01/contraponto-aldous-huxley.html. Admirável mundo novo possivelmente seja a sua obra mais conhecida e famosa.
Admirável mundo novo. Biblioteca azul da editora Globo. Tradução de Vidal de Oliveira.
O livro é famoso e todos sabem que fala sobre a sociedade do futuro e sobre condicionamentos. Em geral o seu conhecimento para por aí. Não é leitura fácil. É obra para leitores. Descreve sim, a sociedade do futuro, mais precisamente, a sociedade a partir do ano de 632, depois de Ford. Ford, com certeza, é uma das inspirações maiores da obra, a linha de produção em série de seu Ford T. Creio ser fácil imaginar a associação dessa ideia para uma transposição para os humanos. É disso que se ocupam os primeiros capítulos, o centro de incubação e condicionamentos, a sala de decantação, aceitações por repetição à exaustão, uso de psicóticos para a felicidade, o onipresente soma.
O livro foi escrito no ano de 1931. Contraponto é anterior, de 1928. Que tempos! Um mundo entre duas guerras, a grande debacle econômica e a ascensão do nazi fascismo no seu entorno europeu. Vivia, nessa época, em Londres. Mais tarde irá morar nos Estados Unidos. Lembrando que O mal estar na civilização, de Freud, é de 1930. É o clima. Um mundo de automações, de mecanização, de massificação e padronização de comportamentos, que começam a ser ditados pelo famoso modo de viver dos Estados Unidos.
Para a presente resenha, apresento primeiramente três parágrafos da orelha da capa para depois apresentar alguns trechos que julguei mais relevantes para a compreensão do livro. Vamos à contracapa: "A terra agora se divide em dez grandes regiões administrativas. A população de dois bilhões de seres humanos é formada por castas com traços distintivos manipulados pela engenharia genética: nos laboratórios são definidos os pouco dotados, destinados aos rigores do trabalho braçal, e também os que crescem para comandar. Não há espaço para a surpresa, para o imprevisto. O slogan 'comunidade, identidade e estabilidade' sustenta a trama do tecido social. Estamos no ano de 632 depois de Ford - aquele da linha de produção de automóveis -, quando o amor é proibido e o sexo, estimulado.
Tais ingredientes levaram Admirável mundo novo a figurar ao lado de 1984, de George Orwell, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, como uma das principais obras antiutópicas do século XX, em que um futuro sombrio aguarda a humanidade. Alguns ainda veem a ficção de Huxley, esse inglês refinado e cultíssimo, uma crítica à crescente influência americana no período entreguerras, que trazia a reboque a cultura de massas e o american way of life.
Este é, acima de tudo, um romance de ideias, que descreve as formas mais sutis e engenhosas que o pesadelo do totalitarismo pode assumir, e que resiste inexpugnável às interpretações político-ideológicas de esquerda ou direita suscitadas desde seu lançamento. Mundialismo, controle genético, adestramento comportamental e intoxicação coletiva não são dados soltos para a mente construir com eles uma utopia: são os órgãos solidários e inseparáveis de um único sistema. Onde quer que apareça um deles, os outros seguirão, mais cedo ou mais tarde. A lógica deste romance imita e condensa a lógica da História. E Huxley, desenvolvendo a sensibilidade a ponto de criar esse retrato ainda hoje tão perturbador, tornou-se o autor de um dos grandes clássicos da literatura mundial".
Bem, vamos aos trechos selecionados, lembrando antes, alguns personagens centrais e uma pequena contextualização. Lenina e Bernard Marx. Estes tiram férias no Novo México e encontram Linda e o seu filho (uma palavra proibida) John e os levam para lhes apresentar o Admirável mundo novo (o termo aparece pela primeira vez na página 171). Destacaria ainda Helmholtz, o amigo de Bernard e Mustafá Monde, o administrador de Sua Fordeza. Eu diria que Ford ocupa, mais ou menos, a figura de Jesus, nessa nova civilização. A religião, como tudo o que é antigo, está condenado a desaparecer. Na página 284 encontramos uma explicação importante: "O cristianismo sem lágrimas, eis o que é o soma". Soma é o remédio que anestesia todos os problemas. Mas vamos aos trechos selecionados. No primeiro, Mustafá Mond explica ao selvagem John, o que é o admirável mundo novo:
"...Porque o nosso mundo não é o mesmo mundo de Otelo (Shakespeare - onipresente na obra). Não se pode fazer um calhambeque sem aço, e não se pode fazer uma tragédia sem instabilidade social. O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não tem medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregados de pais e mães; não tem esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem. E se, por acaso, alguma coisa andar mal, há o soma. Que o senhor atira pela janela em nome da liberdade, senhor Selvagem. Da liberdade! - riu. Espero que os Deltas saibam o que é a liberdade! E agora quer que eles compreendam Otelo! Meu caro jovem". p. 264.
Também há solução para os que não se adaptam ao sistema. Mustafá Mond conta ao Selvagem a experiência do Chipre: "Pois, se quiser, pode chamar-lhe de experiência de reenfrascamento. Começou no ano de 473 d.F. Os administradores fizeram evacuar a ilha de Chipre e, uma vez retirados todos os seus habitantes, recolonizaram-na com um lote especialmente preparado de vinte e dois mil Alfas. Entregaram-lhes todo um equipamento agrícola e industrial, e deixaram-lhes a responsabilidade de dirigir os negócios. O resultado correspondeu exatamente a todas as predições teóricas. A terra não era convenientemente trabalhada; houve greves em todas as fábricas; as leis eram desrespeitadas, as ordens, desobedecidas; todas as pessoas destacadas para um serviço inferior passavam o tempo fazendo intrigas para obter cargos mais elevados e todas as pessoas que ocupavam cargos mais elevados tramavam contraintrigas para, a qualquer preço, ficar onde estavam. Em menos de seis anos, viram-se às voltas com uma guerra civil de primeira ordem. Quando, dos vinte e dois mil, dezenove mil tinham sido mortos, os sobreviventes fizeram uma petição unânime aos Administradores Mundiais para que estes retomassem o governo da ilha, o que foi feito. E assim acabou a única sociedade de Alfas que o mundo viu. p.267-8.
Também a redução da jornada de trabalho não deu certo: "Que mais poderiam pedir? É verdade - acrescentou - que poderiam pedir uma jornada de trabalho mais curta. E, por certo, nós poderíamos concedê-la. Do ponto de vista técnico, seria perfeitamente possível reduzir a três ou quatro horas a jornada de trabalho das castas inferiores.. Mas isso as faria mais felizes? Não, de modo algum. A experiência foi tentada há mais de século e meio. Toda a Irlanda foi foi submetida ao regime de quatro horas de trabalho diário. Qual o resultado? Perturbações e um acréscimo considerável do consumo de soma, nada mais....p. 268-9.
Uma última observação. Os principais temas humanos são tratados ao longo dos 18 capítulos do livro. Temas como o amor, a família, o luto e a morte ganham capítulos inteiros. Seria este o motivo da onipresença de citações de Shakespeare ao longo da obra? Tudo a ver. Não foi Shakespeare o escritor que melhor retrata as emoções e os sentimentos humanos? Ainda em tempo. Em 1946 o livro ganhou um prefácio do próprio autor. Nele ele explica as razões pelas quais não iria reescrever essa história. Observem bem a data. 1946. Em suma, uma das obras primas da literatura universal, com a preocupação do humano no futuro da humanidade.
PS. No livro famoso de Yuval Noah Harari, Sapiens - uma breve história da humanidade, o capítulo 19 é dedicado à felicidade. Nele, o autor comenta o livro de Huxley, na relação drogas/felicidade. Vejamos:" No romance distópico de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, publicado em 1932, no auge da Grande Depressão, a felicidade era o valor supremo, e os medicamentos psiquiátricos substituíam a polícia e as eleições como a base da política. A cada dia, cada pessoa toma uma dose de 'soma', um medicamento sintético que torna as pessoas felizes sem prejudicar sua produtividade e eficiência. O governo mundial, que controla o mundo inteiro, nunca é ameaçado por guerras, revoluções, greves ou manifestações, porque todas as pessoas estão extremamente satisfeitas com sua situação atual, qualquer que seja. A visão de futuro de Huxley é muito mais perturbadora do que a de George Orwell em 1984. O mundo de Huxley parece monstruoso para a maioria dos leitores, mas é difícil explicar por quê. Todo mundo está feliz o tempo todo - o que poderia haver de errado nisso?". pp.400-1. Em 07.03.2021.
PS. Do livro Laranja mecânica, de Antony Burgess. Do prefácio de Fábio Fernandes. A trindade distópica: "Laranja mecânica faz parte de uma trindade distópica que coroa a ficção científica do século XX. O livro de Burgess divide com 1984, de George Orwell, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (ambos britânicos e pouco mais velhos que ele) a honra de criar um dos cenários mais apocalípticos da literatura de todos os tempos.
Entretanto Laranja mecânica tem duas características que tornam sua narrativa mais rica e complexa: a primeira é que, embora ambientada numa Inglaterra futurista inexistente, seus elementos de extrapolação são mais próximos do mundo real do que as visões de Orwell (um mundo inteiramente dominado pelo comunismo totalitário de linha stalinista) e Huxley (uma sociedade perfeitamente rica e feliz mantida à base de manipulação genética e drogas, mas que exclui e condena à miséria quem não se adapta ao sistema). Ao extrapolar elementos específicos da sociedade penitenciária como gangues e o sistema penitenciário em vez de propor uma alteração completa na sociedade, Burgess torna o universo de Laranja mecânica mais reconhecível para o leitor - e mais próximo da realidade. Afinal, a violência está cada vez mais próxima de nós no cotidiano" (Pagina X). Em. 26. 12.2024.
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