domingo, 30 de maio de 2021

Servidão Humana. Somerset Maugham.

Entusiasmado com a leitura de O Fio da Navalha, de imediato emendei com a leitura de Servidão Humana, livros do escritor francês/inglês Somerset Maugham. Não consigo conter meu entusiasmo diante deste escritor, especialmente, pela sua qualidade de narrador. Maugham nasceu em 1874, em Paris e morreu em Nice, em 1965. O Fio da Navalha é do ano de 1944 e Servidão Humana, de 1946. Os dois livros são bastante autobiográficos.

Servidão Humana. Coleção: Imortais da Literatura Universal. Abril. 1971. Tradução: António Barata.

Maugham ficou órfão de pai e de mãe muito cedo e a sua educação foi confiada a um tio, que seguia a carreira religiosa. A exemplo do pai, Somerset também se tornou médico, mas não seguiu a carreira, dedicando-se integralmente à literatura. Philip Carey, o personagem principal de Servidão Humana, também muito cedo se tornou órfão de pai e de mãe e a sua educação foi confiada ao seu tio, que respondia pelo vicariato de Blackstable. Philip, por intercessão de sua tia, consegue fazer estudos de alemão em Heidelberg, voltando depois para a Inglaterra e, mais uma vez, por intermédio da tia bondosa e compreensiva, consegue ir a Paris para se dedicar à pintura, depois de uma passagem por estudos de contabilidade. Dois anos após, sente-se um fracassado e retorna para a casa dos tios.

Preocupado com os rumos de sua vida, resolve seguir os passos de seu pai e se dedicar ao curso de medicina. Quando se formou e se encaminhou profissionalmente termina a narrativa do romance. Em síntese, este é o enredo deste romance de 122 pequenos capítulos, que ocupam 563 páginas de letra miudinha, de Servidão Humana, da coleção Os Imortais da literatura Universal, da  qual ocupa o volume de número 19. A sua leitura me ocupou por mais de uma semana. É fácil perceber que se trata de um romance de formação. E é nisso que está todo o seu valor.

Cada diferente personagem é um novo mundo que se descortina. O tio e a tia Carey. Ele, em contradição com a sua vida de pregação e a tia cheia de dedicação, bondade e generosidade. Os amigos estudantes, cada um com a diversidade de seus mundos e interesses. Os estudantes de pintura de Paris e os de medicina de Londres. A simplicidade da família Athelny, que o cativam profundamente, a sabedoria de Cronshaw, que se deixa consumir em sua sabedoria e pela bebida. Mas tem também Mildred, a personagem mais emblemática e perversa do romance, por quem Philiph arde em incompreensíveis paixões, que tantos sofrimentos lhe causam. Sally, a filha dos Athelny, merece uma atenção toda especial. Além disso muitos projetos de vida e interrogações em torno da mesma. A busca pelo sentido da vida está sempre presente na obra do escritor.

Esta é a história, junto com outros personagens que vão se cruzando na vida do jovem, perdido em suas buscas. Mildred é uma personagem feminina de Maugham. Sobre elas lemos, na biografia que acompanha a coleção: "As personagens femininas, de modo geral cruéis e interesseiras, na maioria das vezes nutrem profundo desprezo pelos homens que as amam e se comprazem em vê-los degradar-se". E como Mildred é perversa. A paixão incontida de Philiph por essa megera, para dizer pouco, é irritante. E lá está ele, novamente a acudi-la, de novo e mais uma vez.

O livro de biografias, ao se deter na análise de Servidão Humana, traça o seguinte perfil de Philip: "...Philip, que recusara Deus por não lhe haver curado o pé, despreza as explicações religiosas e prefere ver na vida apenas um sentido estético. Compara-a a um tapete persa: 'Assim como o tecelão elabora o tapete sem outro cuidado senão o prazer estético, um homem pode viver a sua vida... Nada impede que se considere a vida como um desenho', composto de 'acontecimentos, ideias'. Nessa elaboração, pouca importância tem a dor ou a felicidade, simples detalhes do desenho final'. Ao morrer, cada homem deixará a sua trama, e ela sempre será pessoal e bela, mesmo que ninguém venha a conhecê-la". Mas haja sofrimento, penúria e servidão. O que seria a tal da servidão humana?

Ele lida muito com a falta de dinheiro e conhece bem os estragos por ele provocados. No livro encontramos passagens que refletem bem a questão, como esta: "(Philip) Achava delicioso ter o coração livre e o bolso suficientemente cheio para prover às suas necessidades. Ouvira outros falar com desprezo do dinheiro. Teriam experimentado um dia viver sem ele? Sabia que a falta de dinheiro torna o homem mesquinho, vil e avarento; deforma-lhe o caráter e o faz olhar o mundo por um prisma vulgar. Quando se tem de levar em conta cada vintém, o dinheiro assume uma importância grotesca. É preciso que estejamos numa situação desafogada para atribuir-lhe o seu valor real" (Página 531).

No livro de biografias encontramos a descrição de sua relação com o tio, responsável por sua educação, baseada nos relatos de Servidão Humana. O tio Henry Carey é descrito como "um homem sumamente egoísta, mesquinho e provinciano. A casa do pastor era severa e fria, ausente de crianças, cheia de livros e quadros religiosos. A noção de pecado era recordada a cada instante, o menino vivia em sobressalto. Tia Sofia, uma aristocrata alemã, procurava atenuar a dureza do marido e compensar a ausência dos pais no coração do sobrinho, apesar de sua sincera afeição".

Interessante também é observar um pequeno defeito no pé (Talipes ou pé torto), que o personagem Philip carregava. Era uma fonte permanente de preconceitos e até de xingamentos de "seu aleijão". Um dos mais belos capítulos do livro é o de número 113, onde Philip, fazendo seus últimos estágios para a sua formação em medicina, entra diretamente em contato com a realidade econômica e social do povo, dependente dos serviços médicos de um obstetra. Realiza 63 partos, geralmente de crianças indesejadas, vindas ao mundo, acompanhadas pelo desespero dos pais.

Por tratar-se de um romance de formação, separei duas passagens para posts especiais. Eu os qualificaria como textos retirados da literatura para aulas de filosofia. O primeiro é quando vai para Heidelberb, e um novo mundo de relações lhe amplia a visão de mundo e promove a sua ruptura com a religião herdada e o segundo, quando já está em Paris, e lhe são lançadas as questões fundamentais perante a vida. E uma recomendação final. Leiam e recomendem William Somerset Maugham.

4 comentários:

  1. Bela resenha, como escrevi por ocasião de sua análise de O Fio da Navalha, W. S. Maughan foi um dos meus autores favoritos na adolescência. Talvez, como disseste, por serem obras de formação. Mas o sofrimento de Philip, o desprezo que recebia de Mildred, marcaram minha imaginação Por muito tempo. É gratificante encontrar essas crônicas no seu blog. Obrigada.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mais uma vez, Suzete, os meus agradecimentos por sua manifestação. São estímulos para dar continuidade ao partilhar de minhas leituras. Que relação louca é esta de Philip com a Mildred. Chega até ser irritante. Mas, dos seres humanos eu não duvido absolutamente nada. Amanhã começo a publicar os textos de literatura para aulas de filosofia, que retirei da obra.

      Excluir
  2. tenho este livro, acho maravilhoso o desenvolvimento do personagem, tao real, uma raridade alguem saber escreve assim, pena nao termos mais escritores como William Somerset Maugham., recomendo A leste do Eden de Steinbeck

    ResponderExcluir
  3. Realmente, meu amigo, um grande escritor e que construção dos personagens! Agradeço muito a sua manifestação. Quanto a sua indicação, está anotada. De Steinbeck já li As vinhas da ira, um dos melhores livros que eu já li. Agradeço a indicação.

    ResponderExcluir

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.