terça-feira, 11 de maio de 2021

Vita Brevis. A carta de Flória Emília para Aurélio Agostinho. Jostein Gaarder.

Creio que todas a pessoas, que minimamente conhecem a formação da cultura ocidental, concordam que um dos livros mais importantes em sua gênese é  Confissões, o livro de memórias de Santo Agostinho, o Aurélio Agostinho (354-430), bispo de Hipona, no norte da África, atual Argélia. O livro é autobiográfico, um relato de sua vida até os anos de sua conversão por influência de Santa Mônica, sua mãe. Pelas Confissões, o convertido lamenta o seu passado de volúpia e concupiscência da carne, pois vivera em concubinato com uma mulher, da qual tivera um filho, de nome Adeodato, dádiva de Deus.

Confissões, como vimos, é um dos mais influentes livros na formação da cultura ocidental. Ele representa uma transição da cultura clássica (especialmente Platão) para o cristianismo, que busca se transformar em uma religião universal. Assim ele é um dos livros mais impactantes de todos os tempos e se transformou num livro de leitura obrigatória. Se Confissões tem toda essa importância, imagina então, a sua primeira contestação, que Agostinho teria recebido ainda em vida. Esta contestação é Vita brevis - a carta de Flória Emília para Aurélio Agostinho, um manuscrito, conta Jostein Gaarder, o famoso autor de O mundo de Sofia, do qual ele teria encontrado uma cópia num sebo da cidade de Buenos Aires, onde havia participado de uma Feira de Livro.

Vita Brevis. Jostein Gaarder. Companhia das Letras. 2003. Tradução: Pedro Maia Soares.


No prefácio do livro de Gaarder está a história do encontro da cópia deste manuscrito e de sua compra e as possíveis hipóteses sobre a existência do original e da cópia, cópia esta, datada do final do século XVI. Gaarder ainda relata que levou esta cópia ao Vaticano, que veementemente negou a sua existência. O livro de Jostein Gaarder é a transcrição desta carta que Flória, a concubina de Aurel, a ele escreve. O livro de Gaarder data do ano de 1996.

A carta, de dez capítulos, teria consumido quase todas as economias de Flória, na compra dos pergaminhos. A carta é belíssima, profundamente humana e reflexiva. Reflexões sobre a religião, a qual Agostinho se convertera, mudando completamente os rumos de sua vida, que antes compartilhava com Floria. Depois de sua conversão, abomina esta vida, passando a considerar o próprio filho Adeodato como um "fruto do pecado", da lascívia de sua paixões. Transcrevo a orelha do livro para dele dar uma visão sem a minha interferência. Depois destaco algumas passagens que sublinhei ao longo da leitura.

"O Aurélio Agostinho do título deste livro é nada mais, nada menos que Santo Agostinho, um dos pilares do pensamento cristão e da Igreja católica. Em suas famosas Confissões, Agostinho relata a própria trajetória atormentada de jovem inquieto, amante dos prazeres sensuais, até a conversão plena ao cristianismo, que para ele significou renunciar totalmente aos bens terrenos e às paixões do mundo e levar uma vida de rigorosa continência sexual. Entre as coisas (? - interrogação minha) a que renuncia, está a mulher que foi sua concubina durante doze anos (era costume na época os homens terem concubinas antes de casar), a quem se diz afeiçoadíssimo e com quem teve um filho aos vinte anos. Apesar dessa longa convivência e dos protestos de amor, ela não merece mais que duas frases das caudalosas confissões e nem mesmo tem seu nome mencionado.

É do teor desse parágrafo que parte Gaarder, recriando aqui a história desse amor interrompido sob o pretexto de que Agostinho iria casar com menina nobre, cuja família exigia o fim da relação. Mas o ponto de vista que o autor adota é o da mulher abandonada, questionando severamente o comportamento e as ideias de Agostinho. Aquilo que para o futuro santo é busca de salvação da alma, libertação dos baixos instintos e aproximação de Deus, para ela representa traição, negação da mais alta forma de amor, desrespeito pela pessoa humana, afastamento de Deus. Influenciado pelo neoplatonismo, Agostinho aceita uma divisão radical entre corpo - fonte dos pecados - e alma - espiritualidade pura -, enquanto Flória Emília defende o espírito encarnado e a dignidade do corpo, também criação divina.

Escrito na forma de longa carta, o texto que Gaarder atribui à concubina de Agostinho mescla os sentimentos mais pungentes à reflexão madura, a linguagem coloquial e afetiva à erudição refinada, tal como fez o próprio Agostinho, mestre do virtuosismo literário, que combinava em seus textos o estilo elevado clássico com o sermo humilis, o estilo simples da cristandade".

Na contracapa o texto é mais incisivo: "Flória Emília amou profundamente Aurel, entregando-se a ele  e aos prazeres sensuais em que ele era mestre. Foi sua companheira fiel nas horas difíceis e dele gerou um filho. Doze anos coabitou com ele, embora pertencesse a uma casta inferior e, por isso, fosse malvista pela família de Aurel, sobretudo por sua mãe. Então, foi abandonada, expulsa de repente, sem nem poder dizer adeus ao amado filho, que nunca mais veria. Mesmo assim, jurou fidelidade eterna a Aurel, a ele que se tornaria exemplo cristão, bispo de Hipona, Padre da Igreja católica, e por fim santo. Santo Agostinho. E agora, Flória Emília escreve-lhe esta carta".

Que forma criativa de escrever um livro. O leitor fica na dúvida - se o que está lendo é realmente obra de Flória ou do sábio narrador. Destaco três passagens do último capítulo, que considero absolutamente relevantes. São falas de Flória: "Deixaste de amar, Aurel. Assim como deixaste de apreciar a comida, de cheirar as flores,  [...] Oxalá tais atrativos não me acorrentem a alma. Que ela seja somente possuída por aquele Deus que criou essas coisas tão boas".

Vamos a segunda. Nela Flória pede uma volta: "Acho que deves estar exausto depois de tudo o que passaste, realmente exaurido, nem escondes isso. Se pudesses  ao menos me dar agora - e, portanto, ao mundo físico - umas poucas horas a mais de tua vida na terra. Vai para a rua, Aurel! Sai e deita-te sob a figueira. Abre teus sentidos, nem que seja pela última vez. Por mim, Aurel, e por tudo o que demos um ao outro. Aspira o ar, escuta o canto dos pássaros, olha para a abóbada celeste e chama todos os odores para ti. É isso que é o mundo, Aurel, e está aqui agora. Aqui agora. Estiveste no labirinto dos teólogos e dos platônicos. Mas não mais, agora voltaste para o mundo, para nosso lar humano".

A terceira é uma grave advertência. Envolve a questão da mulher: "Sou assediada pelo medo, Aurel. Tenho medo daquilo que os homens da Igreja possam um dia fazer a mulheres como eu. Não apenas porque somos mulheres - pois Deus criou-nos mulheres. Mas porque tentamos a vocês, que são homens - pois Deus criou-os homens. Achas que Deus ama os eunucos e castrados acima daqueles homens que amam uma mulher. Então cuida como louvas a obra de Deus, pois ele não criou o homem para se castrar".

Na questão referente a mulheres, no que diz respeito à igualdade, Agostinho não é nenhum exemplo. Pelo contrário, certamente, tem forte influência no machismo que impera na cultura ocidental. No livro IX, 9, sob o título Mônica - esposa modelar, Agostinho fala do padrão de esposa, sobre a sua submissão ao marido. Deve ser submissa, conformada e tudo suportar. Vejamos um post específico sobre o tema: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/07/confissoes-livro-ix-9-monica-esposa.html.

De Agostinho também trago na memória uma oração sua, contida nas Confissões, Livro IX, 10, oração essa, que Flória também lhe lembra. Ela diz assim: "Dá-me a castidade e a continência, mas que não seja para já".  Enfim, um livro maravilhoso, escrito com muita humanidade e bons sentimentos. E, pela importância que o santo exerce na formação da cultura ocidental, esta leitura como uma crítica, se torna leitura absolutamente imprescindível. Um grande livro.

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