terça-feira, 1 de dezembro de 2020

O Ingênuo. Voltaire.

Voltaire tem uma forma muito peculiar de dizer as suas "verdades". Para isso ele usa do conto e um conto que tem muita ironia, sátira e linguagem figurativa e invertida. Nem tão pouco - falta a mordacidade e o sarcasmo. É o que encontramos em O Ingênuo, o seu conto datado do ano de 1767. Já anteriormente publicara Cândido ou o Otimismo, (1759), com a mesma tonalidade. Voltaire viveu entre os anos de 1694 e 1778. Segue o Link de Cândido ou Otimismo. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/11/candido-ou-o-otimismo-voltaire.html

O Ingênuo. Editora Escala. Tradução de Antonio Geraldo da Silva.

O Ingênuo é um huron, um povo indígena da América do Norte. Ele é encontrado pela família Kerkabon, que tem em seu meio um padre, que é o prior de Nossa Senhora da Montanha. Parte da família havia migrado anteriormente para o Canadá. O huron é portador de dois pequenos retratos, nos quais são reconhecidos os parentes migrantes. O huron recebera os retratos de seu irmão, que combatera os franceses no Canadá. No huron eles observam traços de barba, um indicador de que não é um índio puro. Ele tem mestiçagem. Observando melhor os retratos, reconhecem os traços familiares e descobrem na figura do índio, um sobrinho.

Assim começam as aventuras do huron, de nome Ingênuo, no continente europeu. Admirados de ele não ser católico, o preparam para o batismo, ensinando-lhe a bíblia. No batizado recebe o sugestivo nome de Hércules, em alusão a um cidadão que transformou, numa única noite, cinquenta meninas em mulheres. A senhorita de Saint Yves, que pertence a família, se apaixona por ele e é plenamente correspondida. Ela é de beleza ímpar, o que lhe faz ter pretendentes bem influentes. É aí que começam as desgraças dos dois.

O huron se vê envolvido num combate com os ingleses e se mostra valente combatente e é enviado para a corte de Luís XIV, para receber honrarias. Na verdade lhe prepararam uma cilada, para afastá-lo da senhorita Saint Yves. É preso junto com um jansenista de nome Gordon, com quem troca confidências, passando por um enorme e rápido aprendizado. Gordon era um sábio. Voltaire apresenta as razões para o rápido aprendizado do Ingênuo:

"Esse rápido desenvolvimento de seu espírito era devido à sua educação selvagem, bem como a têmpera de sua alma, pois, nada tendo aprendido na infância, não havia aprendido preconceitos. Seu entendimento, não tendo sido curvado pelo erro, permanecera em sua retidão. Via as coisas como são, ao passo que as ideias que nos inculcam na infância fazem com que as vejamos, durante toda a vida, como não são". Que frase fantástica. O Ingênuo não fora contaminado pela escola.

O pequeno conto, de apenas vinte pequenos capítulos, também pode ser lido como uma tragédia, especialmente, a partir do momento em que entram em cena os padres jesuítas e, de modo todo particular, aqueles que são confessores do rei e dos ministros. O rei é nada mais - nada menos - do que  o poderoso Luís LIV. Por isso mesmo, vários capítulos se desenvolvem, ora em Paris, ora em Versalhes. Um dos padres mais influentes, o padre Saint Pouange cobra alto preço para a libertação do amado da senhorita Saint Yves, o que a torna extremamente infeliz e a leva até a morte. "Ela sucumbe por virtude", nos conta Voltaire.

O conto/tragédia termina com o adoecimento da bela jovem, cujo corpo foi consumido pela sua grande alma. O Ingênuo se transformou num bom oficial, mas o tempo que tudo apaga, não foi capaz de apagar as dores do pobre e infeliz Ingênuo. Até o influente padre Saint Pouange se arrependeu de suas patifarias. Vejamos ainda, a referência relativa ao conto na contracapa do livro:

"O Ingênuo segue, aproximadamente, a mesma linha de pensamento (de Cândido), embora se calque na onda do indianismo que se propagou na França do século XVIII. Voltaire ressalta a pureza de princípios dos índios americanos, contrapondo-os às ridículas e desgastadas convenções sociais e políticas da Europa da época". Assim, o Ingênuo huron, corresponderia ao "bom selvagem" de Rousseau. Efetivamente, um enorme choque cultural.

Adendo - 02.12.2020. Voltaire, apesar de ter sido demonizado pelos apologistas católicos, era um pensador moderado, um polemista divertido e sagaz, uma alma religiosa, embora idiossincrática, que se confessou a um padre em seu leito de morte e se permitiu receber a extrema-unção. Mas ele percebeu, com muita clareza, que as funções do Estado tinham de ser desvencilhadas das funções da religião. Abominou, com razão, o fanatismo e obscurantismo do clero, quer católico, quer luterano, reformado ou anglicano, e achava repelentes as práticas "cristãs" comuns da tortura, enforcamento, decapitação e incineração contra aqueles acusados de impiedade. De modo radical, ele e os companheiros filósofos  de seu círculo acreditavam que todos os homens eram iguais perante Deus e deveriam ser iguais perante a lei. Para Voltaire, essa não era, em si, uma proposta antimonarquista; não tinha nenhum motivo de queixa contra a realeza como tal. Porém foi logo seguido por homens (e mulheres) menos moderados que impeliram suas especulações entusiasmadas - e best sellings - a conclusões mais revolucionárias..

Isso não quer dizer que somente Voltaire e seus amigos defendessem a bandeira da inteligência e justiça, enquanto todo o sistema político-religioso da Europa enfileirava-se contra eles. As ideias dos filósofos logo afetaram o ar que todos respiravam". Era a força do Iluminismo ou do Esclarecimento. CAHIL, Thomas. Papa João XXIII. Rio de Janeiro. Objetiva 2002. Páginas 80-81.

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