quarta-feira, 8 de maio de 2024

É Érico Veríssimo um escritor erótico ou pornográfico? Uma autodefinição.

No Solo de clarineta, vol. I., na apresentação do livro, José Otávio Bertasso, diretor da Editora Globo de Porto Alegre, levanta a polêmica entre o Ginásio Anchieta e Érico Veríssimo. O padre L. F. (Leonardo Fritzen) ataca o escritor: "...Pouco valem as leis de higiene se o veneno que corrompe a nossa juventude continua exposto nas vitrines". No texto do jesuíta, a pureza de São Luís Gonzaga era invocada (páginas 9 a 14).


Solo de clarineta - memórias. Érico Veríssimo. Companhia das Letras.

Lembremos que a vontade de destruição de livros, e em épocas mais exaltadas, também os seus autores não é nenhuma novidade. Ah, os safados guardiões da moralidade. Jeferson Tenório, de O avesso da pele, apenas para citar o caso mais recente, que nos conte. Não, me desculpem. Existe algo mais atual. Agora, em meados de abril de 2024, a prefeita de Canoinhas, SC., Juliana Maciel, jogou no lixo dois livros da biblioteca do município, dizendo tratar-se de porcaria. Ao mesmo tempo instigou a outros prefeitos a fazerem o mesmo. Entre os livros, estava As melhores do analista de Bagé, do Luís Fernando Veríssimo. Poucos dias depois, a prefeita se encontrou com Bolsonaro, que sempre afirmou o seu gosto pelo livro de Brilhante Ustra. Creio que muitos dos prefeitos não poderão atender ao pedido da prefeita. Estão presos por corrupção. Dezoito no total, me diz a página do Google. Parece que já são 22. O número também parece significativo, pelo seu simbolismo.


Pois bem, na parte final de O solo de clarineta, em - O escritor e o espelho - Érico Veríssimo fala sobre os temas afeitos a vida de um escritor. Pela beleza dessas reflexões peço especial licença para apresentá-las. Entre os temas está o da sexualidade, erotismo e "palavras feias".

"Confesso que sinto uma sadia, cordial inveja dos escritores que têm uma real, autêntica intimidade com a terra, as árvores, os ventos, os bichos e principalmente com as criaturas humanas que também estão perto das raízes profundas da vida. Às vezes chego a pensar - por mais ridícula que a imagem possa parecer - que sou uma planta do asfalto, mas planta de papel...

Em geral, quando termino um livro, encontro-me numa confusão de sentimentos, num misto de alegria, alívio e essa vaga tristeza que vem após o ato do amor físico, satisfeita a carne. Relendo a obra mais tarde, quase sempre penso assim: 'Não era bem isso que eu queria fazer'.

Chegamos assim a um assunto que eu gostaria de discutir com mais vagar. Sou habitualmente apontado como um escritor erótico ou mesmo pornográfico.

Por que - perguntam-me às vezes - tenho tanta preocupação com o sexo? Ora, respondo, decerto é porque no fundo sou um puritano. Mora dentro de mim um pastor protestante a pregar interminavelmente um sermão apolíptico contra o pecado da carne, e eu não posso consentir que esse homenzinho emascule as minhas personagens ou a mim mesmo.

Por outro lado quero contribuir para que o problema do sexo seja examinado com mais coragem, honestidade, espírito adulto e... saúde. Muitas vezes fico alarmado ao pensar que, relativamente falando, um leitor sente menos indignação ao tomar conhecimento do assassínio de 6 milhões de judeus nas câmaras de gás asfixiante dos campos de concentração nazistas, ou do lançamento da bomba atômica em Hiroshima que redundou na morte de mais de 100 mil pessoas, ou ainda ao saber que mais de dois terços da população do Brasil vive numa miséria abjeta - do que quando lê num romance uma cena erótica descrita com clara franqueza.  O que quero dizer é que noto uma desproporção absurda, direi mesmo monstruosa, entre a natureza e a intensidade desses dois tipos de indignação.

Falando com a maior sinceridade, para mim pornografia mesmo é a crueldade do homem para com seu semelhante, a exploração do homem pelo homem; obscenidade é a guerra e o genocídio. Os mocambos do Recife, as favelas do Rio e de outras centenas de cidades da nossa terra constituem as mais indecentes e repulsivas páginas e cenas da vida brasileira.

Acho que os verdadeiros pornógrafos da história - já que uma pessoa realmente adulta só poderá sorrir das grotescas fantasias do Marquês de Sade - foram homens como Tamerlão, Nero, Calígula, Mussolini, Hitler - para mencionar apenas os primeiros nomes que me brotam na mente.

Quanto a questão dos 'nomes feios', creio que não existe nada mais ridículo que esse supersticioso temor a certos vocábulos que, afinal de contas, não passam de sinais ou símbolos convencionais. Tomemos por exemplo a famosa palavra de quatro letras que designa a mais antiga das profissões. Conta-se que Rui Barbosa descobriu dezenas de sinônimos, entre os perfeitos e os imperfeitos, para o termo prostituta, de maneira que não temos nenhuma desculpa quando usamos a palavrinha tabu. No entanto em toda essa história o que importa mesmo, o realmente deplorável e melancólico, é a experiência da prostituição, o que não parece preocupar muito as pessoas mais sensíveis às palavras do que às coisas que elas representam.

Isso nos dá uma ideia da terrível importância da linguagem. Vivemos tolas e terríveis ilusões semânticas. Por causa de palavras ou frases matamos ou morremos, sentimo-nos desgraçados ou infernizamos a vida de nossos semelhantes. Qualquer ato ou fato, por mais reprovável que seja, de acordo com paradigmas morais rígidos, perde a sua força, a sua natureza pecaminosa, e tende a ser ignorado ou esquecido quando não verbalizado, principalmente em romances. Fazer, pois, não é tão importante, tão grave, quanto dizer ou escrever. Quantas vezes transferimos a culpa duma situação vergonhosa - que na realidade cabe a um regime político-econômico ou a uma conjuntura social - para cima dos ombros do jornalista ou do ficcionista que ousou reproduzi-la numa reportagem ou num romance?

E é exatamente por causa da exagerada importância que damos às palavras que nós muitas vezes resolvemos nossos problemas apenas no papel, isto é, de maneira verbal, e vamos dormir tranquilos. Porque, se ninguém jamais pronunciar ou escrever a palavra puta (desculpem, que se me escapou o 'nome feio'!), a prostituição deixará de ter existência real" (Páginas 259-261).

Deixo a resenha deste segundo volume de Solo de clarineta:


E também a resenha dos sete volumes de O tempo e o vento:




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