quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

As duas guerras de VLADO HERZOG. Audálio Dantas.

Raramente vejo televisão. Também tenho por hábito, antes de dormir, dar uma zapeada pelos canais. Foi numa dessas zapeadas que parei na TV Cultura, no programa Roda Viva. Tratava-se de um programa especial para lembrar os 40 anos da morte de Vladimir Herzog, morto nos porões do DOI-Codi paulista, no dia 25 de outubro de 1975, no governo do general Ernesto Geisel. O entrevistado era o jornalista Audálio Dantas, que era o presidente do sindicato dos jornalistas do estado de São Paulo na época. Todos os entrevistadores viveram aqueles dias de ira. Todos, de uma forma ou de outra, testemunharam os horrores daquele tempo.
Um livro de memória e de formação.

Logo percebi a dimensão do programa e, no dia seguinte, o assisti na íntegra pela internet. Também verifiquei se o seu livro As duas guerras de VLADO HERZOG - Da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil, ainda estava em circulação e o encontrei na livraria do Folha. Ele foi publicado em 2005. É um depoimento muito significativo, uma vez que Audálio Dantas, então presidente do sindicato dos jornalistas de São Paulo, atuou com extrema coragem à frente do sindicato, denunciando a tortura até a morte do jornalista e ajudando a organizar e presidir atos em homenagem e denunciando a farsa da versão oficial da ditadura de que Vlado havia se suicidado. Os fatos são hoje reconhecidos como o início do enfrentamento ao poder ditatorial.

Apesar do título evidenciar os dois momentos da vida do jornalista, apenas o primeiro capítulo, de um total de 34, descreve a rota de fuga do menino e de seus familiares da perseguição nazista. A rota de fuga foi, da então Iugoslávia para a Itália, pelo mar Adriático. Ao final da guerra escolheram como destino o Brasil, chegando ao Rio de Janeiro e se estabelecendo em São Paulo, onde fez os seus estudos, dedicando-se a duas atividades mais ao seu gosto: o jornalismo e o cinema. Trabalhou na BBC, em Londres e, de volta ao Brasil, foi trabalhar na TV Cultura, sendo governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins e o notável José Mindlin o diretor da Fundação Padre Anchieta. O ano da volta, 1968, o ano do AI-5. Também trabalhou na revista Visão.
A foto símbolo da tortura  e de assassinatos durante a ditadura militar.

O grande azar de Vlado foi ter vivido em tempos de uma surda guerra intestina na ditadura militar. De um lado o general Geisel, em dupla com o general Golbery anunciavam uma abertura lenta, gradual e segura. Já em São Paulo, outra dupla articulava um novo golpe dentro do golpe, sob o comando dos generais Sílvio Frota e Ednardo d'Ávila Mello, os chamados indonésios. As vítimas da extrema direita, após a liquidação da luta armada, eram agora os militantes do PCB, que militavam em bom número nos meios de comunicação de massa. Herzog chegou a se filiar ao partido, mas sem militância ou organicidade no partido.

Vlado chegou a negociar a sua ida ao DOI-Codi, se apresentando no dia 25 de outubro, pela manhã, para não ser preso na véspera. Não tentou a fuga por absoluta convicção de sua inocência. Morreu naquele mesmo dia, sendo torturado até a morte. Depois inventaram a farsa do suicídio. É nessa parte que está o objetivo central do livro que é a ação do sindicato, em enfrentar a situação e por um basta nas torturas e assassinatos.
A última foto de Vlado em vida, 33 dias antes de seu assassinato.

A narrativa passa pelo velório e enterro de Vlado no hospital Albert Eistein e no cemitério israelita, com o agravante das contradições entre as tradições judaicas e a pressa dos militares extremistas. A condição de suicida só permitiria enterro em lugar isolado no cemitério. Também entre a comunidade judaica houve problemas. A ala conservadora, aliada dos militares e atuação do rabino Henry Sobel, que não concordava com a versão do suicídio. Sobel teve atitudes extremamente corajosas, que lhe deram ascendência na comunidade e o reconhecimento do Brasil democrático.

O clima era de muita tensão e o sindicato viveu como que em assembleia permanente. O que fazer? Os já raivosos militares ficariam ensandecidos diante de qualquer provocação. Manifestos, versões, construção e desconstrução foram os embates destes difíceis dias. O maior e mais decisivo ato aconteceria no dia 31 de outubro, quando ocorreu o ato ecumênico para homenagear o assassinado, na catedral da Sé. Foi montada a operação, observem o nome, Gutenberg, que isolou a Sé e infiltrou agentes entre os participantes do ato. Tudo terminou bem. Temia-se uma manifestação mais ruidosa, especialmente por parte dos indignados estudantes.

Quando tudo indicava que o grupo de Geisel/Golbery conseguira dominar os extremistas, ocorre nova morte no DOI-Codi, desta vez do operário metalúrgico Manoel Fiel Filho. Este assassinato, no entanto, não teve a mesma repercussão. Esta tal da divisão social do trabalho! As intervenções de Geisel afastando os extremistas conteve as ações de um novo golpe dentro do golpe e o programa de abertura foi se estabelecendo, na mesma medida em que o povo já não mais suportava os atos da ditadura, através de crescentes manifestações.
O ato ecumênico da Sé. O povo enfrenta a ditadura.


O penúltimo capítulo do livro é muito bonito. Clarice, a esposa de Herzog consegue a condenação da União pelo crime de assassinato de Vladimir Herzog. A versão do suicídio estava definitivamente desmontada. Juridicamente isso foi uma batalha, com a aposentadoria compulsória de um juiz que completaria 70 anos e a coragem de um menino novo, que estivera timidamente presente no ato ecumênico da Sé e que depois virou juiz. O livro termina com cinco depoimentos magistrais, colhidos em 2005, por ocasião da escrita do livro. Um deles é o do Dr. Márcio José de Moraes, o juiz em início de carreira, que condenou a União, em plena vigência do AI-5. Os outros depoimentos são de Clarice Herzog, de D. Paulo Evaristo Arns, de Henry Sobel e José Mindlin. Lembrando que o ato ecumênico da Sé foi presidido por D. Paulo Evaristo Arns, Henry Sobel e pelo pastor James Wright. O ato também contou com a presença de D. Hélder Câmara.

Pela beleza do depoimento do Dr. Márcio, vou fazer um post especial para mostrar o seu ato digno e corajoso, que inclusive poderia prejudicar a sua carreira. Não hesitou e a sua atitude em muito contribuiu para que o país voltasse para a normalidade democrática e para o mínimo de respeito aos direitos humanos. Um livro maravilhoso, com um valioso encarte de fotografias. Um livro de memória e de formação.


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