sexta-feira, 23 de novembro de 2018

O Idiota. Fiódor Dostoiévski.

Por uma série de razões, decidi e termino de ler a monumental obra O Idiota, de Dostoiévski. Não é uma tarefa fácil. Na versão lida, uma bela edição da Nova Fronteira, são 829 páginas, incluindo entre elas o fantástico prefácio, escrito em 1949, por Brito Broca. Vou recorrer bastante a ele nesta resenha. Não é o meu primeiro contato com o escritor. Em tempos remotos eu li Crime e castigo e em tempos um pouco menos remotos Os Irmãos Karamazóv. Mas li, sem uma maior contextualização, o que praticamente equivale a não ler. Irei retomá-los.

Recentemente li Almas Mortas (1842), de Gógol. Foi importante. Por ele entrei em contato com a eslavofilia, conceito importante para entender os escritores russos, de Puschkin a Dostoiévski, passando, obviamente, por Gógol. É impossível ler e compreender Dostoiévski e, especialmente, a O Idiota, sem levar este dado em consideração. Nesta resenha, vou levar menos em conta a trama condutora do enredo, para privilegiar a sua contextualização e a descrição da criação e do significado de uma apologia a um "idiota".
A edição da Nova Fronteira vem num box, acompanhado de outro livro, Memórias da casa dos mortos.


Primeiramente vamos ao autor, a Dostoiévski. Nasce em 1821 e morre em 1881. Pertence a uma família de nobres lituanos, decadentes. O avô fora sacerdote e o pai, um médico que trabalhou em um sanatório para pobres, em Moscou. Com o pai teve uma "relação freudiana", desejando inclusive, ardentemente, a sua morte. Mas quem haverá de morrer será a sua mãe. Essa orfandade o levará a um colégio militar, em regime de internato, em Petersburgo. Lá lê Byron, Vitor Hugo, Shakespeare, Cervantes e Homero. O desejo de morte do pai se efetiva por meio de um assassinato. A culpa o perseguirá e o atormentará. A sensibilidade dos românticos o levará a abraçar causas humanitárias e a envolvimentos políticos.

Em 1849 se vê diante de uma execução por condenação à pena de morte. Um clarim interrompe o cerimonial, para anunciar a comutação da pena, por um degredo perpétuo na Sibéria, onde permanecerá por longos dez anos. A pena de morte e, estar às vésperas da morte, serão temas que o acompanharão em sua literatura. Abandonará a escola do romantismo para abraçar "os grandes mistérios da existência; a investigação das mais complexas regiões da alma humana, sobretudo daqueles recantos sombrios e tortuosos por onde ronda ameaçador, o espectro da loucura; e o refortalecimento das qualidades essenciais de sua gente. Dostoiévski está à procura do homem bom - do Dom Quixote russo", lemos na página 160 do livro I, de biografias que acompanha a coleção Os Imortais da Literatura Universal. E é essa a essência de todo o grande escritor.

Doenças, dívidas e uma vida até, sob certo ponto de vista pregressa, acompanhará o escritor. Dívidas de jogo, cobranças de credores o levarão ao exterior, em fuga. Levará junto uma jovem, Polina Súslova, que será imortalizada como "a protagonista de O Jogador, a Agláia de O Idiota, a Lisa de Os Possessos e Catarina Ivânovna de Os Irmãos Karamázov", lemos no mesmo livro de biografias. Certamente que uma grande paixão acompanha o ser humano por uma vida inteira. Numa segunda espécie de fuga para a Europa, ele levará agora a estenógrafa, menina jovem, que o compreende e diante da qual constantemente se prostrará, em atitudes de arrependimento, para o qual nunca faltarão motivos. Creio ser também de extrema importância considerar que o escritor levou para a prisão, na Sibéria, um único livro, onipresente em sua literatura. O Evangelho. Outro dado biográfico significativo é o de sua doença. Constantemente era acometido de ataques epiléticos, sempre antecedidos de momentos de extrema lucidez, como ele mesmo nos conta ao longo de O Idiota.

Para melhor situar, especificamente O Idiota, vamos recorrer ao prefácio de Brito Broca. Dele elenquei cinco pontos de análise: o contexto histórico e pessoal da escrita da obra; a sua concepção, a concepção do personagem; o caráter autobiográfico e as pretensões e repercussões.

Vamos ao primeiro ponto. Em 1866 o autor termina de escrever Crime e Castigo. A sua saúde está precária, os ataques epiléticos se repetem e são, cada vez mais, mais intensos. Sofre de irritabilidade e hiperestesia (paroxismo da sensibilidade, tendente a transformar as sensações ordinárias em sensações dolorosas; acuidade anormal da sensibilidade a estímulos); credores à porta e intrigas familiares em função do seu segundo casamento. Se refugia na Europa, onde desperdiça todas as parcas economias no jogo. Recebe um adiantamento de Katkóv, o seu confiante editor. Inútil. O jogo consome também estes cem rublos. Tem também uma grande alegria, logo seguida de profunda tristeza. Nasce e morre Sônia. A memória de Sônia humanizará, até mesmo os seus piores personagens. Em 1867 inicia a obra. Em 1869 ela estará concluída.

Lamenta as condições sob as quais a escreveu e a sua satisfação/insatisfação com o resultado: "Pedem-me acabamento artístico, uma genuína expressão poética, sem o esforço tornar-se visível; lembram-me o exemplo de Tolstói e Gontchárov, mas não sabem as condições em que estou trabalhando" e "Apesar de tudo, gosto da minha ideia, mesmo tendo ficado aquém dela, na realização, lemos no prefácio.

Premido por dívidas e adiantamentos do editor ele precisa escrever. Precisa de público. Este é atraído pela complexidade do enredo e pelas particularidades do romance de folhetim. Petersburgo e a Rússia não lhe saem da cabeça. Em busca de um personagem, idealiza um jovem bom, idealista e totalmente voltado ao bem, o oposto de um idiota. O romance está sendo gestado. Lendo sobre a Rússia, especialmente, acompanhando as questões do judiciário, começa a idealizar famílias. A primeira é a de um militar decaído, um general, Ívolguin, afogado no álcool. Em seu entorno se forma um grupo de personagens. Outro general, casado com uma generala, as três filhas e os agregados formarão outro núcleo. Outros personagens fortes serão envolvidos. Nastássia Fillíppovna, e Rogójin, que formam o par, digamos, do mal, da degradação, da nova Rússia e de sua ocidentalização. E o príncipe, tão bom, que passa a ser tido como idiota.

O príncipe é idealizado, e estamos entrando no terceiro aspecto, como um Quixote - cristão e russo. A ele se acrescenta um Quixote inglês, o Pickwick de Charles Dickens. A estes, se somaria, ainda, Pangloss, o personagem do Cândido, de Voltaire. O príncipe seria então um "Quixote-Pickwick-Pangloss". O Idiota traduz a filiação de Dostoiévski ao eslavismo, ao eslavismo cristão: "O escritor meditava nessa época na corrupção política e espiritual do ocidente. Bem sabemos haver sido ele um dos mais altos representantes  da corrente eslavófila, formada pelos intelectuais que viam na Rússia uma predestinação especial e repeliam as influências europeias e ocidentais como desnaturadora da cultura que os russos deviam preservar para realizar no mundo o grande papel a que estavam votados", escreve Brito Broca, em seu prefácio. A este eslavismo se somaria o cristianismo, preservado em sua primitiva essência. O príncipe seria então uma espécie de mensageiro da função redentora, que os escritores russos deveriam portar. Este espírito de O Idiota perpassa praticamente toda a sua obra.

Outro elemento, o quarto, é a incorporação de sua biografia ao livro. O romance seria então um auto retrato idealizado do romancista. Um doente que busca a cura na Suíça e não a obtém. Preserva, no entanto, momentos de profunda lucidez e de absoluta pureza espiritual. Será um desambientado, motivo até de chacota das pessoas que o cercam. Os seus erros, assim como os do escritor, o fazem prostrar-se, expressando humildade e arrependimento. Por fim, o príncipe é uma espécie de São Francisco, retratando ainda a presença do Evangelho, com a presença, nos discursos e nos gestos, dos "pobres de espírito". Este "pobre de espírito", Míchkin. desfaz inúmeros liames do mal, mas que termina tombado ao lado de Rogójin, em sua morbidez doentia. Em suma, O príncipe remete o seu personagem ao próprio Jesus Cristo.

Quanto ao enredo, o jovem príncipe volta para a Rússia, depois de buscar a cura na Suíça. Se envolve com as famílias Ívolguin e Epantchin e com os amores de Nastássia Filíppovna e Agláia, a filha mais nova e mais bonita do general e da generala Epantchin. As duas mulheres são de um gênio! Grandes debates, ou seriam embates, entre os personagens são a grande força do romance. Mais as falas do príncipe, um idiota, mas príncipe. Ele tem poder de fala.

Destaquei muitas coisas. Da primeira parte anotei o capítulo 6 (112-124). Liév Nicolaévitch Míchkin, este é o nome completo do príncipe, está em tratamento na Suíça, se encanta e encontra momentos felizes, perdido entre as crianças de uma escola, que passam a amá-lo, enquanto devotam ódio ao professor. Neste mesmo capítulo insere uma história triste, de Marie, pela qual retrata a enorme maldade do mundo. É acusado de ser criança e é incompreendido por ser generoso e cortês. Está já delineada figura do idiota. Do capítulo 4, da segunda parte, destaquei a concepção religiosa do príncipe. Ele troca a sua cruz de estanho com Rogójin, que lhe dá a sua, de ouro. Na terceira parte, no capítulo 4, encontramos o tuberculoso Ippolít, se despedindo do mundo, em uma "explicação Indispensável". São reflexões diante da morte.

No capítulo 3 da quarta parte é mostrada a degradação do general Ívolguin e dos seus, quando pinça uma frase marcada pela generosidade e alta sensibilidade. "Para entender, urge ter coração". Mas o auge do livro está no capítulo 7 da quarta e última parte (731-752). Aí acontece o que era para ser o anúncio do noivado de Míchkin com Agláia. Acontece aí o discurso do príncipe apresentando as marcas da sua idiotia. Ele pronuncia o discurso da eslavofilia. Um "idiota", 26 anos, ingênuo e democrata. Dá uma extraordinária receita de felicidade. Derruba um precioso vaso chinês, da rica decoração da sala da generala, e é acometido de um ataque de epilepsia. Lembrando que estes momentos de lucidez que cega, sempre antecedia os seus ataques. Dou partes deste discurso e esta receita de felicidade, em post especial.

Por fim, apresento o link de um post de um amigo meu, que em artigo sob o título, de Petista Doente, faz uma aplicação genial do príncipe bondoso, generoso, democrata, doentio e idiota, ao atual momento trágico da brasileira. Este artigo também me impulsionou a ler, entender  e compreender a mensagem contida em O Idiota. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/04/petista-doente-sebastiao-donizete.html










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