quinta-feira, 16 de abril de 2020

Cartas a Cristina. Reflexões sobre minha vida e minha práxis. Paulo Freire.

A leitura é um mover-se constante. Uma vez iniciado o processo, ele não terá mais fim. A leitura puxa, necessariamente, por mais leituras. Assim, terminando de ler uma biografia de Paulo Freire, a de Sérgio Haddad, O educador - um perfil de Paulo Freire, fui levado a ler o seu livro de memórias Cartas a Cristina - reflexões sobre minha vida e minha práxis. Os livros de memórias exercem sobre mim um enorme fascínio. Elas são a reconstituição de uma vida, a busca pelos espaços, pelas fendas, por onde a possibilidade de constituição de um sujeito se tornaram possíveis. Deixo aqui o belo perfil traçado por Sérgio Haddad. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/03/o-educador-um-perfil-de-paulo-freire.html
O livro de memórias de Paulo Freire. A primeira edição é do ano de 1994.

Especialmente, a partir das curiosidades sobre a minha própria formação é que eu sou instigado a ler sobre os passos seguidos na formação dos outros, o que eles leram e quem os influenciou. Imagina então, quando este outro é simplesmente o "Patrono da Educação Brasileira" e um dos maiores intelectuais do mundo. Com relação a mim, sempre busco onde se localizaram os pequenos espaços, fendas, como referi acima, que permitiram não seguir uma vida pré determinada, uma vida quase que espontânea e naturalmente dada, sem a possibilidade da interferência de tomada consciente de posições. Pensar sobre essas questões, para mim é fascinante. A vida não pode ser um dado já dado.

Mas não me vejo só nas curiosidades relativas a Paulo Freire. Cristina, uma sobrinha sua, também as teve. Quando Paulo ainda se encontrava em Genebra, ela lhe escreve uma carta, solicitando ao tio que escrevesse sobre a trajetória percorrida, pela qual ele se tornou o grande educador que foi e é. A partir dessa provocação é que nasceu este belo livro. Provocação é uma palavra muito ao gosto de Paulo Freire. Ela vem de pro e vocare, isto é, chamar para. Foi o desafio lançado. A resposta veio por este livro de 415 páginas, escrito com o auxílio de Ana Maria Araújo Freire, na organização do livro e por  uma série de notas explicativas.

Embora eu não conheça bem a cidade de Recife, com Paulo andarilhei por suas ruas em busca das livrarias e me banhei no rio Duas Unas, em Jaboatão, espiando meninas a se banharem. Acompanhei a mudança da primeira para a segunda, num percurso traçado pela pobreza que quase beirou a indigência, não fosse a tenacidade de seu pai e a obstinação de sua mãe e a preservação de alguns símbolos de bem-estar. Com o pai, um policial militar, recebeu suas primeiras aulas de política, numa época propícia para o debate: a crise de 1929 e a Revolução de 1930. A situação se agravou com a doença e a morte do pai e a transformação de um salário em simples pensão.

O tempo foi resolvendo os problemas. Os irmãos mais velhos começaram a trabalhar e Paulo pode iniciar os seus estudos, que naquele tempo terminavam com o curso primário para a maioria do povo brasileiro. Na época, Jaboatão nem sequer escola secundária tinha. Sua mãe, em troca de muita aplicação do filho, consegue uma bolsa em um dos colégios da mais alta elite do Recife. O Colégio Oswaldo Cruz. A partir daí, o menino deslanchou. De aluno passou a professor do mesmo colégio, professor de português, donde lhe veio o gosto pelos estudos de linguística. Veio a Faculdade de Direito, o emprego no SESI, os círculos de cultura, a carreira universitária e uma vida de muitos estudos, de muita curiosidade epistemológica. Nesses anos de formação, em sua biblioteca, já catalogara mais de 600 livros estrangeiros. Paulo já lia o mundo. Entre seus estudos, sempre houve a predileção pela linguística, estudos que o levaram ao seu método de alfabetização. 

Já na qualidade de professor universitário veio a famosa experiência de Angicos. Ela é fruto de um convênio firmado entre o governo do Rio Grande do Norte e a Universidade do Recife. Um trabalho de extensão universitária, financiado, vejam a ironia, com o dinheiro da "Aliança para o Progresso". É desse tempo o seu trabalho de doutoramento envolvendo a questão da educação e da democracia. Esta tese está mais ou menos contida em seu primeiro livro Educação como prática da liberdade. É o tempo em que Paulo se aproximou dos pensadores do ISEB e, de uma maneira muito especial com um de seus pensadores, Álvaro Vieira Pinto.

A partir daí Paulo entra na segunda parte do livro, quando elenca os principais temas que o acompanharam em sua trajetória de educador. São reflexões bem aprofundadas que marcam a essência do grande e renomado educador. Paulo, ao longo do livro, procura dar destaque para a coerência entre a prática e a teoria, sempre mediada pela reflexão. É o subtítulo do livro: reflexões sobre minha vida e minha práxis. Num dos encontros sobre Paulo Freire dos quais eu participei, eu ganhei uma camiseta. Nela se lê: "É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática". Esta é a grande síntese do livro e também o seu objetivo fundamental. Outra síntese também poderia ser a ideia da infinita vocação e possibilidade do ser humano para o SER MAIS. No SESI Paulo exerceu também funções administrativas.

O livro se divide em duas partes e mais de cem páginas de notas de Ana Maria Araújo Freire, a Nita. Ao todo são 18 cartas. Na primeira parte Paulo segue mais ou menos uma linha do tempo. São 13 cartas. Os títulos são elucidativos: 1ª carta: A fome na minha infância. Em tenra idade já pensava que o mundo teria de ser mudado; 2ª carta: A gravata de meu pai e o piano alemão de tia Lourdes; 3ª carta: As almas penadas falando manhosamente e o relógio grande da sala da casa na qual nasci; 4ª carta: A triste e traumática mudança para Jaboatão; 5ª carta: A malvadez da pobreza; 6ª carta: Meus estudos no Colégio Oswaldo Cruz, do Recife. Meus professores e meus amigos mais queridos; 7ª carta: Jaboatão: "aí se encontram as mais remotas razões de minha radicalidade; 8ª carta: O sonho rompido; 9ª carta: A morte de meu pai: a dor e o vazio por sua perda; 10ª carta: De volta ao Recife: "enfeitiçado pela docência no Colégio Oswaldo Cruz" e andarilhando pelas livrarias de minha cidade; 11ª carta: "Sesi: a prática de pensar teoricamente a prática para trabalhar melhor"; 12ª carta: Minhas experiências no MCP, no SEC e em Angicos; 13ª carta: Uma carta de transição.

Na segunda parte encontramos os outros cinco capítulos ou cartas: 14ª carta: Educação e democracia; 15ª carta: O processo de libertação: a luta dos seres humanos para a realização do Ser mais; 16ª carta: O papel do orientador de trabalhos acadêmicos numa perspectiva democrática; 17ª carta: o sonho da libertação e a luta contra a dominação; 18ª carta: A problematicidade de algumas questões do fim do século XX. Tem ainda a carta de Cristina, uma pequena nota sobre o livro que resultou do seu pedido e uma bela nota de introdução de seu amigo e uma espécie de filho dileto, Adriano Nogueira.

Ao terminar esta leitura, sinto ainda a falta da continuidade deste relato de memórias, abrangendo o tempo do exílio, especialmente, o seu trabalho em Genebra junto ao Conselho Mundial de Igrejas e a sua volta ao seu tão querido chão brasileiro e outro livro seu, também de memórias, da escrita de seu grande livro Pedagogia do oprimido. O livro é Pedagogia da esperança - um reencontro com a pedagogia do oprimido. 



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