segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A fundação dos "LEGIONÁRIOS DA CRUZ". Uma associação conservadora. INCIDENTE EM ANTARES.

Creio que a personagem maior do livro Incidente em Antares seja a senhora Dona Quitéria Campolargo, ou Dona Quita, simplesmente. Ela pertence a centenária família dos Campolargo, uma das famílias mais tradicionais e praticamente fundadoras da cidade das barrancas do rio Uruguai, na fronteira com a Argentina.  Ela é uma senhora que conhece as suas origens e que se empenha na conservação das tradições e dos bons costumes. Ela será fundamental na criação da Associação "LEGIONÁRIOS DA CRUZ". No Incidente, do qual se ocupa a segunda parte do livro, ela é a primeira a morrer e que, na volta ao coreto da praça, passa a denunciar suas filhas e seus genros. 

Incidente em Antares. Érico Veríssimo. Globo. Porto Alegre.

A parte do livro que selecionei para este post é uma entrevista, ou uma visita que o professor, sociólogo e pesquisador Martim Francisco Terra faz a ela, para coletar dados sobre a cidade de Antares e traçar o seu perfil econômico, social e moral. O professor Terra é o coordenador dessa pesquisa, financiada pela Fundação Ford. Depois de trocar as primeiras palavras, uma análise da conjuntura brasileira já estava delineada. (O Incidente em Antares teve a sua primeira edição no ano de 1970 e o Incidente ocorrera no dia 13 de dezembro de 1963). Profundas insatisfações com a política brasileira, agora sob o comando de Jango e Brizola, que para Dona Quita eram notórios comunistas. Era urgente a precaução e a defesa. No trecho (Capítulo LXXVIII, páginas 176 a 183) encontramos a conversa em que o pesquisador ouve de Dona Quitéria os passos para a fundação da Associação dos "Legionários da Cruz". Omiti as páginas referentes aos diálogos da conjuntura, interessantíssimos, por sinal. 

"O senhor não imagina as discussões que houve nessa primeira reunião - diz ela, sorrindo e deixando aparecer por entre os lábios arroxeados um dente pontudo e cor de marfim velho. - Sempre que o nosso juiz de Direito, o Dr. Quintiliano, e o prof. Libindo se encontram, acabam atracados numa discussão. Não se fumam. Um embirra com o outro e cada qual quer ser mais sabichão e levar sempre a melhor. Não estou aborrecendo o senhor com essas estórias?

- Mas qual, D. Quita! Ao contrário.

- Pois é. Depois que vi todos sentados expus a finalidade da nossa sociedade... clube, grupo ou coisa que o valha. Fui logo dizendo que não propunha a criação dum centro recreativo, mas duma frente ativa de luta, dum corpo militante para enfrentar não só os pelegos do Jango e do Brizola como também todos os tipos de esquerdismo, viessem de onde viessem...

- Compreendo.

- ... e que a nossa guerra não era só política como religiosa e moral. Precisávamos combater também a dissolução dos costumes.

- Como foi recebida a ideia?

- Ora, o senhor sabe como é cidade pequena. A coisa toda fica muito na conversa fiada. Perde-se tempo em detalhes sem importância. Todos aceitaram a minha sugestão para o nome do grupo: Legionários da Cruz. Nosso lema (segundo a proposta não me lembro de quem) devia ser Deus, Pátria e Família... o que não é nenhuma novidade. O Dr. Quintiliano então se levantou e pediu que acrescentássemos Lei e Ordem. O Cel. Tibério pulou e gritou: 'E propriedade!' (se Bolsonaro estivesse presente, ele certamente gritaria: 'E Liberdade!' Acréscimo meu, por óbvio). Vi que ia começar a inana. Ora, o Prof. Libindo, que estava esperando uma oportunidade para dar um guinau no juiz, disse com aquele jeitão suficiente dele: - Meu caro magistrado, quem defende a Pátria defende precipuamente a Lei e a Ordem, contidas ambas no vocábulo oceânico Pátria. (Me lembro direitinho das palavras que ele usou, tenho boa memória). O Dr. Quintiliano, vermelho como um camarão, não se entregou: 'Pois se a coisa é assim' - disse -'bastaria então que no lema dos Legionários da Cruz se falasse apenas em Deus, pois a ideia de Deus, na sua universalidade incomensurável, abrange tudo: ele próprio, as suas leis, a sua ordem cósmica e moral, a Pátria, a Família, a Humanidade'. E o Tibério gritou de novo: 'E a Propriedade!'

D. Quitéria soltou uma risadinha que lhe saiu da boca com um borrifo de broinha esfarinhada.

Depositei minha taça vazia em cima da mesinha, a meu lado.

- O senhor já ouviu dizer que daqui a três semanas o Leonel Brizola vai discursar num comício trabalhista e nacionalista aqui na Praça da República? Pois é. Vai. Mas tome nota das minhas palavras. Nesse dia todas as mulheres católicas de Antares, tendo à frente as Legionárias da Cruz, vão dissolver esse comício!

- Dissolver? - estranhei. - Mas a senhora já pensou no que pode acontecer? Estamos numa democracia..., defeituosa, reconheço, mas - que diabo! - democracia. Cada partido tem o direito de fazer propaganda de suas ideias.

 D. Quitéria empertigou-se na sua cadeira, como que procurando crescer em estatura física.

- Sim, mas o direito e a liberdade tem limites, moço. Um líder político pode fazer a sua propaganda mas não pregar abertamente a subversão da ordem, o fechamento do Congresso, o socialismo, a reforma agrária!

Percebi que tinha mexido num ninho de marimbondos.

- Mas que é que as Legionárias pretendem fazer de concreto se esse comício trabalhista se realizar?

- Sairemos da igreja para a praça cantando com toda a força de nossos pulmões o Queremos Deus. Vamos fazer tanto barulho, que ninguém poderá ouvir o Brizola e os outros oradores.

- Mas eles provavelmente falarão com o auxílio de microfones e amplificadores...

- Quebraremos o microfone e os alto-falantes. Mandaremos apagar as luzes da praça. A cidade ficará às escuras. Temos gente nossa na usina elétrica...

- Mas vai ser uma guerra, D. Quitéria! - disse eu, esforçando-me para ficar sério.

- Vai ser um combate, doutor. A guerra mesmo, essa começou no dia em que o Jango Goulart assumiu a presidência da República.

- Mas as senhoras estão preparadas para... digamos, para enfrentar a reação não só verbal como também física dos trabalhistas?

- Estamos para tudo. Se nos desacatarem, levam com rosários e cruzes e estandartes na cabeça... e em outras partes.

Dessa vez não pude evitar a risada. E a velha, as narinas palpitantes, a respiração acelerada, continuou:

- Nossos maridos, nossos filhos, nossos homens, enfim, estarão armados ao nosso lado, prontos para o entrevero. Tome nota do que estou lhe dizendo, É o que vai acontecer se o Brizola tiver o topete de fazer sua pregação comuno-nacionalista na frente da casa dos Campolargos e da Matriz.

Pôs a mão espalmada no peito arfante, depois abriu uma caixinha de metal dourado e pô-lo debaixo da língua.

- Não pense que sou uma reacionária, moço - disse, pouco depois, em voz mais baixa e serena. - Sei que os tempos mudaram e que vão mudar ainda mais. As contradições estão liquidando aos poucos a nossa classe. E a indústria, como bem disse o outro dia o Dr. Falkenburg, o meu médico, e a tal de tecnologia estão mudando a face da vida e até da moral. Dia virá em que teremos de dividir nossas terras, eu sei. Mas não há de ser a demagogia do Jango ou do Brizola que vai nos assustar. A coisa tem de ser feita direito, quando a sua hora for chegada. Não sou dessas que gostam do dinheiro pelo dinheiro. Resta-me pouco tempo de vida. Deus nunca me deu filho macho. Tenho quatro filhas. Sei  que os maridos delas estão esperando a minha morte para agarrarem a minha fortuna, e se soltarem no mundo, cada qual para o seu lado. Que me importa? Meu corpo estará então no mausoléu da família, minha alma com Deus.

Não resisti à tentação de fazer uma pergunta maliciosa.

É verdade que o coronel Tibério Vacariano é o presidente de honra dos legionários da Cruz?

É, mas foi eleito contra o meu voto. O Tibé e a pobre da Lanja, mulher dele, são meus velhos amigos, apesar de nossos antepassados terem sido inimigos de morte durante mais de sessenta anos. Olhe, moço, eu lhe proíbo de fazer uso  público do que eu lhe disse hoje nesta sala, ouviu? O Tibério é um velho chineiro e desfrutável. Viveu metido em negociatas durante o Estado Novo e os outros Estados que se seguiram. Tem duas mulheres, o salafrário, a legítima e a amante. No entanto aceitou cinicamente a presidência de honra dos Legionários.  É como eu lhe digo. Essas contradições vão acabar destruindo a nossa sociedade. Acendemos uma vela a Deus e outra ao diabo. Mas o senhor não acredita em Deus nem no diabo, não?

- Não, D. Quita, sinto muito, mas não acredito.

- Pois devia. Eles existem. E cá entre nós, que ninguém nos ouça, eles não residem, como se diz, Deus no céu e o Tinhoso no inferno. Eles estão também aqui embaixo junto com a gente, a todas as horas do dia e da noite. Tome nota do que estou lhe dizendo. 

(Diálogo transcrito de memória, mas creio que com passável exatidão)." Deixo também a resenha do livro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/02/incidente-em-antares-erico-verissimo.html

E também sobre o jornal da cidade - A Verdade.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/02/perfil-do-diretor-de-verdade-o-jornal.html



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