sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Perfil do diretor de A VERDADE. O jornal de Antares. Incidente em Antares. Érico Veríssimo.

Uma das passagens mais notáveis do livro Incidente em Antares (1970), de Érico Veríssimo, é a visita que o sociólogo e pesquisador Martim Francisco Terra faz a Lucas Faia, o diretor do jornal A Verdade, o jornal da cidade. O professor é o coordenador de uma pesquisa, financiada pela Fundação Ford, para traçar o perfil econômico e social de Antares. A cidade fictícia de Antares se localiza no interior do Rio Grande do Sul, junto às barrancas do rio Uruguai, na fronteira com a Argentina.

Incidente em Antares. Érico Veríssimo. Globo. Porto Alegre.

O jornal e o seu jornalista são um exemplo vivo da subserviência de um jornal aos notáveis, ou aos poderosos da cidade. Já antes de pensar em destacar esta passagem num post especial, eu destaquei esta frase que caracteriza o seu diretor. "Dá uma impressão de fluidez, é um homem que, como os líquidos, toma a forma do vaso que os contém, isto é, da pessoa com quem fala ou a quem serve". Um triste e impressionante quadro da imprensa brasileira. Subserviência e fofocas. Vamos a descrição:

"Visito com Xisto a redação e as oficinas de A Verdade. O diretor do jornal é um tipo curioso. DÁ UMA IMPRESSÃO DE FLUIDEZ, É UM HOMEM QUE, COMO OS LÍQUIDOS, TOMA A FORMA DO VASO QUE OS CONTÉM, ISTO É, DA PESSOA COM QUEM FALA OU A QUEM SERVE (destaque meu). Meia-idade, alto (em termos brasileiros) moreno, calvo, pele oleosa, vaselina na voz, nos gestos e nas ideias. Sua alcunha na cidade é Lucas Lesma porque - explicam - a lesma é um animal capaz de arrastar-se sobre o fio de uma navalha sem se cortar e sem cair para um lado nem para o outro. Conta-se que Lucas Faia tem passado a vida a rastejar incólume sobre o gume da espada afiadíssima da política e de mil outras contendas municipais. 'um molusco' - dizem os seus inimigos. 'Um espírito conciliador' - corrigem os seus amigos. 'Um pulha' - opina Barcelona, agudo como a sua sovela de sapateiro.

Lucas recebe-nos festivamente, com os maiores elogios à nossa equipe e ao 'trabalho de beneditinos' que estamos realizando, etc...etc...

Mostra-nos a sua linotipo nova, a sua impressora plana e apresenta-nos 'o seu braço direito e o seu braço esquerdo'. O direito é o Ferreirinha, 'pau para toda obra', e que exerce as funções de secretário-geral, redator, revisor e, quando necessário, paginador. É um homenzinho franzino, gris, anguloso e asmático que ganha um salário de miséria.

O braço 'sinistro' de Lucas é o 'príncipe' do jornal, um dos rapazes mais adulados da cidade. Chama-se Vitório Natal e é cronista social. Sua crônica diária, a Passarela, é geralmente muito lida e apreciada. As mulheres do café society local enchem o colunista de presentes e mimos: gravatas, perfumes franceses, abotoaduras de punho, pratos de doce, camisas, calças, sapatos... Seu telefone é o mais ativo da redação. Funciona o dia inteiro. 'Olha, Vitório, tu sabes que vamos a Buenos Aires este mês fazer compras? Pois é. Se quiseres dar uma noticiazinha...' - 'Voltei ontem do Rio e comprei dois modelos do Dener.' - 'Vamos receber amanhã para jantar aqui em casa o embaixador Gouvea. Conheces? Te esperamos às oito e meia. Trajo de passeio, mas escuro.' Vitório, que me parece um sujeito inteligente e malicioso, diverte-se com as damas locais. Todos os anos seleciona as Dez Mais Elegantes da sociedade antarense e organiza também um concurso para eleger 'o Brotinho do Ano.'

Tem gestos adamados e usa calças Lee apertadas que lhe modelam as nádegas redondas e inquietas. Conta-nos: 'Quando está se aproximando a data em que escolho as 'Dez Mais', começo a receber dessas grã-finas insinuações pelo telefone ou em bilhetinhos... e presentinhos, docinhos, o diabo! É uma graça! Quando o jornal publica a minha lista das 'Dez', só falta as escolhidas me botarem no colo e me beijocarem. Sou o maior! As não escolhidas me viram a cara na rua, me cortam o cumprimento, me mandam cartas anônimas, um inferno. Mas eu me divirto. Porque um dia elas voltam às boas e o carrossel continua a girar, porque elas precisam de mim. Umas ridículas!'

Pergunto-lhe que pensa de Antares e ele me responde com uma de suas rabanadas:

 - Olha, filho, isto aqui é pura várzea. Gente sem classe. Temos uns meninos que estudam em Porto Alegre ou São Paulo, bem uísque Chivas Regal, dizem que leem Proust e Kafka, tem carros ingleses ou alemães e vão de vez em quando a Buenos Aires. O resto (perdoem a minha cadelice), o resto é pecuário.

O colunista tem preso ao pescoço, por uma corrente dourada, uma medalha de metal com o seu símbolo astrológico, o escorpião. Percebendo a direção de meu olhar, ele pega a medalha e diz:

- É o meu signo. Assino a minha coluna com o pseudônimo de Scorpio. Dizem que sou venenoso.

Xisto se abre num sorriso moleque:

- E tu sabes onde o escorpião guarda o veneno? - pergunta.

O cronista responde rápido:

- No rabo. Tu  deves saber tão bem como eu porque também és escorpião.

- Mas macho - retruca o meu amigo.

Vitório solta uma risadinha musical:

- Nunca se sabe, meu querido, nunca se sabe. E sempre é tempo pra mudar cuando la dicha es buena.

O Ferreirinha lança um olhar enviesado para o cronista social, e julgo ver um ódio assassino em seus olhos levemente estrábicos.

 Quando saímos da redação, Scorpio de súbito me aperta o braço.

- Olhe só aquela morena...

Olho na direção que ele me indica. Uma vistosa fêmea está descendo de seu carro para a calçada. Pele creme, cabelos muito negros, e os olhos (percebo quando passa  a dois passos de mim) verdes. 'Que mulheraço!' - murmura Xisto. E ficamos os quatro ali parados para a morena que se afasta rebolando as ancas e - aposto! - consciente de que a estamos observando. 'Quem é?' - pergunto.

Essa mulata - diz Scorpio - não me dá confiança. Não lê a minha coluna. Também... não sabe português.

- Mas quem é?

- Chama-se Dominique, é haitiana, casada com M. Duplessis, gerente da Cia. Franco-brasileira de Lãs.

Penso no estudo que Moreau de St, Méry, escritor francês do século XVIII, fez da mistura de sangue europeu e africano no Haiti e concluo que acabo de ver o que ele chama de sang-mêlée, isto é, uma mulher com um oitavo de sangue negro.

-Sabe da melhor? - pergunta-me o cronista social. - Um dia essa senhora quis porque quis ver uma sessão de macumba aqui em Antares. O marido relutou mas acabou indo. Lá pelas tantas, excitada pelos cantos e pelo batuque, Mme Duplessis tirou os sapatos, soltou os cabelos, entrou na roda e, menino, foi um escândalo, o santo desceu sobre a haitiana e ela começou a tirar a roupa... Se o marido não interviesse a tempo e arrastasse a bichinha para fora, ela acabava nuinha no terreiro. Depois disso a 'melhor sociedade local' isolou a crioula.

- E você contou essa estória na sua coluna? - perguntou Xisto.

- Tentei, mas aqui o meu chefe não deixou sair a notinha.

Lucas resmungou:

- Pois sim que eu ia perder os anúncios da Franco-Brasileira!" Páginas 158- 161. Capítulo LXXIII. Deixo também a resenha do livro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/02/incidente-em-antares-erico-verissimo.html


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