quarta-feira, 25 de junho de 2025

LEITURAS PROIBIDAS. Uma história da leitura. Alberto Manguel.

Ao ler O diário de H. L. Mencken me deparei com uma nota de rodapé sobre um tal de Comstock. Essa nota me fez brotar da memória uma leitura dos anos 2000. Trata-se do livro Uma história da leitura, do escritor argentino, mas cosmopolita, Alberto Manguel. Um capítulo em particular que versava sobre leituras proibidas. Nele aparece o notável censor de livros, Anthony Comstock, presidente de uma sociedade que tinha por finalidade a extinção do vício.

Uma história da leitura. Alberto Manguel. Companhia das Letras. 2002.

O livro de Manguel é notável. É, como diz o título, um passeio pelo mundo da leitura. Os livros nunca provocaram a indiferença das pessoas. Ou eles são amados, ou então, profundamente odiados. O capítulo das leituras proibidas nos remete ao ano de 1660, a Carlos II, rei da Inglaterra. O rei nos é apresentado como um monarca alegre "por seu amor ao prazer e aversão aos negócios". Ele acreditava, de acordo com Lutero, que "a salvação da alma dependia da capacidade de cada um ler a palavra de Deus por si mesmo". Os escravocratas discordavam. "Não acreditavam nos argumentos de que uma alfabetização restrita à Bíblia fortaleceria os laços da sociedade; percebiam que, se os escravos pudessem ler a Bíblia, poderiam ler também panfletos abolicionistas e que mesmo nas Escrituras seriam capazes de encontrar noções incendiárias de revolta e liberdade". 

Depois de algumas digressões, Manguel volta a Carlos II, desta vez sendo confrontado por Comstock. "Em 1872, pouco mais de dois séculos após o decreto otimista de Carlos II, Anthony Comstock - um descendente dos antigos colonos que tinham se oposto aos impulsos pedagógicos de seu soberano - fundou em Nova York a Sociedade para a Extinção do Vício, o primeiro conselho de censura efetivo dos Estados Unidos. Pensando bem, Comstock teria preferido que a leitura jamais tivesse sido inventada, mas, já que o fora, estava decidido a controlar seu uso.  Comstock considerava-se um leitor dos leitores, aquele que sabia o que era boa e o que era má literatura, e fazia todo o possível para impor suas ideias aos outros". Em seu diário se lia:

"Quanto a mim, estou decidido, com a força de Deus, a não ceder à opinião dos outros, e se sentir e acreditar que estou certo, hei de me manter firme. Jesus jamais foi afastado do caminho do dever, por mais duro que fosse, pela opinião pública. Por que eu o seria?" Manguel nos fornece alguns dados de seu personagem:

"Anthony Comstock nasceu em New Canaan, Connecticut, em 7 de março de 1844. Era um sujeito corpulento e, no decorrer da carreira de censor, utilizou muitas vezes seu tamanho para derrotar fisicamente os oponentes. Um de seus contemporâneos descreveu-o assim: 'Com um metro e meio (de sapatos), carrega tão bem seus 95 quilos de músculos e ossos que você diria que não pesa mais de oitenta. Seus ombros de Atlas, de enorme circunferência, encimados por um pescoço de touro, estão de acordo com um bíceps e uma panturrilha de tamanhos excepcionais e solidez de ferro. Suas pernas são curtas e lembram troncos de árvore'". E a narrativa continua:

"Comstock tinha vinte e poucos anos quando chegou a Nova York com 3,45 dólares no bolso. Conseguiu emprego como vendedor de tecidos e artigos de armarinho e logo economizou os quinhentos dólares necessários para comprar uma pequena casa no Brooklin. Poucos anos depois, casou com a filha de um ministro presbiteriano, dez anos mais velha que ele. Em Nova York, Comstock descobriu muita coisa que julgava censurável. Em 1868, depois que um amigo lhe contou como fora 'desencaminhado, corrompido e pervertido' por um certo livro (o título dessa poderosa obra não chegou até nós), Comstock comprou um exemplar na loja e depois, acompanhado por um policial, fez prender seu dono e confiscar o estoque. O sucesso desse primeiro ataque foi tal que ele decidiu continuar, provocando periodicamente a prisão de editores e impressores de material excitante.

Com a ajuda de amigos da Associação Cristã de Moços que lhe forneceram 8500 dólares, Comstock pôde fundar a sociedade pela qual ficou famoso. Dois anos antes de morrer, disse a um entrevistador em Nova York: 'Nos 41 anos em que estive aqui, condenei um número suficiente de pessoas para encher um trem de passageiros de 61 vagões, sessenta vagões com sessenta passageiros cada, e o sexagésimo primeiro cheio. Destruí 160 toneladas de literatura obscena'.

O fervor de Comstock foi também responsável no mínimo por quinze suicídios. Depois que conseguiu mandar o ex-cirurgião irlandês Willian Haynes para a prisão, Haynes se matou. Um pouco mais tarde, Comstock estava prestes a tomar a barca para o Brooklin (relembrou posteriormente) quando 'uma Voz' lhe disse que fosse até a casa de Haynes. Lá chegou quando a viúva estava descarregando de uma carroça as chapas de impressão de livros proibidos. Com grande agilidade, Comstock saltou para o assento do condutor e levou a carroça para a ACM, onde as chapas foram destruídas". E vamos deixar a a escrita de Manguel fluir:

"Que livros lia Comstock? Ele era um seguidor involuntário do conselho jocoso de Oscar Wilde: 'Jamais leio um livro que devo resenhar; ele o torna muito parcial'. Às vezes, porém, folheava os livros antes de destruí-los e ficava horrorizado com o que lia. Achava a literatura da França e da Itália 'pouco melhor que histórias de bordeis e prostitutas nessas nações lúbricas. Com que frequência se encontram nessas histórias torpes heroínas adoráveis, excelentes, cultivadas, ricas, e encantadoras em todos os aspectos, as quais têm por amantes homens casados; ou, depois do casamento, os amantes cercam a jovem esposa, gozando de privilégios que pertencem somente ao marido!'. Até mesmo os clássicos não estavam acima da exprobação. 'Tome-se, por exemplo, uma obra bem conhecida de Boccaccio', escreveu em seu Traps for the young [Armadilhas para os jovens]. O livro era tão imundo que Comstock faria qualquer coisa para 'evitar que ele, como uma besta selvagem, se soltasse e destruísse a juventude do país'. Balzac, Rabelais, Walt Whitman, Bernard Shaw e Tolstoi estavam entre suas vítimas. A leitura cotidiana de Comstock, dizia ele, era a Bíblia". Depois Manguel vai além em suas análises:

"Os métodos de Comstock eram selvagens, mas superficiais. Faltava-lhe a percepção e a paciência de censores mais sofisticados, que escavavam o texto com um torturante cuidado em busca de mensagens enterradas. Em 1981, por exemplo, a junta militar liderada pelo general Pinochet baniu Dom Quixote do Chile porque o general achava (com bastante razão) que o livro continha um apelo pela liberdade individual e um ataque à autoridade instituída.

A censura de Comstock limitava-se, num ataque de ultraje, a pôr as obras suspeitas em um catálogo dos amaldiçoados. Seu acesso aos livros também era limitado: só podia caçá-los se aparecessem em público, quando muitos já tinham escapado para as mãos de leitores ávidos. Em 1559, a Sagrada Congregação da Inquisição Romana publicara o primeiro Índice dos livros proibidos - uma lista de livros que a Igreja considerava perigosos para a fé e a moral dos católicos. O Index, que incluía livros censurados antes da publicação, bem como livros imorais já publicados, jamais pretendeu ser um catálogo completo de todos os livros banidos pela Igreja. Porém, quando foi abandonado, em junho de 1966, continha, entre centenas de obras teológicas, outras tantas obras de autores seculares, de Voltaire e Diderot a Colette e Graham Greene. Comstock certamente acharia essa lista muito útil.

'A arte não está acima da moral. A moral vem primeiro', escreveu Comstock. 'A lei vem em seguida, como defensora da moral pública. A arte só entra em conflito com a lei quando sua tendência é obscena, lasciva ou indecente'. Isso levou o New York World  a perguntar num editorial : 'Foi realmente determinado que não há nada de saudável e proveitoso na arte a não ser que ela esteja vestida?'. A definição de Comstock de arte imoral, como a de todos os censores, foge da dificuldade. Comstock morreu em 1915. Dois anos depois, o ensaísta americano H. L. Mencken definiu a cruzada de Comstock como 'o novo puritanismo', não ascético, mas militante. Seu objetivo não é elevar santos, mas derrubar pecadores'.

Manguel continua suas análises, rumando para o oriente, afirmando antes que a censura não era apenas uma exclusividade do mundo ocidental. Termino por fazer um insistente apelo para a leitura do belo livro de Manguel, do qual deixo a sua resenha. Lembrando ainda, que recentemente, o livro de Jeferson Tenório, O avesso da pele, foi motivo de censura de diversos governadores brasileiros, entre eles, o do Paraná. Permaneceu sob análise, alegou o governador do Paraná.

Segue a resenha de Uma história da leitura.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.