quarta-feira, 29 de junho de 2022

O abolicionismo (1883). Joaquim Nabuco.

 O abolicionismo é uma obra de propaganda. A sua finalidade foi a de fornecer subsídios para a causa abolicionista, que arrefecera com a Lei Rio Branco, de 28 de setembro de 1871, também conhecida como Lei do Ventre Livre. Era uma lei de caráter protelatório.  O abolicionismo foi escrito em Londres, no ano de 1883, onde Joaquim Nabuco fora trabalhar, depois de perder o seu mandato de deputado, da legislatura de 1879-1880, não conseguindo a reeleição. Ele volta para Pernambuco em 1884, participando da campanha e, aí sim, se elegendo novamente para o Parlamento. Os seus vibrantes discursos ficaram registrados no livro Campanha abolicionista no Recife: eleições de 1884. Possivelmente estes dois livros sejam a obra mais bem fundamentada sobre as campanhas em favor da abolição.

O abolicionismo. Joaquim Nabuco.

Para além da questão humana, a ideia motriz de seu livro é a força e o vigor do trabalho livre e o caráter destruidor de todas as instituições civilizatórias que ocorre com o apresamento desse trabalho pela escravização de seres humanos por outros seres humanos, criando a esdrúxula relação entre senhores e escravizados, em contradição com todos os princípios afirmados por crenças morais e religiosas e pela evolução da civilização e afirmação dos direitos universais dos seres humanos, contando entre eles, a igualdade de raças. Os malefícios da escravidão estão presentes na corrosão e destruição generalizada provocada por esta instituição que fundamentou a economia brasileira por mais de trezentos anos. 

O livro que eu li é uma publicação da Folha de S.Paulo, do ano 2000, da coleção Brasil 500, Grandes nomes do pensamento brasileiro. Essa publicação tem um precioso prefácio de autoria de Leonardo Dantas Silva, da Fundação Joaquim Nabuco e um guia de leitura, ao final, de autoria de Jean Carvalho França, sob o título, Joaquim Nabuco e a construção do Brasil. O corpo do livro tem 17 capítulos, que constituem uma obra de rara profundidade em termos de história e da iniciante sociologia brasileira, sem deixar de ser também uma obra de economia e de fundamentos éticos, morais e filosóficos. Um livro a figurar entre as grandes obras da humanidade.

Rapidamente passarei a enunciar os títulos dos capítulos e me deter em alguns deles: Prefácio. I. Que é o abolicionismo; II. O partido abolicionista; III. O mandato da raça negra; IV. Caráter do movimento abolicionista; V. "A causa já está vencida"; VI. Ilusões até a independência; VII. Antes da lei de 1871; VIII. As promessas da lei da emancipação; IX. O tráfico de africanos; X. Ilegalidade da escravidão; XI. Fundamentos gerais do abolicionismo; XII. A escravidão atual; XIII. Influência da escravidão sobre a nacionalidade; XIV. Influência sobre o território e a população do interior; XV. Influências sociais e políticas; XVI. Necessidade da abolição - perigo da demora; XVII. Receios e consequências - conclusão.

Os capítulos em que mais me detive com anotações foram o XII, onde ele vai fundo nas dores do cotidiano do escravizado, pelo constante assédio moral que sofre e que provoca a total anulação de sua personalidade; o XV, que versa sobre a total atrofia das faculdades humanas e de todas as energias de que os indivíduos são portadores, tanto dos senhores, quanto dos escravizados. Me lembrei muito da Dialética do Escravo, de Hegel. Também me vieram à mente, embora já em desuso nas ciências humanas, fortes imagens do parasitismo entre os vegetais e a atrofia de parasitas e parasitados; e o XVII, o capítulo da indignação e das denúncias dos malefícios da escravidão. 

O primeiro olhar de Nabuco sobre a escravidão é histórico. Primeiro, do movimento do qual ele é um dos mais ativos participantes, que é o do movimento abolicionista, causa que passou a ser defendida pelo seu partido, o Partido Liberal. Depois o seu olhar histórico se volta para a escravidão em si. Mostra os seus três momentos de dor maior: a captura, o tráfico e o cotidiano. Crimes contra a humanidade. Esses três momentos são o roteiro de muitos livros que hoje se ocupam do tema. Também denuncia a total ilegalidade da escravidão, pelas leis acordadas com os ingleses, relativas ao tráfico (Lei de 7 de novembro de 1831, que declarava livres todos os escravos vindos de fora do Império).  

O livro ganha maior intensidade na fundamentação a partir da abordagem dos fundamentos do abolicionismo e da necessidade de sua abolição total. No capítulo XI, contra a escravidão, aponta os princípios cardeais do processo civilizatório, que tem a sua raiz mais profunda no princípio maior - de que não há propriedade do homem sobre o homem, -, e indica casos mais específicos para que o Brasil proceda imediatamente a abolição em função da ruína econômica que ela provoca, que escancara a vergonha brasileira perante as outras nações, e que, uma pátria comum só pode se edificar sobre os princípios da liberdade, da igualdade e da solidariedade humana.

No capítulo XII a atenção recai sobre o ano da escrita do livro, o ano de 1883. Neste ano todas as instituições brasileiras, toda a organização do Estado estavam ainda a serviço da escravidão. Mostra o absurdo de uma nação livre, em que juízes, o exército e a armada estão a serviço de uma instituição ilegal, imoral e contrária à liberdade. Mas a força maior do capítulo está em mostrar as pressões que o cotidiano da escravidão exerce sobre o escravizado. Este cotidiano lhe atrofia o trabalho livre, a força da inteligência, bem como todos os seus movimentos e atividades. Esse assédio moral, de 24 horas diárias, se repete diariamente até a obtenção total da anulação da personalidade, anulação marcada pela obediência cega, pela ausência da reflexão e pela total resignação e sujeição. Já não existem mais sujeitos, ou então, sujeitos que foram anulados em sua essência. A essa resignação de sujeição total, é que alguns historiadores querem chamar de escravidão abrandada, de escravidão suavizada.

No capítulo XIII, ao final do mesmo, encontramos uma citação em alemão, que sintetiza o capítulo: Die Luft leibeigen war. traduzindo, o ar era servo. O ar que se respirava estava contaminado pela escravidão. Como construir uma nação sob os princípios inibidores das capacidades humanas? Observo que este capítulo precisa ser lido com cuidado, pois ele reflete pensamentos dominantes deste momento histórico. Mas o fundamental é que sob a escravidão não se constrói uma grande nação. No capítulo XIV, além da questão humana, o abolicionista mostra também a relação incompatível entre o homem e a natureza, marcada pela exploração, sem nenhum cuidado com a preservação. No interior brasileiro a situação era ainda mais grave. A distância provocou o desconhecimento das reais situações de abusos. Tudo acontecia longe de qualquer olhar.

Já chamei particular atenção para o capítulo XV. Mas, quero realçar o teor da análise sobre os impactos sociais e políticos da escravidão. Isso é o fundamental e exige toda uma reflexão filosófica sobre o trabalho e o seu mundo de relações. A escravidão impossibilita qualquer desenvolvimento humano. Ela é o impedimento de qualquer perspectiva de ascensão e de transcendência do humano. O que significa ter diante da vida a única dimensão da dependência e da sujeição? É a morte das faculdades humanas, da iniciativa, da invenção e de toda a energia individual. A escravidão representa um fechar-se em si mesmo em termos econômicos, inibindo todo o seu dinamismo de expansão de oportunidades e de possibilidades. É uma condenação perpétua a uma vida rudimentar e de limites no campo da economia. Não haverá comércio, não haverá indústria, não haverá imigração. Pela prática da usura, toda a economia acabará concentrada nas mãos dos traficantes. Significa a morte das pessoas de talento e o abrigo de bajuladores e aduladores no serviço público, custeados pelos impostos e pelo endividamento. Essa situação de paralisia amealhou todas as forças a serviço dessa força bruta, altamente contagiosa e profundamente impregnada em nossas instituições. A escravidão é altamente refratária ao progresso.

O capítulo XVI vem na sequência com a grave interrogação. Por que perpetuar esta absurda situação, quem são os beneficiados desse sistema, por que retardar a abolição? Por que deixar para o dia seguinte o que já deveria ter sido feito na véspera?

Sob o brado de que a escravidão avilta o país e paralisa a economia ele lança a sua indignação final, sobre o seu significado para a moral, para a política, para a economia e para a organização social. Me permitam a transcrição. "O que esse regime representa, já o sabemos. Moralmente é a destruição de todos os princípios e fundamentos da moralidade religiosa ou positiva - a família, a propriedade, a solidariedade social, a aspiração humanitária: politicamente, é o servilismo, a degradação do povo, a doença do funcionalismo, o enfraquecimento do amor da pátria, a divisão do interior em feudos, cada um com seu regime penal, o seu sistema de provas, a sua inviolabilidade perante a polícia e a justiça; econômica e socialmente, é o bem-estar transitório de uma classe única, e essa decadente e sempre renovada; a eliminação do capital produzido, pela compra de escravos; a paralisação de cada energia individual para o trabalho na população nacional; o fechamento dos nossos portos aos imigrantes que buscam a América do Sul; a importância social do dinheiro, seja como for adquirido; o desprezo por todos os que por escrúpulos se inutilizam ou atrasam uma luta de ambições materiais; a venda dos títulos de nobreza; a desmoralização da autoridade desde a mais alta até à mais baixa; a impossibilidade de surgirem individualidades dignas de dirigir o país para melhores destinos, porque o povo não sustenta os que o defendem, não é leal aos que se sacrificam por ele, e o país, no meio de todo esse rebaixamento do caráter, do trabalho honrado, das virtudes obscuras, da pobreza que procura elevar-se honestamente, está, como se disse dos estados do Sul, 'apaixonado pela sua própria vergonha'" (Página 164).

Joaquim Nabuco era um liberal e um monarquista. Era um reformador e não um revolucionário. Era admirador da monarquia inglesa, por ela ter feito, sempre no seu devido tempo, as reformas que evitaram revoluções. O livro foi muito bem recebido pelo público e no ano de 1884 o teremos de volta ao Recife, em nova campanha eleitoral para o Parlamento. Vitorioso, assiste ao desfecho da escravidão, com o alerta, de que deveríamos também acabar com a obra da escravidão, se não quisermos a sua continuidade por outras formas. Em seu Campanha abolicionista no Recife: eleições de 1884,ele é mais contundente na apresentação das reformas que ele pleiteava e deixo a sua frase mais explosiva, revestida do calor da oratória, própria dos discursos. "Senhores, a propriedade não tem somente direitos, tem também deveres, e o estado de pobreza entre nós, a indiferença com que todos olham para a condição do povo, não faz honra à propriedade, como não faz honra aos poderes do Estado. Eu, pois, se for eleito, não mais separarei as duas questões, - a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. Uma é o complemento da outra. Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão".

Ainda antes da abolição houve outra lei de caráter protelatório, a lei 3.270, de 28 de setembro de 1885, a Lei Saraiva-Cotegipe, que declarava livres todos os escravos ao completarem 60 anos de idade.

 Deixo também o link da análise dos discursos pronunciados no Recife no ano de 1884.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/06/campanha-abolicionista-no-recife-1884.html   



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