quarta-feira, 15 de junho de 2022

Memórias da Cantina da Lua. Clarindo Silva. Pelourinho Salvador.

13 de maio de 2022. Uma sexta feira. 13 de maio, data da abolição. Proclamei uma abolição meio particular, abolição da pandemia, abolição válida apenas para efeitos de viagem. Meu amigo Valdemar Reinert me convidou para assistirmos ao Show de Caetano Veloso "Meu Coco", no histórico Teatro Castro Alves, em Salvador. Ele já havia comprado os ingressos, sempre raros, num show de Caetano. Seria para o dia 21, sábado. Com alguns atrasos de voo, chegamos a Salvador ao final da tarde. Lá pelas 21h00 já estávamos em Santo Amaro da Purificação. E, desde já, lanço uma advertência, nunca chegue na cidade sem hotel reservado, ainda mais quando se trata de uma data histórica como o dia da abolição.

Memórias da Cantina da Lua. Clarindo Silva. Ele, na capa de seu livro.

Outro dia eu conto sobre Santo Amaro da Purificação, sobre a festa do Bembé do Mercado, sobre o "Lá em Carla", o restaurante de grandes conversas, sonhos, projetos e, por óbvio, de cervejas e sabores. A festa do mercado e dona Canô foram o tema de nossas conversas e maravilhamentos. Como lembrança, trouxe até o santo da Purificação. Ainda no Recôncavo, conhecemos Cachoeira e São Félix. Em Cachoeira, confesso, cometemos um pecado, que será preciso expiar, purificar. Não tomamos uma cerveja nos inúmeros bares ao longo do rio Paraguaçu, contemplando a ponte metálica que liga as cidades e entabularmos conversas sobre a história da cidade, berço da independência.

Costeando o Recôncavo e já noite, estávamos na ilha de Itaparica, mas sem ainda experimentarmos a rejuvenescedora água da "Fonte da Bica", nem  a casa do escritor famoso da ilha. Deu tempo sim, de tomar o saboroso caldinho de sururu. Mas não fomos a Salvador, o nosso destino, sem conhecermos as maravilhas e os sabores do Manguezal. Local de passar, dia inteiro.

O sábado e o show nos aguardavam. Depois de virar e revirar a cidade, na manhã deste sábado, resolvemos dar mais uma volta pelo Pelourinho. Valdemar estava à procura de um caixa eletrônico. "É ali", nos indicaram. Era um restaurante, e numa lateral estava o caixa. Na entrada, um senhor todo de branco e gravata cuidadosamente enfeitada. Rodeado de livros, a todos recebia com amplos sorrisos. Ao fundo do restaurante algumas faixas e cartazes. Um deles chamou particular atenção. "Palco do centenário de Riachão". Foi motivo suficiente para parar com as minhas preocupações de estômago e nos abancarmos. Estávamos num lugar épico e histórico e o senhor de terno branco era Clarindo Silva, o Dom Quixote do Pelourinho. Ali consumimos sabores e também o resto da tarde. Cada vez que você entabula uma conversa com alguém, é um mundo à parte que se abre. Clarindo nos abriu o livro de seus 80 anos de vida e setenta de trabalhos e de resistências. Estávamos na Cantina da Lua. 

"A Cantina da Lua fica numa esquina do Terreiro de Jesus, diante da Catedral Basílica, ao lado da Faculdade de Medicina, a primeira do país, tendo como vizinha a secular Igreja de São Pedro dos Clérigos. É, poderíamos dizer assim, a porta de entrada para o Pelourinho, na esquina da rua principal, que, descendo, vai dar no Largo do Pelô, onde estão localizadas a casa de Jorge Amado e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, ali onde ficam o Museu da Cidade, as sedes do Olodum, dos Filhos de Gandhy, a casa do Benin, mais embaixo, o acesso ao Taboão, a subida para o Carmo e o Além do Carmo". Isso nos é contado no livro Memórias da Cantina da Lua, o livro de Clarindo Silva. Além das memórias há os depoimentos. O registro acima é do jornalista zédejesusbarreto, à pagina 117.

O livro de Clarindo já está na sua sexta edição. Ele é dividido em três partes. Na primeira, Clarindo conta as suas memórias, que se confundem com as da Cantina da Lua e a sua luta pela preservação do Pelourinho, a segunda conta com depoimentos de frequentadores e amigos e a terceira é composta de um álbum de registros fotográficos.

Entre as memórias, Clarindo lembra de sua chegada, vindo de Conceição do Almeida, cidade do Recôncavo. Lembra de seus primeiros trabalhos, vendendo frutas da estação, até o primeiro emprego no Bazar Americano, até o arrendamento da Cantina da Lua, onde se estabeleceu no ano de 1971, para nunca mais sair. A pedagoga Kátia Melo nos conta que "a política baiana, a cultura local e a boemia se entrelaçavam na Cantina, que era e é hoje, uma espécie de caldeirão cultural de Salvador". Por aí passaram, o samba da Bahia, jornalistas, os escritores Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, os políticos e todos os que valorizaram a cultura. Clarindo, além da luta pela preservação da cultura e da restauração do Pelourinho também deu seus passos na política, meio desajeitados, em função de suas práticas, incompatíveis com o seu jeito de ser e de pensar. Política para ele era a defesa de causas e não o assistencialismo corruptor.

De Dóris Pinheiro tomo dois depoimentos; o do seu sonho do que seria a Cantina da Lua, antes de conhecê-la, e, uma definição de quem é Clarindo. "Eu me lembro que quando eu era garota e lá em casa se falava sobre a Cantina da Lua, que eu ficava imaginando que devia ser um lugar assim como aqueles livros do Jorge Amado, cheio de boêmios, intelectuais, jornalistas, artistas. Um lugar impregnado de Bahia, com comida gostosa, cerveja gelada, cachaça da boa, noites intermináveis de conversa e música. Homens charmosos, mulheres livres e bonitas". Clarindo, ela não imaginou, apenas conseguiu constatar. "Para mim Clarindo Silva é tipo um semi Deus afrobaiano, filho direto de um Orixá. E afilhado de santos católicos poderosos".

Este cartaz - Palco Centenário Riachão nos fez entrar na Cantina da Lua.

No álbum de fotos encontramos Clarindo com os amigos, com os jornalistas, e ele é um deles, com escritores, com políticos, com monsenhores e com Mãe Stella de Oxóssi, e sobretudo com os homens e mulheres da música, do samba. E lembrando, que em defesa do Pelourinho, Clarindo foi se queixar até para o Papa, entregando para João Paulo II, na Catedral Basílica, as reivindicações do povo baiano, denunciando também "a mortalidade infantil, o ódio racial, a esterilização da mulher negra, além de blanterar contra a degradação do Centro Histórico, enfatizando o abandono da primeira Escola dos jesuítas e da Igreja da Barroquinha", nos conta Germano Tabacof.

Para encerrar, deixo meio solto o jornalista zezédejesusbarreto, com as sua belas palavras na orelha da capa, misturando Clarindo com a Cantina. "Clarindo é negro, preto que se veste de branco pela força dos mistérios afrobaianos. Babá Funfun! Clarindo é magro, sutil como seu riso. Clarindo é um príncipe da cidade da Bahia, uma entidade do Terreiro de Jesus. Um cavaleiro, Quixote do Pelô! Um cavaleiro galante. Clarindo é um ícone de resistência, um signo de esperança, exemplo de perseverança. Sua negra figura esguia paramentada de brancura é fina grandeza, pura delicadeza. Bravura e brandura.

Uma coisa e outra, ou todas as coisas misturadas, assim como pimenta, dendê, leite de coco, marisco, pinga e melaço..., angu encubado, tempero verde de balaio de feira, moqueca, maniçoba, panelada do Recôncavo. Clarindo é uma cantina, lua cheia. Cantina da Lua que se fez morada, porto, festa, bênção, castelo, farol de São Salvador. A cantina da Lua, de Clarindo Silva, é um espaço de baianidade único, dia e noite, pois assim nasceu e foi criado, assim foi cuidado e se conserva, a despeito das ressacas e das marés. Dali daquelas janelas da esquina, encruzilhada do Terreiro, Clarindo viu e vê tudo, presenciou e foi agente em nosso Centro Histórico. Escravidão, fausto, puteiro. Capoeira, brega, tambores, malandragens, droga, poesia e procissão. Bênção e condenação".

À noite, o tão sonhado show do Caetano. Caetano é simplesmente Caetano. E, durante o show, um sonoro FORA BOLSONARO, do próprio artista. Por que será que "Meu coco" não vem para a desacreditada "República de Curitiba?".

E quando for a Salvador, um encontro com Clarindo. Nem precisa marcar. Como chegar? Está tudo bem explicado. Ah, sim! Ganhei autógrafo: "Ao amigo Elói. Um pouco da minha história de vida, recheada de depoimentos de celebridades que como você (muito obrigado - mesmo não sendo) visitaram a nossa Cantina da Lua, local de encontros e reencontros. Fé e resistência. Lua, 21.05.2022. Clarindo Silva.

2 comentários:

  1. Que memória Elói. Que ótimo o teu registro

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  2. Sempre um belo registro de memória. Momentos bons. Beleza Valdemar. Abraço.

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