terça-feira, 13 de abril de 2021

O Cemitério de Praga. Umberto Eco.

É um Umberto Eco. Comprei O Cemitério de Praga em 2011, quando ainda estava em sala de aula. Por esta razão, apenas comecei a sua leitura, sem concluí-la. É um livro volumoso. São 479 páginas. Agora o retomei e o li em uma só sentada. Não é um livro de leitura fácil. São muitos personagens e vários fatos históricos, dos quais você precisa ter algum conhecimento, para que a leitura flua. Ao final do livro, o próprio autor procura facilitar a leitura, através de uma coluna em que alinha o capítulo com o enredo e a história. Ao todo são 27 capítulos e o tempo histórico descrito vai de 1830 até 1898.

O Cemitério de Praga. Record. 2011. Tradução de Joana Angélica d'Avila Melo.

Simone Simonini é o personagem central do livro e, segundo o autor, é o único personagem inventado na história. Todos os outros são personagens reais. Simonini divide o seu protagonismo com o seu alter ego, o padre Della Piccola. Simonini escreve o seu diário de memórias, iniciado em 24 de março de 1897 e o termina em 20 de dezembro de 1898. Ele conta a sua história de vida, desde os anos de sua infância vividos em Turim, a sua participação nas guerras da unificação italiana, o seu exílio em Paris, de onde assiste e participa, nos bastidores, com a elaboração de documentos históricos e falsificações, dos episódios da segunda metade do século XIX. Catolicismo, jesuítas, maçonaria e judeus constituem o núcleo central do livro. 

Ao final do livro, na página 478, temos uma espécie de adendo - Fatos póstumos - que esclarece muitas coisas. Aparecem quatro datas; 1905, quando na Rússia se fala de uma "sinistra conspiração mundial", uma "conspiração maçônica judaica", que pode ser conhecida através  de um manuscrito, sob o título Protocolos dos anciãos de Sião; 1921, quando o London Times estabelece relações entre o livro de Joly (este autor aparece muitas vezes ao longo do romance) e os protocolos e os considera como uma falsificação; 1925, Hitler cita os protocolos no Mein Kampf e 1939, ano em que Henry Rollin considera os protocolos como a obra mais difundida no mundo depois da Bíblia.

Vamos agora procurar elucidar o título do livro - O Cemitério de Praga. É neste cemitério que se reuniam os rabinos para debaterem o seu plano de dominação do mundo. Esse projeto envolvia judeus,  maçons e os jesuítas, que não passam de "maçons vestidos de mulher". p. 22.  Muitas tramas neste romance, que pode ser qualificado como um romance histórico, uma vez que os personagens envolvidos são reais. Uma história de horrores, que viria a desaguar nos acontecimentos da primeira metade do século seguinte. Espionagem e contraespionagem, traições e assassinatos, cadáveres ocultos em cloacas, falsificação de documentos, perfuração de hóstias consagradas em missas de magia negra vão se sucedendo ao longo dos 27 capítulos do livro.

Na resenha vou me ater ao capítulo 26 que leva o título de "A solução final". Nele está revelado o famoso plano de dominação mundial. Assim lemos: "Conferi o que eu já tinha usado para os discursos  precedentes do rabino. Os judeus se propunham apoderar-se das vias férreas, das minas, das florestas, da administração, dos impostos, do latifúndio; visavam à magistratura, à advocacia, à instrução pública; queriam infiltrar-se na filosofia, na política, na ciência, na arte e, sobretudo na medicina, porque um médico entra nas famílias mais facilmente do que um padre. Convinha minar a religião, difundir o livre pensamento, suprimir nos programas escolares as aulas de religião cristã, açambarcar o comércio do álcool e o controle da imprensa. Santo Deus, o que mais eles pretendiam". p.450. Na sequência, são listados os meios para atingirem seus fins. A frase atribuída a Maquiavel aparece explicitamente:

"Para impedir que o povo descubra, por si só, uma nova linha de ação política qualquer, nós o manteremos distraído com várias formas de divertimento: jogos ginásticos, passatempos, paixões de vários gêneros, tabernas, e o convidaremos a participar de competições artísticas e esportivas... Estimularemos o amor pelo luxo desenfreado e aumentaremos os salários, mas isso não trará benefícios ao operário, porque simultaneamente acresceremos o preço das substâncias mais necessárias, sob o pretexto de maus resultados nos trabalhos agrícolas. Minaremos as bases da produção, semeando os germes da anarquia entre os operários e encorajando-os ao abuso de bebidas alcoólicas. Procuraremos dirigir a opinião pública para toda espécie de teoria fantástica que possa parecer progressista ou liberal". p. 451. Também havia um programa de controle dos estudantes:

"Quando estivermos no poder, supriremos dos programas educativos todas as matérias que possam perturbar o espírito dos jovens e os reduziremos a criancinhas obedientes, que amarão seu soberano. Em vez de estudar os clássicos e a história antiga, que contêm mais exemplos ruins que bons, mandaremos que estudem os problemas do futuro. Cancelaremos da memória dos homens a lembrança dos séculos passados, que poderia ser desagradável para nós. Com uma educação metódica, saberemos eliminar os resíduos de independência de pensamento da qual desde há muito nos aproveitamos para nossos fins... Sobre os livros com menos de trezentas páginas, baixaremos uma taxa dupla, e essa medida obrigará os escritores a publicar obras tão longas que terão poucos leitores. Nós, ao contrário, publicaremos obras baratas para educar a mente do público. A taxação determinará uma redução da leitura deleitável e ninguém que deseje atacar-nos com sua pena encontrará um editor". p. 452. Quanto a imprensa também havia um programa:

"Quanto aos jornais, o plano judaico prevê uma liberdade de imprensa fictícia, que sirva para o maior controle das opiniões. Dizem os nossos rabinos que será preciso apoderar-se do maior número de periódicos, de modo que expressem opiniões aparentemente diferentes, a fim de dar a impressão de uma livre circulação de ideias, ao passo que, na realidade, todos refletirão as ideias dos dominadores judeus. Observem que comprar os jornalistas não será difícil, porque eles constituem uma maçonaria e nenhum editor terá coragem de revelar a trama que liga todos à mesma trilha, uma vez que ninguém é admitido ao mundo dos jornais sem ter tomado parte em algum negócio escuso na sua vida privada.... p. 452. E assim por diante...

Como não tenho imagens do cemitério, vai aí um dos símbolos da cidade. O relógio astronômico.

Quero deixar ainda uma frase que, para mim, foi a mais marcante do livro. Ela é dita por um russo, Rachkovsky, que pede a Deus, para que sempre tenham um judeu a quem possam expressar o seu ódio: "É necessário um inimigo para dar ao povo uma esperança. Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico. É preciso cultivar o ódio como paixão civil. O inimigo é o amigo dos povos. É sempre necessário ter alguém para odiar, para sentir-se justificado na própria miséria. O ódio é a verdadeira paixão primordial. O amor, sim, é uma situação anômala. Por isso, Cristo foi morto: falava contra a natureza. Não se ama alguém por toda a vida; dessa esperança impossível nascem adultérios, matricídios, traições dos amigos... Ao contrário, porém, pode-se odiar alguém por toda a vida. Desde que esse alguém esteja sempre ali, para reacender nosso ódio. O ódio aquece o coração". Hoje poderíamos dizer, - um inimigo, seja ele quem for, mas um inimigo, nem que ele seja uma construção, uma invencionice. 

Para dar uma ideia mais precisa do livro, transcrevo o primeiro parágrafo da orelha da capa: "Ao longo de todo o século XIX, entre Turim, Palermo e Paris, encontramos uma satanista histérica, um abade que morre duas vezes, alguns cadáveres no esgoto parisiense, um garibaldino que se chamava Ippolito Nievo, desaparecido no mar nas proximidades de Stromboli, o falso bordereau de Dreyfus para a embaixada alemã, a disseminação gradual da falsificação conhecida como Protocolos dos sábios de Sião (que serviriam de inspiração a Hitler para os campos de concentração), jesuítas que tramam contra maçons, maçons, carbonários e mazzinianos que estrangulam padres com as tripas das próprias vítimas, um Garibaldi de pernas tortas, os planos dos serviços secretos piemonteses, franceses, prussianos e russos, os massacres numa Paris da Comuna em que se comem ratos, golpes de punhal, horrendas e fétidas reuniões por parte de criminosos que, entre doses de absinto, planejam explosões e revoltas de rua, barbas falsas, falsos notários, testamentos enganosos, irmandades diabólicas e missas negras. Um material perfeito para um romance-folhetim ao estilo oitocentista, ilustrado com os feuilletons daquela época".

Este romance aparece em 2010, trinta anos após o insuperável O nome da rosa. Trata-se de uma antevisão dos horrores do século XX, quando efetivamente todos os ódios implodem ou explodem. Uma obra, para implodir também, toda e qualquer ingenuidade. E, acima de tudo, extremamente atual. "Que Auschwitz não se repita", nos alertava Adorno. Será difícil. E, como diz Primo Levi, um raro sobrevivente de Auschwitz, em frase de epígrafe no livro Fascismo - um alerta, de Madeleine Albright, "Toda era tem o seu próprio fascismo". Infelizmente, o Brasil tem o seu, com uma dose de ódio mais forte do que as doses de absinto que são sorvidas no livro.

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